Doc. N° 2216
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
107 - 2007/3
Tópicos multilaterais França-Brasil
Identidade, integração e diferenciação cultural de brasileiros na França e suas repercussões no Brasil A valsa brasileira em Paris: Durand e Mesquita
Colóquio ISMPS pelos 100 anos da admissão de Carlos de Mesquita no Conservatório de Paris
A.A.Bispo
Os estudos culturais no contexto das relações entre a França e o Brasil, que veem sendo desenvolvidos há décadas pela A.B.E. e pelos institutos de pesquisas a ela integrados, tiveram continuidade com um ciclo de estudos do ISMPS (Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa) dedicado à função da música no processo performativo de identidades de brasileiros residentes em Paris na segunda metade do século XIX.
Vários estudiosos e artistas brasileiros alcançaram renome e conquistaram posições influentes na vida cultural de Paris naquele século. Integrando-se muitos deles na sociedade francesa, não perderam os seus elos com o Brasil, atuando como agentes divulgadores da cultura brasileira na Europa e transmitindo impulsos e novas correntes estéticas e do pensamento ao Brasil. Entre os intelectuais que mais se empenharam no desenvolvimento dos estudos brasileiros na França, salienta-se o amazonense Barão de Sant'Anna Nery, vulto de extraordinária relevância para os estudos históricos das relações interculturais e já várias vezes considerado pela A.B.E.
Com relação à música, torna-se necessário alcançar maior profundidade histórica nos estudos franco-brasileiros. A atenção tem-se concentrado, em geral, no período posterior à Primeira Guerra Mundial. Cada vez mais se constata, porém, que essa presença brasileira na capital francesa não pode ser entendida sem a consideração do desenvolvimento anterior, preparado por vários artistas e que muitas vezes serviram de intermediários e mentores para seus conterrâneos.
Dentre esses mediadores culturais, salienta-se um nome hoje injustamente pouco lembrado, o do compositor Carlos de Mesquita.
Carlos de Mesquita nasceu no Rio de Janeiro, em 23 de maio de 1864, e faleceu em Paris, em 1953. Na sua longa vida, atuando no Brasil e na França, tornou-se um dos principais pontos de referência para os brasileiros que se dirigiam à Europa e para os europeus que desejavam orientações sobre o Brasil. Empenhou-se pela divulgação da música brasileira na Europa.
Pesquisadores brasileiros do passado salientaram que Carlos de Mesquista foi um dos mais extraordinários talentos do país. Aprendeu desde cedo piano e estudou violoncelo com Giovanni Cerrone, adquiriu porém conhecimento de repertório, prática musical e familiarizou-se com questões atuais da vida musical internacional no Club Beethoven, entidade de excepcional importância no Rio de Janeiro da época, dirigida por Roberto J. Kinsman, músico de origem inglêsa. Ainda menino, com 11 anos, alcançou sucesso e admiração pública com a execução do Concerto n° 1 de Mendelssohn.
Carlos de Mesquita aperfeiçoou-se na França, onde realizaria grande parte de sua carreira. Em 1877, no Conservatório de Paris, com apenas 13 anos, obteve a primeira medalha em solfejo. Teve aulas com renomados professores, entre eles Antoine-François Marmontel (1816-1898). Em harmonia, foi discipulo de Émile Durand (1830-1903), compositor que deixou profundas marcas na sua formação estética e estilística, mais talvez do que o seu professor de composição, contraponto e fuga, Jules Massenet (1842-1912).
Em órgão, foi aluno de César Franck (1822-1890), atuando também como organista auxiliar da igreja Santa Clotilde, em Paris. Em 1881, obteve o primeiro prêmio em piano, o segundo em harmonia, o primeiro de acompanhamento e o segundo em contraponto e fuga.
Após os seus estudos, viveu alternadamente na Europa e no Brasil. Retornou ao Brasil em 1881, sendo ouvido, com a célebre Scalchi Lolli, em concerto no Teatro Lírico do Rio de Janeiro e honrado com a presença da família imperial. Retornando a Paris, deu prosseguimento a seus estudos de composição sob a direção de Massenet. Este a êle ofereceu um exemplar de sua obra Le Cid, com dedicatória na qual registra o seu alto apreço.
A estima de Émile Durand ficou testemunhada na dedicatória que este fêz ao oferecer-lhe o seu tratado de harmonia:
A mon excellent élève C. de Mesquita, à celui qui, jusqu'á ce jour, a le mieux compris l'esprit de cet ouvrage. - Témoinage d'estima et de sympathie de bien son dévoué et affectionné professeur. Paris, Juillet, 1882. (cit. V. Cernicchiaro, Storia della musica nel Brasile, Milano 1926, 319)
Segundo esse autor, Vicenzo Cernicchiaro, Carlos de Mesquita apenas não concorreu ao Prêmio de Roma por ser estrangeiro, não correspondendo assim às exigências do concurso.
Após ter realizado vários concertos em Paris e outras cidades francesas, cujo levantamento ainda está para ser realizado, Carlos de Mesquita retornou ao Rio de Janeiro, em 1887. Obtendo a simpatia e a proteção da Princesa Isabel, desenvolveu um programa artístico-cultural de alto nível, difundindo obras novas e correntes estéticas contemporâneas. Fundou os "Concertos Populares", o primeiro do qual se realizou no dia 5 de junho de 1887, no teatro São Pedro. Através desses concertos, o público brasileiro tomou conhecimento de obras de Saint-Saens, Massenet, Boldoni, Godard, Guiraud e Charpentier.
Apresentou, no Cassino Fluminense, trechos de sua ópera A Esmeralda, escrita com libretto baseado no Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo. Segundo V. Cernicchiaro, essa ópera seria "di squisita fattura e vaghezza di forma, scritta in età giovanile, quando aveva appena vent'anni". Alguns trechos dessa ópera alcançaram popularidade, sobretudo aqueles de dança: pas des doubles, valse de nobles, pas rustique, valse rustique. O julgamento negativo da obra de Cernicchiaro foi repetido por Luís Heitor e citado por Renato Almeida (História da Música Brasileira, 2a. ed. Rio de Janeiro: Briguiet, 1942, 483), Entretanto, essa avaliação mereceria ser reestudada a partir de análises mais pormenorizadas e contextualizadas.
Esses empreendimentos de Carlos de Mesquita no Rio de Janeiro manifestam um elevado intuito idealista de contribuir com a sua experiência adquirida na França para a vida musical brasileira e incentivar a produção de colegas e alunos. Assim, jßa no primeiro concerto da Sociedade de Concertos Populares, em 1887, êle próprio regeu a Fantasia-Abertura de Francisco Braga, seu discípulo.
Lecionou no Conservatório Imperial de Música e posteriormente no Instituto Nacional de Música harmonia e contraponto, contribuindo à formação de vários compositores. Passou assim às gerações posteriores elementos técnicos e de estilo que absorvera em Paris com Durand e Massenet. Logo, porém, abandona a sua posição, por motivos ainda pouco esclarecidos e que apenas encontram-se obscuramente insinuados em V. Cernicchiaro, quando diz que gastava os seus talentos extraordinários "col suo disordine morale" (op.cit. 320). A partir de 1894, já na França, continuou com o seu ministério de divulgar a cultura brasileira.
A obra de Carlos de Mesquita tem sido insuficientemente estudada. Entre as suas composições, escreveu obras de grande envergadura, tais como um concerto para piano e orquestra, 10 estudos de concerto para piano, louvados por Massenet, uma fantasia para piano, um quinteto de instrumentos de corda, um episódio a dois pianos, um Ballet de la Régence. além de uma Suite e um Preludio para orquestra. A sua produção mereceria maior atenção sob vários aspectos, entre êles o da sua inserção em correntes da música européia que refletiam um interesse romântico por culturas exóticas, entre elas também pela tradição musical ibérica, que tanta fascinação despertava em Paris. Também Carlos de Mesquita interessou-se pelos rítmos de danças espanholas, sendo que a sua 1.re suite espagnole era constituída de Malagueña, Jota Aragonaise, Sérénade espagnole e Marche aux Taureaux. Como as designações regionais indicam, o interesse pelas danças populares espanholas relacionava-se muito de perto com um interesse por culturas regionais e nacionais. Foi um dos primeiros compositores que se dedicaram à guitarra, compondo uma Valse des Guitareros (op. 51, n°5). A inserção de suas composições em correntes estéticas e estilísticas francesas deve ser salientada. Assim, a sua Valsa dos Guitaristas era divulgada ao lado de um Cortège op. 93. N° 1 (N° 79) e uma Charmeuse op. 112 (N° 88).
Digno de maior atenção nesse contexto é o fato de Carlos de Mesquita ter incluído elementos da música popular brasileira na sua obra. Assim, entre outras, escreveu um Fandango brasileiro, para piano.
Nos estudos desenvolvidos nas sessões do ISMPS, porém, considerou-se sobretudo o papel de Carlos de Mesquita na divulgação da valsa brasileira na França e as relações que se manifestam entre as valsas de Durand, seu professor, e a valsa brasileira da época.
Assim, dedicou à Baronesa de Sant'Anna Néry uma valsa brilhante sobre motivos brasileiros de título "Les Élégantes" (op. 86 n° 4), provavelmente uma denominação relacionada com as senhoras do círculo brasileiro de Paris que se reunia na casa do Barão de Sant'Anna Nery. A obra foi publicada em transcrição para dois pianos realizada por Léon Lemoine. Como parte da Collection de Morceaux pour deux pianos dos editores Henry Lemoine, Paris e Bruxelas (Imp. Chaimbaud & Cie, Paris, E. Delorisse, Grav. HL. 18400), alcançou considerável divulgação. Nessa coleção, Mesquita surge ao lado de compositores tais como Gounod, Thomé, Beethoven, Marmontel e Lavignac.
Esta composição assume especial interesse para os estudos histórico-musicais de orientação culturológica por vários motivos. Por ser expressamente designada como "Valse brillante sur des motifs brésiliens" documenta uma das primeiras tentativas de utilização de material considerado como caracteristicamente brasileiro numa composição originada na Europa. Pela sua dedicatória e pelo seu título, testemunha o interesse pela música com motivos brasileiros em deteminados círculos sociais de prestígio e interesses por mundos culturais não-europeus em Paris, no qual participavam brasileiros que se empenhavam pelo desenvolvimento dos estudos brasileiros na Europa. Pelo seu estilo, oferece possibilidades de análises das relações entre a valsa nas suas conotações francesas e a valsa considerada como brasileira, campo de estudos de interesse sob o aspecto da identificação nacional da valsa nos países latinoamericanos de fins do século XIX e início do XX. Pelos motivos escolhidos, possibilita reflexões a respeito do que era considerado como caracteristicamente brasileiro na época e na sociedade brasileira de Paris.
Pela sua inserção no repertório de salão, oferece subsídios a estudos referentes as relações entre uma prática musical e uma estética de salão com o interesse por uma música característica dos vários países e regiões do mundo e de suas recepções nas respectivas nações. Possibilita, assim considerações de cunho sociológico que colocam a questão das origens de um nacionalismo musical em contextos até hoje pouco considerados e que levam a releituras de posicionamentos estéticos e interpretações histórico-musicais. Pelas linhas melódicas amplas, em curvas caracterizadas por quedas em acordes e movimentos escalares ascendentes, e que, mais do que "motivo brasileiro", lembra práticas improvisatórias de instrumentos de sopro e associações com chorões, a valsa brilhante de Mesquita oferece também subsídios para estudos referentes à história da recepção da música popular brasileira na Europa e, sobretudo, das relações dessa com a música de salão.
Outro conjunto de obras que merecem atenção nesse contexto são as Six Valses Romantiques pour Piano á quatre mains, publicadas no Rio de Janeiro, por Buschmann Guimarães, representados em Paris por Choudens Fils. Essa série foi transcrita para orquestra de salão pelo próprio autor. Na primeira dessas valsas, que abre a série e determina o cunho geral do conjunto, Mesquita volta à valsa brasileira. Como em outros exemplos conhecidos do repertório de salão, a música característica surge com conotações femininas: La Brésilienne. A ela se seguem: Au Bal, La Poule, Pastorale, La Détraquée e Névrose.
A observação de Vincenzo Cernicchiaro mantém a sua atualidade:
"Deploriamo che nelle udizioni frequenti di opere di mezzano e alto stile, in cui si cerca di mettere in evidenza l'arte nazionale, non figurino le spontanee belle ispirazioni di questo notevole compositore brasiliano, e che la sorte spesso lasci nel dimenticatoio i migliori maestri dell'arte contemporanea
Però, malgrado il giudizio che corre sul suo conto, la storia lo consacra compositore di pensieri sinceri e melodista distingo." (op.cit. 320)
Os trabalhos referentes a Carlos de Mesquita deverão ter continuidade no âmbito das atividades do ISMPS.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).