Doc. N° 2209
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
107 - 2007/3
Tópicos Multilaterais Alemanha-Brasil
Questões de senso de comunidade, memória e religiosidade feminina Brasil e Europa medieval
Gernrode. Igreja de S. Ciríaco. Trabalhos da A.B.E. 2007 Circuito de estudos euro-brasileiros de Mecklenburg e Pomerânia Ocidental. A.B.E.
A.A.Bispo
Um dos complexos temáticos discutidos durante o triênio de estudos pelos 500 anos do Descobrimento do Brasil disse respeito ao papel da mulher em formas tradicionais do catolicismo em Portugal e no Brasil, sobretudo em regiões do Brasil-Central (veja, em números anteriores desta revista, relatos do Congresso Brasil-Europa 500 anos: Música e Visões). A pesquisadora Martha Haug, com base em estudos de campo em Mato Grosso, considerou,entre outros aspectos, formas de expressão de uma concepção do mundo e do homem marcada por uma comunhão entre vivos e mortos na cultura popular de fundamentação religiosa, na qual a mulher desempenha um papel relevante.
O significado de tradições vinculadas aos mortos no Brasil foi salientado também por outros pesquisadores. Ao mesmo tempo, tratou-se do relacionamento entre essas formas de concepção e vida religiosa e a questão da Memória nos estudos culturais (veja os relatos do Congresso de Estudos Euro-Brasileiros, 2002).
Nesses debates, levantou-se a questão da inserção dessas concepções e formas de comportamento no processo missionário e colonial, salientando-se a vigência atual de estruturas e formas de expressão medievais, em particular da Península Ibérica.
Com o decorrer dos trabalhos, porém, tornou-se claro que esse complexo de questões não dizia apenas respeito à recepção de tradições culturais ibéricas. Comunidades femininas desempenharam papel de extraordinária relevância na história religiosa e cultural de outras regiões da Europa e, em muitos dos casos já estudados constata-se a existência de características da vida religiosa que permitem estudos comparativos ou de base.
Com a finalidade de dar continuidade a essas reflexões, a A.B.E. realizou uma viagem de estudos a um dos principais monumentos da história das comunidades femininas na Europa Central: o ex-convento de Gernrode na região do Harz, uma basílida de três naves com uma capela do Santo Sepulcro, uma cela de penitência do século XII.
A importância da igreja de Gernrode, remontante ao século X, é vista, em geral, sobretudo sob o aspecto da história da arquitetura, na qual surge como um dos monumentos principais do românico, e o da história cultural da Alemanha em particular, uma vez que representa um dos poucos monumentos arquitetônicos da época da dinastia otônica.
Entretanto, a igreja de Gernrode apresenta relevância especial sob uma perspectiva mais ampla, ou seja, aquela aberta por uma orientação culturológica dos estudos.
O motivo da fundação da comunidade religiosa feminina de Gernrode pelo marquês Gero (+960), ao redor de 960, residiu na falta de herdeiros de seus filhos. Com o objetivo de perpetuar ao nome da família e dar continuidade à sua influência, construiu, nas circunvizinhas do seu burgo, o convento para abrigar as mulheres da família, colocadas sob a liderança de sua nora, a viúva Hathui (Hedwig, +1014), elevada a abadessa. As abadessas de Gernrode também o eram do convento de Frose, de onde provinham meios que fizeram de Gernrode um dos mais bem dotados mosteiros da época. As abadessas mantinham relações com as casas reais, que garantiam a autonomia jurídica da instituição. Em contraposição, os membros dessa família podiam se alojar no convento durante viagens.
Estando ali enterrados membros da família, a sua memória era mantida permanentemente viva pela oração diária e pelas celebrações festivas das canônicas. Essa constituia uma das principais tarefas das religiosas. Deveriam orar pela família dos seus fundadores e benfeitores, o que fizeram até a extinção do convento, no século XVII.
Em 961, Gero alcançou, de Otto, o Grande, a proteção real e a autonomia jurídica para a sua fundação. Em viagem a Roma, colocou a comunidade diretamente sob a égide da Santa Sé. O papa João XII liberou-o do controle do bispo de Halberstadt. A comunidade feminina de Gernrode alcançou, assim, uma posição privilegiada e de autonomia regional.
Em 1521, transformou-se em fundação de damas nobres, em 1545 tornou-se protestante. A última abadessa foi Sophia Elisabeth von Anhalt, falecida em 1604. Extinto em 1610, seis anos mais tarde foi integrado nas propriedades do Estado pelos príncipes de Anhalt.
Algumas fontes documentais oferecem dados sobre da vida das insassas. Esses dados foram considerados numa exposição de título SchleirHaft, uma denominação de duplo sentido, sugerindo os múltiplos aspectos referentes às imagens e conceitos de véu e de aprisionamento. Nessa exposição, salientou-se a falta de transparência e o aspecto quase que misterioso da história relacionada com essa abadia. Numa parte da exposição, tratou-se das condições de vida das canônicas. Noutra parte, descreveu-se a vida quotidiana. Mostrou-se que o convento se inseria numa ampla rêde de comunidades masculinas e femininas da Saxônia, algumas das quais remontando ao período carolíngio; outras haviam sido fundadas no período dos Ottos por bispos, nobres e reis.A partir de 1014, o convento pertenceu ao círculo famoso dos conventos femininos da época otônica de Quedlinburg, Gandersheim, Essen e Vreden. As canônicas de Gandersheim e de Quedlinburg celebravam a memória de seus mortos no convento de Gernode.
Gernrode tornou-se um centro de estudos, dado o nível de formação das insassas. Esse nível intelectual explica-se em parte pelo objetivo principal da comunidade, o da manutenção da memória. Para manter viva a lembrança dos fundadores e dos benfeitores, as canônicas precisavam aprender a ler e estudar as fontes históricas.
Não se tratava apenas da conservação viva do nome e dos feitos de Gero. Como salientou-se na exposição, tratava-se de um concepção ampla de comunidade, englobando vivos e mortos. Com as doenças e os diversos perigos, a morte, na Idade Média, estava sempre presente. A comunhão entre vivos e mortos era sentida como algo real, e os mortos tratados como pessoas jurídicas e capazes de ação. Essa presença dos mortos na vida das insassas se manifestava nas orações. Nas horas do ofício, quotidianamente, os nomes dos falecidos e dos ausentes eram mencionados. Os mortos eram lembrados sobretudo nas vigílias. Um livro de vigílias de Gernode registra nomes de mais de 130 pessoas. A vigília no aniversário da morte de um falecido era dedicada exclusivamente ao comemorado.
O memento dos mortos estava intimamente vinculado com a esperança da ressurreição. A ressurreição era representada em Gernrode de forma dramática na manhã do domingo de Páscoa. A existência de uma construção que reproduz o Santo Sepulcro no interior da igreja é uma das principais características arquitetônicas de Gernrode e um dos principais elementos que justificam a sua importância histórico-artística e histórico-musical. O auto da Páscoa alí representado encontra-se descrito num Processional de 1502, hoje conservado em Berlim, na Biblioteca Estatal do Patrimônio Cultural Prussiano (Mus. 400819).
A concepção e a vivência da comunhão entre vivos e mortos e, conseqüentemente, o pêso dado à memória, relacionava-se também com a veneração de relíquias de santos. Na sua fundação, a igreja foi dedicada a Santa Maria e São Pedro. Os principais santos cultuados foram, porém, São Ciríaco e São Metro, cujas relíquias foram trazidas da Itália na época da viagem do marquês Gero; a igreja passou a ser conhecida como igreja de São Ciríaco. Para o abrigo das relíquias, construiu-se um túmulo na cripta oriental da igreja.
O culto desses dois santos pode ser visto também nos seus aspectos significativos para os estudos relativos à comunhão entre vivos e mortos e a memória. Percebe-se, em primeiro lugar, a atenção dada à penitência pelos pecados, ao aprisionamento voluntário em resistência às tentações do demônio. Ciríaco foi venerado como vencedor do demônio e, no dia do seu martírio, 16 de março, realizava-se uma das grandes solenidades da comunidade. O mesmo se dava no dia da trasladação de suas relíquias, a 8 de agosto. A veneração foi fomentada pela primeira Abadessa, fazendo que um monge, de nome Nadda, escrevesse uma biografia do santo. A hagiografia, o estudo e o trabalho intelectual surgem aqui intimamente ligado à manutenção da memória. Esse mártir, mencionado no Depositio Martyrum do ano de 354 juntamente com cinco companheiros, teve o seu sepulcro na Via Ostiensis em Roma. Foi, provavelmente, martirizado à época da perseguição de Diocleciano. Teria curado a filha de Diooclesiano, Arthemia. Surgem na história do martírio de S. Marcellus (sécs. V/VI) Uma relíquia do braço de S. Ciríaco foi trazido à época de Otto o Grande para Bamberg, outro em 874 a Neuhausen, perto de Worms. Na Idade Média, foi cultuado no conjunto dos mártires romanos Laurentius, Sixtus, Calixus I e Clemente de Ankyra e invocado contra possessão demoníaca, ataque de maus espíritos e tentações, sendo representado com um demônio algemado. Esse significado para a cultura popular explicava-se pelo fabuloso milagre que ocorrera no seu martírio: ao ser decapitado, do seu corpo fluiu leite em lugar de sangue. Os seus principais centros de culto eram, além de Gernrode e Neuhausen, Ancona e Castiglione.
As relíquias de São Metro foram roubadas em Verona e trazidas para Gernrode; ambos os locais, respectivamente na Itália e na Alemanha, foram os únicos centros de devoção desse santo. Um Breviário de 1482, de Halberstadt, registra a festa. É o único documento a respeito do ofício de São Metro, com cantos e orações, incluindo também uma pequena descrição de sua vida, em 6 lições. Também São Metro era venerado como protetor contra a ação do demônio nas tentações carnais. Segundo a hagiografia, São Metro prendeu-se a si próprio em uma pedra na frente da igreja San Vitale de Verona para fins de penitência. A chave das algemas lançou-as no rio Etsch. Quando as chaves foram descobertas, sete anos mais tarde, no interior de um peixe, os seus pecados se encontravam perdoados.
Parece ser compreensível que o culto a São Metro tenha sido tão intenso na comunidade feminina de Gernrode. Também as mulheres que ali viviam encontravam-se numa situação quase que similar de aprisionamento e penitência, considerada como meritória na luta contra o mal.
Os trabalhos deverão ter prosseguimento.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).