Doc. N° 2201
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
107 - 2007/3
Tópicos Multilaterais Alemanha-Brasil
Dimensões culturais do Magnificat em contextos interconfessionais e internacionais
Anklam: Reflexões sobre a hermenêutica de concepções e expressões hiperdúlicas Circuito de estudos euro-brasileiros de Mecklenburg e Pomerânia Ocidental. A.B.E.
A.A.Bispo
Devido o aumento dos adeptos de grupos religiosos não-católicos no Brasil, a consideração da história-cultural evangélica impõe-se como uma exigência dos estudos culturais. Até hoje, as atenções dos pesquisadores foram compreensivelmente direcionadas sobretudo às expressões tradicionais e à história-cultural católica. Trata-se não de posicionamentos confissionais por parte do estudioso, mas sim da necessária consideração de outras perspectivações na história, de outras experiências de processos identificatórios, de outras expressões culturais e de outros contextos históricos e geográficos nos quais os membros de confissões não-católicas se inserem ou passam a se inserir. Além do mais, trata-se das conseqüências para o futuro, das transformações que se processam na cultura e seus novos direcionamentos, das repercussões na memória e construção histórica direcionada ao porvir, na imagem do Brasil e de uma cultura de conotação brasileira.
Nesse sentido, a A.B.E. vem procurando incentivar e desenvolver estudos relativos a contextos de mudança religiosa na Europa, de suas extensões, permanências e diferenciações no Brasil. Os números anteriores deste órgão já ofereceram vários relatos dos estudos em desenvolvimento e das reflexões encetadas.
Uma das questões que se impõem ao estudioso do presente é a de observar e analisar o relacionamento dos novos processos de transformação religioso-cultural que se estabelecem com a cultura brasileira que se vincula historicamente a um processo de formação católica que remonta ao início do encontro com a Europa no século XVI. Para o tratamento adequado do complexo de questões que aqui se levantam, torna-se imprescindível considerar ocorrências e problemas similares em outros contextos, uma vez que não apenas diferenças, mas também fenômenos paralelos podem ser constatados, resultantes de mecanismos que acompanham as mudanças estruturais e de sentido no edifício das concepções.
Um dos aspectos fundamentais desse complexo de questões diz respeito às transformações que ocorrem nas concepções e nas expressões do culto hiperdúlico. A culto a Maria marcou profundamente a cultura ibérica dos colonizadores do Brasil e a ação missionária das várias ordens que nele atuaram. A força da orientação mariana na vida religiosa e quotidiana se manifesta até o presente em diversificadas expressões culturais. Um significado mais profundo dessa focalização do universo religioso não se reduz apenas à evidência das manifestações marianas no presente, mas deve ser visto nos seus vínculos fundamentais com um conjunto de concepções antropológicas e, por assim dizer, comunitariológicas. Trata-se, também, entre outros aspectos, da relevância e de um determinado sentido emprestado à mulher no universo das concepções religiosas e de suas expressões. Uma mudança dessa focalização implicaria, assim, em profundas modificações no sistema das concepções e da ordenação simbólica da cultura.
Com a finalidade de aprofundar alguns aspectos desse conjunto de questões, a A.B.E. promoveu estudos voltados à hermenêutica mariana em contextos interculturais, salientando sobretudo o aspecto de seus vínculos com a música. Esses estudos foram desenvolvidos no âmbito de um seminário dedicado ao tema "Música na Hermenêutica Bíblica", evento já considerado no número anterior deste órgão. Acompanhando esses trabalhos, e vinculando-os com o programa de estudos pomerano-brasileiros, encetaram-se reflexões contextualizadas na igreja evangélica de Santa Maria da cidade alemã de Anklam.
Anklam: Igreja de Santa Maria
A Igreja de Santa Maria em Anklam remonta a meados do século XIII. Dessa construção, de duas torres e de um coro quadricular, restam hoje apenas partes. O primeiro documento que menciona essa igreja é do ano de 1296. Durante o século XIV, a igreja foi transformada e enriquecida interiormente, assumindo a sua feição atual.
A peça mais antiga da Igreja é a pia batismal, remontante às primeira décadas do século XIV. Grande parte da mobília e da decoração interna da igreja foi destruída durante a Segunda Guerra Mundial. O atual altar-mor, com quadros representando cenas da vida de Maria, assim como a mobília do coro, pertenciam à hoje não mais existente igreja de S. Nicolau.
Testemunho excepcional da época de intensa devoção mariana da Idade Média é a ornamentação interna das colunas e do teto, com motivos vegetais e geométricos, pinturas que, na sua ingenuidade decorativa, assumem particular relevância como exemplos da arte popular e de seus motivos na Idade Média. Essas pinturas foram apenas redescobertas em meados da década de 30 do século XX, quando se procedeu a uma restauração do templo.Elas cobrem as colunas de plano octogonal da nave principal. À frente de muitas haviam altares, e essas pinturas estavam com êles tematicamente relacionadas. Na terceira colina da fila sul podem ser vistas imagens da Anunciação, da Crucificação, assim como de apóstolos e santos. Na sexta coluna da fila norte, vê-se o apóstolo Paulo, e, na sétima coluna, ao lado do púlpito, Maria.
Canticum B.M.V. e seu significado nos estudos histórico-culturais
Entre os cânticos do Novo Testamento, o Magnificat assume posição de especial relevância. É o canto por excelência de Maria, por ela entoado quando Isabel nela reconheceu a mãe do Salvador (Luc 1, 46-55). Maria surge, aqui, por assim dizer como cantora, determinando um cunho musical em toda as concepções marianas.
Magnificat anima mea Dominum, et exsultavit spiritus meus in Deo salvatore meo. Quia respexit humilitatem ancillae suae. Ecce enim ex hoc beatam me dicent omnes generationes. Quia fecit mihi magna, qui potens est, et sanctum nomen eius. Et misericordia eius in progenies et progenies timentibus eum. Fecit potentiam in brachio suo, dispersit superbos mente cordis sui. Deposuit potentes de sede et exaltavit humiles. Esurientes implevit bonis et divites dimisit inanes. Suscepit Israel puerum suum, recordatus misercordiae. Sicut locutus est ad patres nostros, Abraham et semini eius in saecula.
Como texto de Evangelho, o Magnificat surge na missa da Festa da Visitatio, fato comprovado desde fins do século XIV. Nas tradições litúrgicas do Oriente, o Magnificat é cantado tanto no ofício matutino (igreja bizantina), como no ofício vespertino (liturgia síria da Antioquia). No Ocidente, o Magnificat faz parte integrante das Vésperas, sendo cantado também em cerimônias sacramentais; constitui o ponto culminante das horas vespertinas, sendo acompanhado por incensação. Pode ser visto, assim em certo paralelo com o Benedictus, cantado nas Laudes matutinas.
Devido a essa posição exponencial na organização do quotidiano religioso, o Magnificat foi cantado no Brasil desde o início de sua história colonial e missionária. As fontes históricas permitem reconhecer a importância do Magnificat na prática catequética e, assim, na transmissão de expressões culturais e das concepções a elas inerentes a indígenas. Também na cristianização de africanos o Magnificat exerceu um papel que pode ser considerado como fundamental e que marcou profundamente as concepções e expressões culturais. Uma mais profunda consideração de seu conteúdo - através de análises adequadas de sentido segundo princípios da hermenêutica histórica - permitem compreender muitas das expressões religioso-culturais brasileiras consideradas como sincretísticas.
Sob esse aspecto, a A.B.E. tem desenvolvido estudos que, com a consideração do cunho tipológico das imagens e da natureza anti-tipológica do sistema de concepções abrem também caminho para o entendimento dos vínculos desse universo cultural com o mundo da Antiguidade não-bíblica. Nesse sentido, realizou-se uma ponte com as questões tratadas no seminário "Música na mitologia da Antiguidade e no sincretismo", também em andamento.
Entretanto, por mais estranho que pareça, a pesquisa do Magnificat nos países latinos surge como menos desenvolvida do que a das regiões protestantes. Sobretudo a respectiva produção musical da América Latina ainda não não foi devidamente considerada. Essa fato é particularmente grave, considerando-se a relevância do Magnificat sob o aspecto sacro-musical e histórico-musical.
O Magnificat polifônico numa história intercultural da música
A história mais antiga e as origens do Magnificat polifônico levantam ainda muitas questões. Supõe-se que a prática teve as suas origines no início da polifonia flamenga. Em fontes de meados do século XV encontram-se as obras hoje mais conhecidas, do círculo de Dunstable e Dufay, de compositores como Feragut, Binchois e outros. Em geral, são composições a três vozes. O caráter do tom salmódico dá o cunho às composições, podendo-se analisá-las de acordo com o tom, um aspecto teórico-analítico relevante nos estudos relativos à transmissão da linguagem e do universo musical ocidental ao Brasil.Entre os compositores que mais se destacaram na composição de Magnificats encontram-se, ao lado dos flamengos, Morales, Lasso e Palestrina. Numerosos foram os compositores de menor renome de todas as nações, sobretudo da península ibérica.
Outro aspecto significativo para os estudos sob o aspecto intercultural é o da prática de execução. Em geral, as mais antigas composições conhecidas indicam um tratamento polifônico de todo o texto do Canticum. Entretanto, ainda pouco se sabe a respeito do uso dessa forma de composição nas Vésperas, o que surge como de especial importância para os estudos relacionados com o seu emprêgo nos países de missão. Já antes de 1500 parece ter havido o costume de cantar polifônicamente apenas os versos pares, sendo os versos ímpares entoados em Gregoriano. Assim, a maior parte dos obras mais antigas começam diretamente com o segundo verso e contém apenas os versos pares. Essa prática, embora ainda pouco estudada com relaçõa aos territórios não-europeus, foi utilizada em todo o século XVI até meados do século XVII. Mesmo nos mais raros exemplos de composições para os versos ímpares, o primeiro verso mantém o seu caráter de entoação, sendo cantado a palavra Magnificat em Gregoriano e o Anima mea polifônicamente. A escolha de composições com polifonia só para os versos pares, para os ímpares, ou para todos, era determinada também pelo caráter da festa. Também houve composições apenas para alguns versos selecionados. Já no início do século XVI, o Magnificat passou a ser em geral composto para quatro vozes, podendo porém ocorrer com menos ou mais vozes. Alguns versos poderiam também ser diferenciados com o uso de maior ou menor número de vozes. Em geral, para maior número de vozes, escolhia-se a Doxologia ocasional, para o menor número, o verso Esurientes implevit bonis. A partir do último terço do século XVI, constata-se também composições baseadas em Cantus firmus não-gregoriano ou sem caráter salmódico.
O Magnificat e a Reformação
Lutero manteve o Magnificat na sua posição privilegiada no ofício vespertino. Um núcleo importante de coleções protestantes consiste em reelaborações de composições de autores católicos, inclusive ibéricos, como Morales. Compositores protestantes alemães continuaram a se dedicar ao Magnificat nos séculos XVII e XVIII, entre eles Kuhnau e Buxtehude. Um fato a ser salientado foi o do uso pedagógico do Magnificat. Utilizou-se de composições desse texto para o ensino do sistema de oito modos e o da composição. Também se desenvolveu uma rica literatura para instrumentos de teclado, provavelmente utilizada alternadamente com os versos cantados.
Nas escolas latinas da Alemanha, o Magnificat polifônico era entoado nos serviços dominicais da tarde, introduzindo-se o hábito de incluir canções polifônicas entre os seus versos. Sobretudo no Natal, estabeleceu-se a tradição de incluir tais canções.
Essa tradição foi transplantada ao Brasil por imigrantes alemães provenientes de regiões protestantes da Alemanha. Não apenas sob o aspecto da música erudita, portanto, o Magnificat assume interesse para os estudos histórico-culturais. Uma reorientação científico-cultural da musicologia histórica permitirá considerar a relevância dessas tradições sob o aspecto da formação de identidades.
Os estudos deverão ter prosseguimento.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).