Doc. N° 2199
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107 - 2007/3
Gestos, pathos, sinais e sentido na arquitetura do passado moderno Ciclo pelo ano Oscar Niemeyer IV
São Paulo: Auditório do Ibirapuera. Trabalhos da A.B.E.
A.A.Bispo
Como exposto no número anterior desta revista (N° 106), a A.B.E. realizou, em janeiro do corrente ano, visitas a obras de Oscar Niemeyer em diferentes cidades brasileiras. Essas visitas se inseriram nos trabalhos que dão prosseguimento ao projeto "Poética da Urbanidade", da A.B.E., e foram preparadas por discussões interdisciplinares e palestras realizadas nos seminários universitários e de pós-graduação "Música e Urbanística" (Universidade de Bonn) e "Música e Teoria da Arquitetura" (Universidade de Colonia). Edifícios do arquiteto já haviam sido considerados em estudos realizados em várias ocasiões em Brasília e pela oportunidade da visita à exposição dedicada a Niemeyer efetuada em Oslo, Noruega, em 2004/5. O objetivo das observações de 2007 foi o de considerar o significado histórico e analisar características e razões da singular atualidade de seus projetos sob a perspectiva dos estudos culturais e como subsídio a debates teóricos mais amplos. A série de trabalhos, assim iniciada, foi motivada pelos 100 anos do arquiteto.
Entre as obras visitadas, considerou-se o auditório do Parque Ibirapuera, em São Paulo.
A questão da construção, hoje, de obras presas a expressões estéticas do passado já havia sido levantada durante visitas a outras obras. Diferentemente do "Caminho Niemeyer", em Niterói, esse problema não se apresenta de forma tão paradoxal no caso do Auditório do Ibirapuera. Entretanto, apesar de ter-se, aqui, antes a questão mais compreensível de complementação de um projeto global, - embora com atraso de muitas décadas -, a sua realização implicou em atualizações e reinterpretações que não deixam de colocar problemas na reflexão estético-cultural.
Sob o pano de fundo das discussões já realizadas sobre as relações entre a música e a arquitetura, refletiu-se se as mudanças ocorridas na concretização de um projeto - ainda mais se tão tardias - não poderiam ser considerados comparativamente à questão da execução musical de uma partitura. Ter-se-iam aqui fatos não apenas relativos à interpretação, mas sim também a questões de atualização segundo as possibilidades técnicas disponíveis, de instrumentos e seu tratamento.
Considerações de possibilidades técnicas da época da partitura pertenceriam. sob esse aspecto, quase que a uma história da prática de execução. Entretanto, a discussão da prática de execução histórica diz respeito antes um passado remoto, por exemplo renascentista ou barroco, pouco se referindo a um passado recente, aos anos 50. Esse tipo de reflexões, porém, que parte de comparações de cunho metafórico entre a arquitetura e a música, não esgota as possibilidades das reflexões.
Haveria, entre outras, uma colocação muito mais pragmática. Numa época, na qual a arquitetura de teatros e salas de concerto no mundo todo está recebendo tanta atenção, na qual o desenvolvimento da acústica arquitetônica e as exigências de músicos e ouvintes está determinando compreensivelmente o ato de projetar, a construção de um auditório concebido há décadas surge como singular. Nas relações entre a arquitetura e a música, sobretudo com referência às relações de ambas com o espaço, tão discutidas internacionalmente nas últimas décadas, a dimensão acústica passa a representar um ponto de partida fundamental das concepções de espaços para teatros e auditórios.
Uma arquitetura de auditórios pouco refletida e de questionável qualidade seria aquela que imagina espaços cujos problemas acústicos necessitem ser solucionados a posteriori por técnicos. Não há nada que mais se critique, nesses debates, do que concepções de teatros como se fossem caixas ou caixotes.
Assim, sob o aspecto pragmático, considerando-se o desenvolvimento da arquitetura de teatros e auditórios, da pesquisa acústica e da técnica das últimas décadas, esperar-se-ia que a construção de edifícios correspondentes - sempre tão dispendiosa - deveria seguir projetos recentes e de acordo com os resultados mais avançados dos debates e dos conhecimentos.
Sob esse pano de fundo de considerações, parece ser evidente que o Auditório do Ibirapuera apta-se antes a ser apreciado como fato cultural, como preenchimento de uma lacuna em conjunto monumental em respeito a um grande criador, tornando-se assim ao mesmo tempo uma manifestação e um sinal, um gesto expressivo na sua dramaticidade e transmissão de conteúdos. O edifício surge como parte de um sistema de sinais, empresta (ou restitui) um sentido que não se percebia na sua evidência no conjunto do Ibirapuera. Interpretações hermenêuticas tornam-se assim justificáveis e até mesmo indispensáveis. Mesmo o observador menos preparado é envolvido espontâneamente pela dinâmica arrebatadora da enorme língua de fogo vermelho que se levanta ao ar da boca de entrada do edifício. A arquitetura se transforma aqui, apesar de toda a aparente abstração, em escultura falante de impressionante realismo. Imediatamente vem à tona das reflexões a questão do conteúdo dessa manifestação verbal -ainda que não de palavras -, da sua mensagem, e a possibilidade de uma expressão de posicionamento político impõe-se quase que de forma irredutível. Sob esse aspecto, se pertinente, poucos seriam os edifícios ou monumentos - mesmo em países socialistas - que poderiam ser lembrados como exemplos de comparável teatralidade na propagação de convicções.
Com esse caráter de sinal que leva o observador a um sentido, que indica algo que não é êle próprio, que não é arquitetura, mas sim elemento de um conjunto de idéias, quase que de natureza ontológica, o edifício afasta naturalmente tentativas de análises segundo perspectivas atuais dos debates, uma vez que estes colocam em questão justamente essa orientação por assim dizer metafísica de ordenações de imagens. Na discussão do Moderno, na crítica que a êle se fêz há anos, salientou-se a problemática inserção do Moderno em sistemas de concepções que, em tradição secular do pensamento ocidental, teriam levado à perpetuidade de fundamentações monolíticas de autoritarismos e totalitarismos.
Problemas básicos do debate estético e filosófico-atual apresentam-se, assim, quase que inesperadamente, no confronto com o Auditório do Parque Ibirapuera. O participante desses debates é assaltado pelo pressentimento de que seria no levantar dessas questões que residiria a relevância desse monumento.
Os relatos das reflexões em andamento terão continuidade nos próximos números dessa revista.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).