Paul et Viriginie & Inocência. Revista BRASIL-EUROPA 123. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 
A antiga Île de France, hoje Maurício, tornou-se presente na história literária sobretudo através da obra Paul et Virginie, de Bernardin de Saint-Pierre (1737-1814). Alcançou grande popularidade na França e, através de traduções em vários idiomas, difundiu-se pela Europa e por muitos países de outros continentes. Também no Brasil foi lida, citada e serviu como fonte inspiradora.

Nas próprias ilhas Maurício, Paul et Virginie, como os personagens mauricianos mais internacionalmente conhecidos, continuam vivos na memória cultural do país. Estão perenizados em atitude de pura afeição recíproca em plástica erigida no átrio ajardinado da igreja de São Francisco, em Pamplemousses, onde também se encontra o busto do governador Bernard-François Mahé de la Bourdonnais (1699-1754), próximo ao famoso Jardim Botânico, em contexto portanto que rememora elos entre cultura e natureza na história e na imagem da antiga Île de France.

A difusão internacional de Paul et Virginie, a sua recepção e as influências que exerceu em vários países não têm apenas relevância para os estudos literários. Deu origem a reelaborações várias, a peças teatrais e musicais. A difusão dos personagens principais e das concepções que com êles se associam deu-se também por caminhos não-literários.

Tais concepções e imagens, que perpassam a obra e que possuem origens e conotações de cunho filosófico-cultural, foram propagadas em diferentes regiões do mundo, assimiladas segundo os pressupostos dos recipientes, foram adaptadas às diferentes situações naturais e culturais, influenciaram também de forma inconsciente modos de pensar. O significado histórico-cultural de Paul et Virginie assume dimensões globais.

Outros aspectos da relevância dessa obra para os estudos culturais em geral podem ser vistos no fato de remontar a uma história transmitida oralmente a um observador estranho, no de provir de uma colonia e alcançar extraordinário sucesso na metrópole, e no de oferecer concepções filosófico-culturais e éticas a partir de considerações da natureza de regiões distantes.

Jacques Henri Bernardin de Saint-Pierre (1737-1814)

Na consideração da obra e das concepções de Saint-Pierre merece ser recordado que impressões obtidas nas Antilhas foram das primeiras desse autor, quando ainda muito jovem. Aqui, portanto, teve contato com uma região marcada por misturas de etnias e culturas, assim como com o vir a ser de uma sociedade na qual europeus já nascidos no país e mestiços desempenhavam importante papel. 

De volta à França, Saint-Pierre graduou-se na escola militar, tendo atuado por algum tempo em Malta. Estudou engenharia viária e construção de pontes na École des Ponts et Chaussées

Realizou várias viagens através da Europa e tornou-se protegido de Catarina II da Rússia, o que deve ter marcado a sua elevada consideração por mulheres. Enviado a Madagascar, abandonou o navio na Île de France. Enviou daqui várias cartas à Europa, mais tarde compiladas na Voyage à l'Isle de France (1773). Em 1770, desentendendo-se com o administrador Pierre Poivre, retornou à Europa. Passou a frequentar salões literários e filosóficos. Amigo de Jean Jacques Rousseau (1712-1778), teve as suas concepções marcadas pela sua influência, manifestas sobretudo nos seus Études de la nature (1784). Na terceira edição dessa obra, acrescentou, como quarto volume, o romance Paul et Virginie. Mais tarde, publicou, em três volumes, Harmonies de la nature.

Na apreciação da obra de Saint-Pierre salienta-se que esse autor pode ser inserido numa geração do período anterior à Revolução, cuja corrente literária foi em parte interrompida pela Revolução de 1789. Ao lado de Laclos e Beaumarchais, Saint-Pierre teria sido um testemunho de uma geração mais antiga, do Ancien Régime, embora tenham sobrevivido à Revolução, aceitando-a e serem por ela utilizados. (A. Thibaudet, Histoire de la Littérature Française de 1789 à nos jours, Paris 1936, trad. Geschichte der Französischen Literatur, Freiburg/München 1954, pág. 5). No seu colorido e força de imagens corresponderia à corrente marcada por Massilon (pág. 36).

Digno de atenção é o elo de Saint-Pierre com a Botânica e a Ética. Foi intendante do Jardin des Plantes, do Cabinet d'Histoire Naturelle (1791) e, além de Professor de Moral na École normale (1794), diretor do Jardim Botânico (1797).

Beleza da natureza dos trópicos e beleza moral

No seu Avant-Propos, Bernardin de Saint-Pierre expõe o seu propósito de tratar um tema de grandes dimensões em obra pequena (aqui citada segundo a edição publicada em Paris por Michel Lévy Frères, 1867).  Tomou, para isso, um solo e plantas diferentes daqueles da Europa. Quis situar os seus enamorados às margens do mar, ao pé de rochedos, à sombra de coqueiros, de bananeiras e de limoeiros em flor.

Essa outra parte do mundo havia sido pintada por Teócritos e Virgílios em quadros pelo menos tão interessantes quanto aqueles da Europa. Viajantes de gôsto apurado tinham oferecido descrições encantadoras de muitas ilhas do mar do Sul, faltava porém um quadro dos costumes de seus habitantes, e mais ainda daqueles dos europeus que ali aportaram. O autor desejou juntar à beleza da nature dos trópicos a beleza moral de uma pequena sociedade.

Teve a intenção de por em evidência muitas grandes verdades, entre outras, a de que a felicidade consiste em viver segundo a natureza e a virtude.

Assegurava que as famílias das quais tratava teriam existido de fato, e qua a sua história seria verdadeira nos seus pontos principais. Isso teria sido a êle confirmado por vários habitantes que conhecera na Île de France. Apenas teria incluido algumas circunstâncias sem maior significado, mas estas, sendo pessoais, também possuíam realidade.

Assim que tinha formado um esboço dessa espécie de pastoral, pedira a uma senhora que frequentava o grand monde e a homens graves que dele viviam distantes para que escutassem a sua leitura, com o fim de pressentir o efeito que a estória produziria em leitores de caracteres tão diferentes. Teve a satisfação de ver que todos derramaram lágrimas. Esse sucesso levou-o a dar à obra o título de Tableau de la nature.

Lembrou-se de como a natureza do clima onde nascera lhe era estranha; como, no país onde estivera apenas como viajante era rica, variada, digna de ser amada, magnífica, misteriosa, e de como foi imbuído de gôsto e de desejo de conhecê-la e pintá-la. (op. cit. 41-44)


Papel da mulher na difusão da obra

No Preâmbulo da edição-in-quarto de Paul et Virginie, Bernardin de Saint-Pierre oferece considerações de significado para leituras do texto sob perspectivas histórico-culturais. Reafirma que essa pequena obra nada mais seria do que uma seqüência de seus Études de la nature, e representava uma aplicação de suas leis à felicidade de duas famílias infelizes.

Publicado em 1786, o seu sucesso havia suplantado aquilo que esperava. Da pequena obra fizeram-se romances, idílios e peças teatrais. Um grande número de mães deram a seus filhos nomes de Paulo e Virgínia; e o prestígio dessa pastoral difundiu-se por toda a Europa, sendo traduzida em inglês, em italiano, em alemão, em holandês, em polonês, em russo e em espanhol. Essa recepção positiva em nações de opiniões tão diversas teria sido devida às mulheres que, em todos os países, levariam por todos os meios os homens às leis da natureza. Uma prova evidente desse fato seria que a maior parte das traduções havia sido feita por senhoras ou senhoritas. O autor encantou-se em ver os seus filhos adotivos revestidos de costumes estrangeiros por mãos maternais e virginais.

Das questões levantadas pelos leitores, uma delas perguntava se uma jovem poderia, de fato, decidir-se antes a deixar a vida do que os seus hábitos. Bernardin de Saint-Pierre teria respondido que o homem se assemelharia a um menino. Dando-se uma rosa a uma criança, esta logo a quer conhecer. Examina as suas pétalas, tira-as uma após a outra, e quando conhece o todo, já não há mais a rosa.

No fundo, o autor estava persuadido que tais pessoas lhe colocaram essas questões mais por um sentimento de humanidade do que de curiosidade. Elas deploravam que dois enamorados tão ternos e felizes tivessem tido um fim tão triste. Não quis emprestar à virtude um caminho perfeito de felicidade sobre a terra. Descrevera localidades reais, costumes que se encontravam possivelmente ainda em algumas partes solitárias da Île de France ou da Île de Bourbon.

Disso teria tido testemunhas também em Paris. Ali encontrara, durante um passeio pelo Jardin-du-Roi, uma senhora, uma creola originária de Bourbon, parente de Virgínia, e que confirmou a trágica história da morte da sublime vítima do pudor e de seu infeliz namorado.

Homenagem a Bernard-François Mahé de la Bourdonnais (1699-1753)

Paul et Virginie levou também ao despertar de interesse pela personalidade e pela vida de de la Bourdonnais, também não sem aspectos trágicos. Bernardin de Saint-Pierre, talvez para fazer-lhe justiça e relativar a imagem que surge na sua obra como um típico representante da cultura polida e artificial do Ancien Régime, salienta a humanidade como sendo a sua principal virtude. Os monumentos que criara na Île de France seriam garantias dessa verdade. Nessa ilha, onde o autor serviu como engenheiro, teria visto não apenas construções de defesa que o governador havia construído nos locais mais convenientes, mas também depósitos e hospitais muito bem instalados. A êle se devia um aqueduto para trazer água a Port-Louis. Tudo o que vira de mais útil e melhor na ilha havia sido obra sua.

Seus talentos militares não eram menores do que as suas virtudes e aptidões administrativas. Entretanto, após ter retornado à França, foi acusado de ter tirado lucro das riquezas de sua conquista na Índia e, em consequência, atirado à Bastilha. A calúnia da qual fora vítima foi apoiada, em Paris, por um grupo de homens invejosos, que jamais haviam estado na Índia, mas que estão sempre prontos a destruir a glória dos outros. Embora tendo sido libertado, morrera de amargura vendo a perda de sua fortuna, a falta de reconhecimento por tantos serviços prestados, deles tendo recebido apenas calúnias e perseguições. A inveja de seus inimigos nunca porém puderam abater a sua franqueza e coragem, mesmo na prisão.

A lição que Bernardin de Saint-Pierre tirou da vida de la Bourdonnais é de que aqueles que se ocupam da felicidade não devem esperar recompensa durante a vida. Só a posteridade pode fazer justiça. "O vous qui vous occupez du bonheur des hommes, n'en attendez point de récompense pendant votre vie! La postérité seule peut vous rendre justice." (op.cit. pág. 20)

Filosofia da História cultural e Iluminismo

Bernardin de Saint-Pierre, embora já sentindo-se no fim da vida, pretendia ainda escrever uma obra maior. Havia descrito a felicidade passageira de duas crianças tiradas do seio da natureza por mães desafortunadas; iria tentar pintar a felicidade durável de um povo retornado a suas leis eternas por revoluções. Devia-se esperar das infelicidades passadas, a felicidade futura. Seria apenas por revoluções que a inteligência divina se desenvolveria ela própria nas suas obras, as conduzindo de perfeições em perfeições. (pág. 21)

Todo o povo teria tido uma infância imbecil, uma adolescência crédula e uma juventude sem freios. As histórias da Europa o comprovariam: fora coberta de gauleses, de gregos, de romanos, de godos e visigodos, de vândalos, de francos, de normandos e outros, que se exterminaram mutuamente e que se sucederam como ondas do mar. A história de cada um desses povos apresentaria uma série ininterrupta de guerras, como se o homem tivesse vindo ao mundo apenas para destruir o seu semelhante. Esses tempos antigos, tão louvados pela sua inocência e suas virtudes heróicas, nada mais seriam do que tempos de crimes e de êrros, dos quais muitos já não existem para a felicidade do homem atual. A idolatria absurda, a magia, os oráculos, o culto de demônios, os sacrifícios humanos, a antropofagia, as guerras permanentes, os incêndios, a escravatura, a poligamia, o incesto, a mutilação de homens, os direitos de naufrágio, e outros que haviam desolado a Europa, estavam relegados às costas da África e às trevas das florestas da América.

O mesmo aconteceria segundo Saint-Pierre com doenças do corpo, tão comuns quanto as da alma, tais como as pestes, as lepras, as obsessões ou convulsões. Os heróis admirados nas escolas teriam sido, no fundo, celerados: Aquiles, Ulisses, Agamemmon e outros. Parecia que o mundo moral - assim como o físico - girara antigamente segundo outros polos. Entretanto, os bemfeitores do gênero humano teriam aumentado de século em século: Hercules, Esculápio, Orfeu, Lino, Confúcio, Licurgo, Solon, Pitágoras, Sócrates, Platão e outros. A horda de bárbaros se civilizara aos poucos. Nela depositaram-se elementos de concórdia, de leis, de indústria, de religiões mais humanas.

Através dos séculos, esses benfeitores teriam sido vistos como fontes de sabedoria, de luz e de virtudes, tais como correntes que descem dos cumes de montanhas longínquas. Nas terras onde os druídas tinham queimado homens, os filósofos procuraram esclarecer à razão. As musas do Norte, do Ocidente, e sobretudo as dos francêses teriam atuado na Europa, unido as suas liras, encantado os corações de seus habitantes. Seriam elas que haviam cortado, na América, as algemas dos infantís africanos. Elas teriam exportado grandes benfeitoriais e transportado, da Europa e da Ásia, culturas, novos vegetais, habitantes mais humanos, legislações evangélicas. Seria a virtude dos grandes homens que havia feito descer do céu à terra a chama da verdade. Frequentemente perseguidas e fugitivas, essas virtudes apenas puderam esclarecer o mundo após numerosas revoluções. (op.cit. pág. 26)

A mulher nas nações e a lei natural

Para Bernardin de Saint-Pierre, as mulheres teriam contribuído mais do que os filósofos para a formação e a reforma das nações. Elas não teriam gasto noites a compor longos tratados de moral; elas não teriam construído tribunas para promulgar leis. Foi com os seus braços que fizeram com que os homens tivessem alcançado a felicidade de ser crianças felizes, amantes fieis, esposos constantes, pais virtuosos.

Teriam sido as mulheres que haviam colocado as primeiras bases das leis naturais. A primeira fundadora de uma sociedade humana havia sido uma mãe de família. Fora ao redor das mulheres que os homens errantes ter-se-iam reunido e fixado. Os geógrafos e os historiadores não haviam conseguido classificá-las em castas e em tribos. Para Saint-Pierre, os homens nascem asiáticos, europeus, francêses, inglêses, são agricultores, mercadores ou soldados, mas por toda a parte as mulheres nascem, vivem e morrem mulheres. Elas teriam outros deveres, outras ocupações, outros destinos do que os homens. Elas seriam disseminadas entre êles para lembrá-los sobretudo de que são homens e que devem manter, apesar das leis políticas, as leis fundamentais da natureza.

Semelhantemente aos ventos que se temperam aos raios do sol, que modificam o clima de um país, que fecundam a terra aquecendo-a ou refrescando-a, as mulheres não podem, segundo Saint Pierre, ser circunscritas em nenhum mapa. Esses ventos não aparecem senão na atmosfera. Também as mulheres pertencem para êle apenas ao gênero humano. Elas chamam o homem sem cessar à humanidade pelos seus sentimentos naturais, e mesmo por suas paixões.

Seria por essa influência que as mulheres conservavam um povo de suas origens a seu fim. Testemunho disso dariam os povos que não haviam podido manter nem altar, nem trono ou capital, tais como os armênios, os judeus ou os mouros. Esses povos teriam sido lançados de um país a outro, mas as suas mulheres os teriam mantido coesos através dos laços e da reprodução. Elas os manteriam pelas mesmas leis que os haviam criado.

A mulher, a beleza e a sensibilidade

As mulheres reuniriam os homens entre si não apenas pelos elos da natureza, mas sim também por aqueles da sociedade. Repletas dos afetos mais ternos, elas os uniam à divindade, que é a fonte. Elas seriam os primeiros e os últimos apóstolos de todo o culto religioso, que as inspiram desde a infância.

Elas embelezariam todo o curso da vida. A elas se deveria a invenção das artes de primeira necessidade e de toda a ornamentação. Teriam inventado o pão, as bebidas agradáveis, os tecidos. Teriam concebido, para agradar os homens, canções alegres, danças inocentes, e inspirado a poesia, a pintura, a escultura, a arquitetura.

Assim, nas paixões ambiciosas dos homens, mesclaram-se sentimentos de heroísmo e de piedade. No meio de suas guerras cruéis e permanentes, tinham êles tido deuses violentos, mas à vista de suas mulheres castas, doces, amantes, laboriosas, passaram a conceber divindades benéficas.

Em reconhecimento, os homens teriam elevado para as mulheres os mais numerosos e duráveis de todos os monumentos: deram, em todas as línguas, nomes femininos a tudo que é mais amável e doce, à pátria, a rios, às flores mais perfumadas, aos frutos mais saborosos, aos pássaros mais melodiosos. Tudo o que merece na natureza uma homenagem por causa da beleza ou de uma utilidade superior teria assim recebido o nome de uma deusa, ou seja de uma mulher imortal. Assim, ter-se-ia feminizado e divinizado a luz, as estrêlas, a noite, a aurora, as fontes, as ondas, as florestas. Caracterizaram de modo feminino as potências da alma como aquelas da natureza. Fizeram divindades das virtudes, das graças, das musas, da sabedoria. Por fim, deram àquela que reunia todos os encantos da mulher o nome de Vênus. Todo o objeto digno de ser amado tem a sua porção de Vênus, ou seja, uma porção dessa beleza inefável. A mais tocante de todas seria a sensibilidade, uma alma da alma que anima todas as faculdades.

"O femmes, c'est par votre sensibilité que vous enchaînez les ambitions des hommes! Partout où vous avez joui de vos droits naturels, vous avez aboli les éducations barbares, l'esclavage, les tortures, les mutilations, les croix, les roues, le bûchers, les lapidations, le hacher par morceaux, et tous les supplices cruels de l'antiquité (...) Partout vos avez été les premières à honorer de vos larmes les victimes de la tyrannie, et à fiare connaître les remords aux tyrans. Votre pitié naturelle vous donne à la fois l'instinct de l'innocence et celui de la véritable grandeur. C'est vous qui conservez et embellissez de vos souvenirs les renommées des conquérants magnanimes dont les vertus généreuses protégèrent les faibles, et surtout votre sexe." (pág. 33)

A mulher surge, para Bernardin de Saint-Pierre, como "a flor da vida". Seria no seu busto que a natureza ofereceria as gerações e as primeiras afeições. Elas civilizariam o gênero humano e elas aproximariam os povos através do acasalamento de forma mais eficiente do que a diplomacia e os tratados o poderiam fazer.

Elas seriam as almas das indústrias nacionais e da navegação. Seria para procurar agradá-las que os homens teriam feito e fariam as grandes viagens às Índias. Já Plínio dissera que, na sua época, tal comércio se fazia sobretudo para as mulheres. Para que os homens teriam precisado de especiarias, perfumes, sêdas do Oriente, ouro e jóias senão para agradar mulheres? Elas constituíam por toda a terra uma grande rêde. Elas criariam correntes de flores no globo.

"O Françaises, c'est pour vous que l'Indienne donne aujourd'hui la transparence au coton et le plus vif éclat à la soie! Ce fut pour vous que les filles d'Athènes imaginèrent ces robes commodes et charmantes, si favorables à la pudeur et à la beauté (...) La mode vous en a revêtues; et elles ont ajouté à vos grâces naturelles. (..) Vous êtes les reines de nos opinions et de notre ordre moral. Vous avez perfectionné nos goûts, nos modes, nos usages, en les simplifiant." (pág. 35)

As mulheres seriam, para Bernardin de Saint-Pierre, os juízes por excelência de tudo que é decente, gracioso, bom, justo e heróico. Elas teriam influenciado com os seus julgamentos toda a Europa, e Paris tornara-se o seu "foyer". Seria nesse espaço dominado por mulheres, e à vista das mulheres, que os soldados eram animados a procurar o perigo e a morte, em defesa da pátria. A língua francesa devia à mulher a sua clareza, a sua pureza, a sua elegância, a sua doçura, tudo o que nela era digno de ser amado e que era ingênuo.

Ao doce som da voz feminina, o sofista audacioso se confundiria, o fanático redescobriria a sua humanidade, o ateu a existência de Deus. Os sorrisos femininos dessipariam os argumentos frios do materialismo. (pág. 36)

Éloge de Prévost-Paradol (1829-1870): hino ao amor inocente

Lembrando a recepção fria que a obra de Saint-Pierre recebeu no salão da Madame Necker, e o seu sucesso de público, Lucien Anatole Prévost-Paradol, jornalista e essaísta de orientação liberal, posteriormente embaixador da França nos EUA, salientou os riscos dessas apresentações de salão.

Os seus participantes não estariam em condições de apreciar uma simplicidade tão perfeita. O autor, amante religioso da natureza, teria tido a necessidade, nesse complemento de seus Études de la nature, de embelezar a natureza ainda mais através da pintura da juventude, da inocência e do amor.

Em Paul et Virginie, o homem, representado na idade na qual surge como mais amável, e a mulher, personificada como uma criatura encantadora, dando-se as mãos, formariam a mais graciosa imagem da humanidade. Se o romance resistira a todas as mudanças de opinião e a todos os caprichos de gôsto era porque dizia respeito ao mais forte e duradouro do coração humano. Êle ofereceria a todos a imagem sempre atraente de uma pura e perfeita felicidade. Encantaria as almas tranquilas, porque respiraria inocência; outras seriam movimentadas por nele sentir paixão; os espíritos delicados ficariam felizes de nele ver a inocência e a paixão combinando-se na medida certa.

A civilização teria feito do amor uma ciência e um combate. Ao pudor da mulher ajuntaria o interesse, as conveniências e o costume, e junto aos homens excitaria a audácia, a dificuldade da luta e a vaidade do sucesso. Misturado assim com elementos estranhos, o amor teria sempre, mesmo para uma alma elevada, qualquer coisa de falso e incompleto.

Sonhar-se-ia em outro amor, onde o interesse e a vaidade nada valem, nascido não do costume, das leituras, do capricho dos sentidos, da curiosidade, das mil excitações da vida civilizada, mas sim de si mesmo, na plena liberdade da solidão e da segurança ingênua da inocência. Esse amor puro acordaria docemente, enchendo a alma de uma preocupação desconhecida, fazendo-a aprender, por uma surprêsa delicada, o quanto a vida oferece de prêmios e a terra é fecunda em prazeres.

Aqueles que, do seio da civilização imaginam um tal amor, querendo que êle nasça somente da inspiração da natureza, misturam lembranças e sonhos. À pureza e à segurança do estado da natureza somam todos os encantos com os quais a civilização enriqueceu o amor, formando uma mistura feliz daquilo que a natureza possui de mais doce e a sociedade de mais elevado, compondo um ideal, cujo defeito é apenas o de não ter sido feito para a terra.

Europa e Île de France: supérbia e pureza do estado natural

Esse quadro, pintado por Bernardin de Saint-Pierre, não teria tido as necessárias sombras se, pintado de longe, a Europa não tivesse sido retratada em cores tristes, e se a civilização, naquilo que tem de mais duro e severo, não tivesse sido colocada como oposta à felicidade daqueles que vivem segundo a natureza.

Na sua obra La Chaumière indienne, a cidade de Delhi fora pintada por Saint Pierre como amedrontadora na sua supérbia, contrastando com a cabana do pária, escondida entre árvores e flores. Em Paul et Virginie, um similar contraste coloca a Europa em oposição à Île de France, a sociedade ao estado da natureza. Nesse drama tão puro, onde a beleza moral é valorizada, onde os personagens parecem apenas querer a felicidade recíproca, o único papel negativo cabe à Europa. Tudo o que esta envia vem de uma terra funesta. É o plantador que tortura os negros; é a polidez fria do Sr. de la Bourdonnais; são as cartas de Virginie; é o golpe de vento que lança o navio às costas. A Europa surge como fonte de todos os males. A Europa recebe todas as culpas.

"Ile charmante de Bernardin de Saint-Pierre, vous ne seriez pas restée longtemps un séjour d'ignorance et de pureté, le paradis de l'état de nature! Vous eussiez bientôt connu la civilisation, parce qu'elle fût sortie de votre propre sein, et qu'il ne suffit pas de la maudire pour l'éviter. (...) Que deux générations se passent, et l'histoire sera créée, la philosophie sortira de l'histoire comme du spectacle de la nature, la justice s'exprimera par des lois, et la civilisation naîtra, comme une production naturelle, du sein de cette société commençante." (pág. 6-7)

Paul et Virginie sob a perspectiva dos Gender Studies

As idéias relativas aos sexos e, sobretudo, a imagem da mulher que transmite faz com que a obra de Bernardin de Saint-Pierre surja como de interesse para os estudos de gênero, desde se conduzidos sob o aspecto de seus elos com os estudos interculturais.

Sob essa perspectiva, a obra de Bernardin de Saint-Pierre possibilita várias aproximações. Levanta-se a questão, por exemplo, se as suas concepções representam apenas projeções de convicções européias, em particular francesas, ou se a imagem feminina que criou ou que reproduz foi produto do processo de formação de identidades da sociedade colonial branca e mestiça da ilha.

Que o quadro histórico do desenvolvimento da humanidade a partir de suas concepções de gênero é insustentável e, no caso da mitologia antiga, decididamente errôneo, isso não apresenta tanto significado para estudos dirigidos à compreensão de conceitos e de imagens da época e que experimentarem considerável difusão.

Considerando que outros viajantes se referiram a características da educação e da cultura feminina na Île de France que coincidem em linhas gerais com aquelas que marcam a imagem oferecida por Saint-Pierre, poder-se-ia partir da hipótese de que as circunstâncias da constituição populacional da colonia, entre outras com a presença de mulheres do Malabar e de ilhas do arquipélago malaio tivessem contribuído ao estabelecimento dos modos de comportamento e critérios de feminilidade que tanto impressionaram a Bernardin de Saint-Pierre.

Ter-se-ia, nesse caso, a situação relevante do ponto de vista de uma história intercultural que um tipo-ideal de mulher desenvolvido sob condições coloniais em regiões extra-européias, no caso de um complexo cultural creolo, passou a exercer influência na Europa, marcando as concepções relativas à mulher na França e em países por ela culturalmente influenciados.


Inocência (1872) de Visconde de Taunay (1843-1899)

Alfredo d'Escragnolle Taunay, na sua dedicatória a Azevedo Castro, em 1872, designa a sua obra, publicada em inúmeras edições no Brasil e no Exterior (1a. Rio de Janeiro Typographia Nacional, 1872), como uma narrativa campestre e despretenciosa, como um livro singelo e sem futuro. Lembra aqui, portanto, as palavras de Saint-Pierre sobre a sua obra, a que denominava também de pastoral. Também Inocência deu ensejo a obras dramáticas e musicais. Entre as últimas, motivou a ópera La Boscaiuola, encenada em 1910, de João Gomes Júnior (1868-1871), e da ópera Inocência, de Leo Kessler (1882-1924). Foi o primeiro romance brasileiro utilizado na cinematografia (1915).

Paul et Virginie é citado explicitamente nas palavras condutoras do capítulo XVIII, denominado de Idyllio. Taunay cita também as Harmonias da natureza no capítulo XXI, de título Papilio Innocentia. O trecho escolhido de Paul et Virginie é aquele em que Virginie sente o despontar da afeição:

"Entretanto, desde algum tempo, sentia-se Virginia agitada de mal desconhecido... Em sua fronte, não pousava mais a serenidade, nem o sorriso lhe pairava nos labios... Pensa ella na noite, na solidão e fogo devorar a abraza toda".

No romance, esse estado é colocado primeiramente na boca de Cyrino:

"Oh disse elle com fogo, doente estou eu agora... Sou eu que vou morrer... porque você me enfeitiçou, e não acho remedio para o meu mal. (...) Sim... você que é uma mulher como nunca vi... Seus olhos me queimaram... Sinto fogo dentro de mim...Já não vivo... o que só quero é vel-a... e amal-a, não conehço mais o que seja somno (...) Ué, exclamou ella, pois amor e soffrimento? (....) Então... eu amo, confirmou Innocencia (...)"(Visconde de Taunay, Innocencia, 15 edição brasileira, illustrada por F. Richter, São Paulo: Melhoramentos, s/d, 140-141).

No Capítulo XXI, o trecho citado por Taunay parte da composição das asas da borboleta; correspondentemente, Taunay inclui no seu texto uma borboleta de maravilhoso colorido (op.cit. pág. 158).

Assim como em Saint-Pierre, ambos os protagonistas falecem, primeiramente Virginie e depois Paul. Em Taunay tem-se o mesmo, ainda que em posição invertida. O término do romance é a menção da morte de Inocência:

"Innocencia, coitadinha... Exactamente nesse dia fazia dois annos que o seu gentil corpo fôra entregue à terra, no immenso sertão de Sant'Anna do Paranahyba, para ahi dormir o somno da eternidade". (op.cit. pág. 227).

Embora uma análise pormenorizada poderia mostrar não apenas similaridades mas também as grandes diferenças entre as duas obras, não pode haver dúvidas da repercussão da obra mestre de Saint-Pierre na obra do Visconde de Taunay. No lugar da Île de France, tem-se aqui o sertão de São Paulo e de Mato Grosso, no lugar do creolo mauriciano, o sertanejo brasileiro.

"Sur le côté oriental de la montagne qui s'élève derrière le Port-Louis de l'île de France, on voit, dans un terrain jadis cultivé, les ruines de deux petites cabanes. Elles sont situées presque au milieu d'un bassin, formé par de grands rochers, qui n'a qu'une seule ouverture tournée au nord. On aperçoit à gauche la montagne appelée le Morne de la Découverte..."

"Corta extensa e quasi despovoada zona da parte sul-oriental da vastíssima provincia de Matto-Grosso a estrada que da villa de Sant'Anna do Paranahyba vae ter ao sitio abandonado de Camapoan.  (...)"

(...)

M. Souza Teixeira e grupo redatorial sob a direção de A.A.Bispo


  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a utilizar-se de designações similares.

 




  1. Acima: Monumento a Paul et Virginie, no átrio da igreja Saint François d'Assise, em Pamplemousses. Essa igreja é vista como sendo a primeira edificada em Maurício (1756). A casa paroquial é de 1737. Segundo o romance de Saint-Pierre, Virginie foi sepultada ao lado da igreja. Abaixo: ilustrações divulgadas do romance, expostas na vila Eureka. Fotos H. Hülskath

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 123/3 (2010:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho científico
órgão de
Brasil-Europa: Organização de estudos teóricos de processos interculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
- Academia Brasil-Europa -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2537


©


Cultura e Natureza em visões do Homem: Île de France e Brasil

Paul et Virginie de Bernardin de Saint-Pierre (1737-1814)
e
Inocência (1872) do Visconde de Taunay (1843-1899)

Encerramento do ano França-Brasil/Brasil-França 2009 da Academia Brasil-Europa
no contextodo seu programa de estudos dedicado ao complexo temático
Cultura e Natureza
Pamplemousses, Ilhas Maurício, 2009
sob a direção-geral de A.A.Bispo

 
 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________