Ayes de mi País: Cancioneiro de M. Valladares. Revista BRASIL-EUROPA 126. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 
A presente publicação, de excelente qualidade visual e de impressão, é dividida em duas partes. A primeira, representa um estudo historiográfico, de autoria de José Luís do Pico Orjais. A segunda, é dedicada à análise de partituras, da responsabilidade de Isabel Rei Sanmartim.


José Luís do Pico Orjais (Ogrobe 1969), que se considera natural da Ilha de Arousa, foi professor de Teoria e Método do Folclore no Conservatório de Música Tradicional e Folque de Lalim e de Historiografia da Música Tradicional Galega no curso de "Especialização em Música Tradicional"  a nível de pós-gradução da Universidade de Santiago de Compostela. Foi membro fundador do grupo Leixaprén, com o qual gravou Na festa do boi e Gáutropos. Recebeu o primeiro prêmio na Muestra Nacional de Folk organizada pelo Instituto da Juventude do Ministerio de Cultura de Espanha. É membro da Sociedad Ibérica de Etnomusicologia e do Colectivo Arma-danças. Atua como professor no CEP Brea Segade de Taragonha (Rianjo), profere conferências  e tem publicado artigos sobre o folclore galego-português em revistas especializadas. Em 2005, publicou o cancioneiro Cantos e bailes da Galiza, de José Inzenga (Editora: Difusora de Letras). Orientou as pesquisas que levaram aos discos Os Dezas de Moneixas, As cartas sonoras e, com Covadonga Argüelles, Son de Rianxo.


Na sua apresentação, José Luís do Pico Orjais expõe os princípios metodológicos que orientou o seu trabalho e descreve as condições do texto. Este é de autoria de um vulto significativo da cultura da Galícia, contando com considerável bibliografia relativa à sua obra filológica e literária. Do texto existem um manuscrito autógrafo e dois apócrifos, fragmentos e tradição indireta. A parte literária já se encontra publicada. Optou-se assim pela transcrição das quadras como se encontram no original, de acordo com os critérios linguísticos de seu autor na época. As partituras são publicadas em fac-simile, uma vez que foram escritas em 1865, pelo seu próprio autor, o que lhes confere elevado valor histórico-patrimonial. Com a análise das músicas e através de comparações com outros testemunhos, pretende-se oferecer partituras atualizadas e corretas. Com a consideração de outras criações musicais de Marcial Valladares, procurou-se compreender o seu processo criativo. A obra é entendida como uma proposta interdisciplinar, abrindo perspectivas para tratamentos amplos que reunam aspectos históricos, musicológicos, linguísticos, estéticos e outros.


O Estudo Historiográfico de José Luís do Pico Orjais é dividido em duas partes, dedicadas ao Contexto (págs. 17-38) e ao Texto (págs. 39-71), encerrando-se com Conclusões.


Com relação ao Contexto, consideram-se três ítens: A vida musical em Vilancosta; A ideia dum cancioneiro e Notas sobre a música patrimonial na obra de Marcial Valladares.


A vida musical em Vlancosta é considerada nos sub-ítens Marcial Valladares: músico e O ambiente filarmónico de Vilancosta.


Mencionando os estudos e monografias sobre a vida e obra do escritor de múltiplos interesses e defensor da cultura galega, o autor salienta o fato de ser Marcial Valladares, como músico, menos considerado. Entretanto, publicou melodias populares que coletou e que arranjou para piano. Da sua obra musical impressa citada, cumpre que se saliente ser dele a primeira impressão de música tradicional galega (1866). Tratando-se antes de material folclórico com simples acompanhamento, levantou-se a questão se Marcial Valladares deva ser visto antes como um intelectual preocupado pela música tradicional galega ou como um músico no sentido pleno do termo. Para considerar essa questão, o autor do texto considerou o ambiente filarmónico de Vilancosta, uma localidade na paróquia de Berres. Levantou dados de relevância sobre a música na família de Valladares e sobre os instrumentos executados pelos seus membros - guitarra, violino, flauta e piano. O autor sugere que a simplicidade das harmonizações de música tradicional do século XIX não deve ser considerada como manifestação de falta de capacidade. Ela pode ser expressão de uma decisão consciente, baseada teoricamente em concepções que contrapunham a aldeia à cidade, o fácil ao difícil, o natural ao artificial. (pág. 21)


No tópico A ideia dum cancioneiro, José Luís do Pico Orjais inclui considerações sobre Precedentes: A Canção de Salão, Os cancioneiros de música tradicional e A música evocatória e outras. A seguir, levanta-se a questão Por que um cancioneiro? Aqui, considera-se A base ideacional de Marcial Valladares: religião, natureza e pacifismo, O povo e o idioma e A recolha etnográfica. Dessa última, salienta-se que as suas atividades foram diversificadas, incluindo contos, trava-línguas, poesia popular, provérbios, medicina tradicional e outros aspectos do folclore.


No tópico Notas sobre a música patrimonial na obra de Marcial Valladares, o autor considera que de sua obra podem ser tiradas muitas informações sobre o patrimônio musical galego, indicações a respeito de músicos tradicionais, descrições de festas e romarias. Alguns aspectos particularmente significativos são destacados: A Gaita, nas suas distinções Gaita grileira, Gaita tumbal ou roncadora, A Misa de Gaita, O consort de instrumentos tradicionais, O turreiro da festa: uma foliada em 1843, A Sanfona e a música de cegos, A flauta e a requinta da Ulha, Cantigas dos portos e Coros de camponeses bailam para os Bourbons.


Na segunda parte do seu estudo historiográfico, dedicada ao Texto, José Luís do Pico Orjais considera Os destinatários, As múltiplas fontes, As pegadas no tempo e Algumas notas historiográficas em torno à classificação das formas musicais em Ayes...


Sob Os destinatários, trata dos ítens "A mis hermanas", Manuel Murguía et alii, Da Historia de Galicia à Sociedad del Folk-Lore gallego, e Músicas de outras terras.


Sob As múltiplas fontes, trata do Manuscrito autógrafo de Vilancosta, Arquivo familiar, do Manuscrito apócrifo do Museu de Ponte Vedra 1, 2 e 3, da Coletânea da Historia de Galicia de Manuel Murguía, do Manuscrito apócrifo do arquivo da família Santalices, Edições cinzentas, Bibliografia diversa, Outras recolhas de Marcial Valladares ou atribuídas a ele e Outras cópias manuscritas do Ayes...


Sob As pegadas no tempo, o autor expõe a sua convicção de não ser possível estudar os cancioneiros galegos como objetos independentes, devendo ser tratados como capítulos do Cancioneiro Galego no seu conjunto. Em quadro, procura demonstrar como Ayes de mi país passou a fazer parte dos principais repertórios de cantos populares, podendo ser detectados em vários cancioneiros. O autor considera cancioneiros e coleções de Marcial del Adalid e Felipe Pedrell, Casto Sampedro Folgar, José Inzenga, Fr. Luís M. Fernández Espinosa, J. Bal y Gay e Martínez Torner, Daniel González e outros.


Em Algumas notas historiográficas em torno à classificação das formas musicais em Ayes...são considerados os ítens Alalá, Cantinelas, Ciclo natalício, Canto de Reis, XXIX, e Os Aguinaldos (janeiras).


Nas suas considerações sobre o Alalá, o autor parte de pormenorizada definição do termo na Enciclopedia Galega Universal, salientando que esta não corresponde ao que se entendia sob o termo em 1865. O primeiro vocabulário a incluir o termo, na forma a-lá-lá foi  o de Valladares, onde é explicado como estribilho ou conclusão de cantigas de aldeães. Para José Luís do Pico Orjais, antes de perguntar-se o que é alalá dever-se-ia constatar o que não é. Segundo a classificação oferecida nos Ayes... poder-se-ia concluir ser um termo geral de referência à música patrimonial galega quando não se trata de uma de suas formas singulares, como os cantos do pandeiro, as moinheiras ou nos cantos do ciclo do Natal. As cantigas tratadas sob esse termo, porém, possuem características bem marcadas.  Os quatro Alalás, em 2/4, apresentam uma configuração rítmica que se acomoda à da moinheira velha. Junto com os cantos do pandeiro, representariam essas as duas formas musicais mais castiças. O termo, porém, teria uma origem erudita, designando o canto tradicional galego com a sua característica de ter uma coda desprovida de significado. O campo semântico ter-se-ia modificado, até chegar, hoje, a definir uma forma musical. (pág. 62)


Esse desenvolvimento é inserido pelo pesquisador nas tendências do século XIX de criação de um repertório iconográfico com símbolos da nação. Ao lado da bandeira, do hino, do gaiteiro, também formas musicais teriam servido à procura da representatividade galega, levando ao Alalá substantivado.


Nas suas considerações sobre as Cantinelas, José Luís do Pico Orjais empresta particular atenção à "falta de enxebrismo" desse grupo, que inclui cantigas vindas da música cênica e de outros folclores não galegos, resultados de processos migratórios e imigratórios. Para o pesquisador, trata-se de um repertório influenciado pela música trazida por retornados da emigração peninsular. Em alguns casos, as cantigas colhidas por Valladares na Ria de Arousa, em 1853 e 1865, indicam a penetração do castelhano através dos povoados de portos. (pág. 67)


Os dados analisados por José Luís do Pico Orjais relativos ao Ciclo natalício surgem como de particular interesse para os estudos culturais da tradição do Vilancico em Portugal e das muitas expressões tradicionais afins conservadas no Brasi. O autor menciona que as cantigas do período de Natal registradas por Valladares constituem um pequeno cancioneiro de dois cantos de Noite Boa, um Vilancico, um canto de Reis e dois aguinaldos (janeiras) de Noite Boa e Reis. De particular interesse sob a perspectiva brasileira é o fato de que a narração dos Cantos de Noite Boa surge dramatizada, servindo o idioma à caracterização e à valoração: Maria, José, anjos e pastores falam em castelhano, o narrador, que se dirige ao povo e o "malvado mesoneiro" usam do galego. Também o Canto de Reis. XXIX surge em forma dramatizada, sendo o castelhano aqui reservado para a intervenção de Herodes.


Quanto aos Aguinaldos (janeiras), o autor se limita a apresentar um texto de Alfredo Vicenti, publicado em 1881 e que, de fato, constitui documento de excepcional valor para estudos comparados dessa prática de grupos que visitam casas, cantando de porta em porta, conhecida de Portugal, do Brasil e de outros países latino-americanos.


José Luís do Pico Orjais, nas suas conclusões, salienta a importância do vulto de Marcial Valladares como músico e coletador de música tradicional, da sua obra e da influência que esta exerceu em trabalhos posteriores. Propõe-se dar continuidade ao trabalho de pesquisas e revelação do legado de Valladares.


Isabel Rei Sanmartim (Estrada, 1973), responsável pela parte da obra referente à Análise de partituras, formada pelo Conservatório Superior de Música da Crunha (1995), tendo-se especializado em guitarra com António Rocha Álvarez, David Russell e Thomas Müller-Pering  na Hochschule für Musik Franz Liszt, de Weimar, é membro da Academia Galega da Língua Portuguesa, entidade constituída em 2008. Esteve presente com um trabalho de pesquisa sobre A guitarra no Arquivo Valladares: música galega na Lusofonia no IV Encontro Açoriano da Lusofonia (Lagoa 2009) e tem contribuído para a divulgação da música para guitarra galega em concertos em diversos países da Europa.


Após apresentar os critérios de edição das partituras, a pesquisadora oferece aos leitores palavras introdutórias de título Ayes de mi país, Cancioneiro inédito, no qual relata as circunstâncias em que decorreu o seu contato com esse documento, com o acervo e com o ambiente de sua família, salientando que o Ayes de mi país é mais do que uma compilação de música tradicional, representando um livro de canções, de peças de salão, um presente, uma obra de arte familiar. (pág. 199)


A seguir, trata do Objetivo do cancioneiro, da Descrição musical, aqui considerando em particular o Estilo do cancioneiro, da Relação com outros cancioneiros para canto e piano (Adalid e Valladares; Inzenga, Pedrell, Torner e Valladares), da Estrutura musical das cantigas, analisando a Relação da estrutura musical com as estrofes e oferecendo Considerações gerais sobre as cantigas, da Análise geral de outros aspetos musicais (As melodias, As harmonizações, Versões e prática musical, Modelos rítmicos), de Os textos poéticos e da Análise das canções.


Dando continuidade ao que sugere com as suas palavras introdutórias, a analista salienta em vários pontos de seu estudo a perspectiva histórico-cultural que deve orientar a consideração das canções. O objetivo de Valladares seria antes o de reinterpretação da música tradicional, correspondendo a uma "vontade de construção artística sobre as bases da cultura própria" (pág. 200). Com relação ao estilo, Isabel Rei Sanmartim salienta que o cancioneiro em questão pertence às obras de criação de Valladares, tais como os seus poemas, contos e romances. Quanto aos companhamentos, supõe a participação de várias pessoas, sendo as composições próprias de Valladares as mais elaboradas. Também constata ecos da música de salão e da música erudita da época, em particular de Chopin e Liszt.  Percebe recursos técnicos do piano que salientam temas e contribuem a "uma estética renovada e plenamente galega" (pág. 201). Entretanto, as harmonizações, por serem tonais, diluem o caráter modal de algumas cantigas. Para a analista, no cancioneiro "reúnem-se duas sensibilidades musicais", uma advinda da música popular, outra, a dos acompanhamentos, proveniente da música acadêmica (págs. 201-202).


Na sua Conclusão, Isabel Rei Sanmartim diz ter tentado seguir o trabalho analítico que vem desenvolvendo a pesquisadora suíça Dorothé Schubarth relativamente à música galega tradicional. Salienta que a música erudita e a tradicional surgem, nas peças do Cancioneiro, unidas  "por um forte elo de comunicação artística", explicável sob as condições de processos culturais em emergentes nações do século XIX. Para a autora, o conhecimento e a interpretação dessas canções podem aguçar a sensibilidade para as manifestações culturais do passado e para "entender a música como um referente na compreensão dos processos que geram, movimentam e fazem evoluir todas as sociedades". (pág. 256)


Essa publicação, manifestando no seu todo e nos seus pormenores extraordinário cuidado no tratamento e na análise de fontes documentais, fundamentados em reflexões sensíveis e aprofundadas, representa uma obra de grande significado, não apenas para os estudos músico-culturais específicamente galegos. É uma publicação que surge como referencial para os estudos da cultura musical do mundo de língua portuguesa em geral, podendo oferecer inúmeros subsídios também para a pesquisa especializada do Brasil.


Antonio Alexandre Bispo





 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 126/26 (2010:4)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2633




Publicações


José Luís do Pico Orjais e Isabel Rei Sanmartim. Ayes de mi País: O cancioneiro de Marcial Valladares. Baiona (Pontevedra): Dos Acordes S.L., 2010. 290 págs. ilustrações, partituras em fac-símile, transcrições. ISBN: 978-84-936618-1-6

 

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