Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Lisboa, S. Domingos. Foto A.A.Bispo 2012©

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Fotos A.A.Bispo.Lisboa (2012),

©Arquivo A.B.E

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 140/6 (2012:6)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N°2944


A.B.E.


A Liberdade como conceito crucial nos Estudos Culturais do mundo de língua portuguesa
O espírito inquisitório, o fanatismo e a intolerância implantados pelos pregadores


125 anos da História da Inquisição de Henry Charles Lea (1825-1909)

 
Lisboa, S. Domingos. Foto A.A.Bispo 2012©
Os ciclos de estudos euro-brasileiros desenvolvidos em 2012, apesar da diversidade de questões tratadas em diferentes contextos, obedeceram a uma lógica interna determinada por motivos condutores das reflexões e resultantes de preocupações atuais.


Aberto o ano sob o signo da passagem dos 300 anos de Friedrich II da Prússia, cognominado de "O Grande" (1712-1786), um dos nomes históricos do Iluminismo, as atenções foram dirigidas ao Esclarecimento como processo transepocal a ser considerado como bem da Humanidade e ao qual os Estudos Culturais de orientação científica devem necessariamente contribuir. (http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Estudos-e-Esclarecimento.html)


Trazer à consciência o significado do patrimônio representado pelas difíceis conquistas do Homem no decorrer dos séculos surge como particularmente atual devido à intensificação de tendências, correntes e movimentos de fundamentação religiosa que se constatam em diversas partes do mundo e que são causas de destruições, atrocidades, guerras e conflitos de toda a espécie.


Sendo esses desenvolvimentos de tão graves consequências conduzidos pelos seus agentes em geral na convicção de estarem bem procedendo, de forma justificável e autorizada, até mesmo em nome da paz e de valores humanos, impõe-se aos Estudos Culturais que se voltem a análises de edifícios de concepções e imagens nos seus fundamentos e mecanismos que possam elucidar tal paradoxia e assim contribuir à superação de situações obscuras e das trevas que escurecem visões.


No decorrer dos ciclos de estudos, e sob a impressão do "massacre de Oslo", considerou-se também que os problemas constatados na atualidade não apenas são resultados de edifícios e  mecanismos sistêmicos de fundamentação religiosa, mas sim também de construções culturais seculares. Também aqui impõe-se a necessidade de análises do sistema de concepções e imagens, de seus mecanismos inerentes e que, se reconhecidos, podem ser desativados, assim como o dos pressupostos do seu vir-a-ser a partir de mudanças ocorridas através dos séculos no edifício de visões do mundo e do homem. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/139/Luzes-nordicas.html )


Nessas reflexões, conduzidas em diversos contextos, um conceito constantemente esteve presente, oferecendo-se até mesmo como sendo de crucial significado para os Estudos Culturais que se dedicam em especial a contextos euro-brasileiros: o de Liberdade.


A liberdade que a si tomam aqueles que agem sob o signo de religiões e movimentos políticos radicais tem como contrapartida o cerceamento da liberdade daqueles que padecem tais ações.


Considerações dessa natureza trazem à consciência a necessidade de estudos mais aprofundados de conceitos ou imagens de liberdade inerentes ou derivados de sistemas de concepções e imagens do mundo e do homem.


A necessária atenção à Liberdade nos estudos culturais em relações Europa-Brasil


No caso dos estudos euro-brasileiros a atenção dirigida à liberdade surge como fundamental, pois o início dos contatos dos europeus com a terra e os povos que descobriam foi marcado pela tomada de liberdade em apropriar-se do país, de expandir-se e de transformar culturalmente os seus povos, missionando-os.


Esse início foi marcado, ao mesmo tempo, pela perda crescente da liberdade dos nativos, aldeados e convertidos. Essa tomada de liberdade dos europeus pode ser vista hoje como expressão de uma extraordinária auto-consciência, de uma inserção tão absoluta daqueles que chegavam no seu próprio mundo que fazia com que tal procedimento surgisse como óbvio e justificável, sobretudo por corresponder a um mandato divino.


A intromissão na liberdade de outros surgia aqui em nome da autoridade suprema e justificava-se em nome de uma liberdade concebida diferentemente: a liberdade dos filhos de Deus.


Os estudos relativos ao processo de transformação cultural posto então em vigência precisam assim considerar diferentes acepções de liberdade, procurando aqui o pesquisador assumir uma posição distanciada que permita analisá-las nos seus respectivos contextos.



Ponto de partida: o marco em memória ao massacre de 1506 em Lisboa


Ponto de partida das reflexões foi uma visita ao local de maior significado histórico e simbólico da tragédia judaica em Portugal: o Largo de São Domingos em Lisboa.


Ali encontra-se um marco memorial que, em forma de estrêla de David, apresenta a inscrição "1506-2006. Em memória dos milhares de judeus vítimas da intolerância e do fanatismo religioso assassinados no massacre iniciado a 19 de abril de 1506 neste largo 5266-5766".


Esse memorial à "matança de Páscoa", ocorrida entre os dias 19 e 21 de abril de 1506, foi inaugurado pela passagem dos 500 anos do massacre no dia 23 de abril de 2006.


A menção à intolerância na inscrição possibilita o estabelecimento de uma ponte ao presente, fazendo com que o memorial ganhe um sentido admoestador, ampliando a problemática anti-semita à intolerância para com grupos étnicos e culturais minoritários.


Sendo o largo frequentado por muitos retornados e imigrantes das antigas colonias portuguesas, esse apelo à tolerância assume uma conotação específica: o da tolerância para com o Outro.


Essa ponte do passado ao presente, do anti-semitismo à xenofobia manifesta-se na frase "Lisboa, cidade da tolerância" que, com letras em diversas formas e tamanhos, em 34 línguas, cobre o muro de arrimo da ladeira adjacente ao largo, compondo um mural designado de Memorial às v´timas da Intolerância.


Um largo de conotações culturais populares


Uma tradicional casa de bebidas que marca o largo na história cultural popular de Lisboa, aguça a percepção observador para o fato de encontrar-se não apenas em l
ocal hoje frequentado por retornados e imigrantes, mas sim também por gente mais simples do povo, o que lhe empresta particular significado sob a perspectiva dos estudos culturais.


A menção ao fanatismo religioso no memorial revela sob este aspecto que este não pode ser interpretado apenas como apelo à tolerância para com o estrangeiro, mas sim também como indicador de um problema existente na própria sociedade, em particular nas suas camadas menos privilegiadas e mais religiosas.


A igreja de São Domingos como memorial expressivo de desenvolvimentos trágicos


O cenário altamente expressivo do largo é completado pela igreja que junto a êle se eleva e que o designa, a de São Domingos.


Reaberta em 1994 após ter sida assolada por um devastador incêndio em 1959, manteve os sinais da destruição causada pelo fogo, que incinerou altares de talhas douradas, pinturas e danificou revestimentos de mármores, criando um espaço interior de intensa dramaticidade na sua desolação, despertando sentimentos pungentes adequados para as reflexões relacionadas com os crimes que ali tiveram a sua origem.


O observador é levado inconscientemente a estabelecer um elo de sentidos entre as fogueiras que consumiram as vítimas do massacre no remoto passado e o fogo destruidor do templo no qual agiram os seus principais agentes instigadores.


Esse incêndio destruiu uma igreja que havia sido reconstruída após o terremoto de Lisboa de 1755 e que apenas conservara a sua capela-mor, obra representativa do período de magnificência cultural e artística de Portugal no século XVIII.


Na reconstrução, como em outros casos (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Conceicao-Velha-de-Lisboa.html), reutilizaram-se elementos arquitetônicos de outros edifícios, no caso em particular o portal, provindo da capela do Palácio da Ribeira. A igreja do convento de São Domingos havia passado por consideráveis reformas no decorrer de sua longa história, remontante aos séculos iniciais do Dominicanismo na Idade Média.


Necessário cuidado interpretativo: massacre de conversos


Ao recordar as referências históricas à "matança da Páscoa de 1506", o observador conscientiza-se da necessidade de uma maior diferenciação na interpretação do memorial.


Pelas suas palavras e pela estrêla de David, o marco refere-se ao massacre de judeus, sugerindo que estes foram vítimas de uma intolerância para com o Outro.


Na realidade, porém, tratou-se de um massacre de conversos, ou seja, de judeus que, mesmo que tivessem sido coagidos a assumir o Cristianismo em 1497, pertenciam como "cristãos novos" à comunidade cristã.


É provável que essa conversão forçada dos judeus, sobretudo daqueles expulsos em grande número da Espanha dos Reis Católicos em 1492 e refugiados em Portugal, tivesse servido sob D. Manuel I° (1469-1521) justamente para a sua proteção perante um povo fanatizado.


A animosidade e o ódio não foram assim dirigidos a não-cristãos, mas a "cristãos novos", a membros da própria sociedade acusados de manutenção de práticas judaicas. A intolerância, assim, surge como um problema interno, de desconfiança para com a fé e a sinceridade de conversão, não tanto porém por questões doutrinárias, mas sim pela preocupação supersticiosa pelas consequências que podem trazer esses pecados dos cristãos à terra e ao povo através dos castigos divinos.


Tratou-se, assim de uma questão antes relativa à heresia e própria de um espírito inquisidor, uma vez que a inquisição é dirigida para o interior do corpo cristão, não para os não-cristãos.



Época do ano litúrgico e circunstâncias de atribulação do povo


A época do ano litúrgico em que decorreu e as circunstâncias da época auxiliam a compreensão dos acontecimentos. Tratava-se de uma época do ano preparada pela Quaresma e Semana Santa, onde a culpa dos judeus na morte de Jesus havia sido certamente acentuada.


Quanto as circunstâncias, precisa-se considerar que eclodiu numa época marcada pela sêca, pela fome e peste, quando as pessoas de posses haviam abandonado Lisboa, restando na cidade apenas os menos privilegiados. A Corte retirara-se para Beja e também o rei encontrava-se a caminho.


Compreende-se, assim, que nestas circunstâncias determinadas pela carência, pelo sofrimento e pelo mêdo, os fiéis das camadas mais modestas da sociedade se dedicassem com particular fervor às preces.


Segundo o que os pregadores afirmavam, sêca, fome e peste eram castigos divinos pelo pecado, sobretudo pela heresia.


Esboço de um quadro dos acontecimentos segundo referências históricas


A eclosão deu-se significativamente durante um ato de oração na igreja de São Domingos. No decorrer das preces, um fiel assegurou ter visto, na imagem da capela de Jesus da igreja, um sinal considerado como milagroso.


Alguns presentes julgavam tratar-se de um efeito natural, e um "cristão-novo" procurou demonstrar que o pretendido milagre era apenas um reflexo de luz de uma vela acesa ao lado da imagem.


Segundo Damião de Gois (1502-1574) (Chronica do Felicissimo Rey D. Emanuel de Gloriosa Memoria, 1566), alguns homens de baixa condição social arrastaram-no pelos cabelos, mataram-no fora da igreja e queimaram o corpo no Rossio.


O cronista fala assim explicitamente de que o ato partiu de pessoas mais simples do povo.


A grande culpa nessa ocorrência e nos acontecimentos a que a ela se seguiram cabe, porém, aos Dominicanos.


Segundo a crônica, um frade do convento, com um crucifixo às mãos, pregando, instigou o povo que se aglomerou contra os cristão-novos aos gritos de Heresia! Heresia!.


O cronista menciona que os Dominicanos teriam até mesmo chegado a prometer a absolvição dos pecados de 100 dias para aqueles que matassem os cristãos-novos vistos como hereges.


Segundo Damião de Gois, o fervor dos pregadores teria impressionado os muitos marinheiros estrangeiros presentes - mais de 500 -, entre êles dos Países Baixos, da Zelândia e Alemanha. Ainda que certamente não compreendendo o que os Dominicanos pregavam, esses marujos passaram  a fazer arruaças, matando os cristãos-novos que encontravam. Os corpos, em parte ainda com vida, eram queimados em fogueiras acesas na Ribeira e no Rossio.


Nessas atividades, os marujos estrangeiros foram auxiliados por escravos e moços portugueses que juntavam e carregavam lenha para as fogueiras, alimentando-as.


Concomitantemente, os Dominicanos andavam pelas ruas concitando a multidão, agora já de mais de mil homens de Lisboa, de mesma categoria social dos marujos.


Na Segunda-Feira, o massacre teve continuidade ainda com maior crueldade. Tendo os cristão-novos procurado abrigo em suas casas, foram estas arrombadas. Com suas mulheres e jovens foram lançados nas fogueiras, vivos ou mortos. Crianças e bebês eram fendidas ou arremessadas contra as paredes. As casas foram saqueadas.


Mesmo aqueles que se encontravam nas igrejas na esperança de abrigo, foram apanhados, mortos e queimados.


Nesse dia de Pascoela, morreram mais de mil conversos.


Aproveitaram-se da ocasião portugueses que davam a entender aos estrangeiros que seus inimigos eram cristão-novos, assaltando as suas casas.


Na Terça-feira, já não mais se encontrando quase conversos, uma vez que aqueles que haviam escapado tinham sido abrigados por famílias piedosas, pereceram ca. de 1900 pessoas. No largo de São Domingos, levantaram-se fogueiras para que os cristãos-novos fossem ali mesmo queimados. Por engano, chegou a ser assassinado um escudeiro do rei, João Rodrigues Mascarenhas, também cristão-novo, porém não judeu.


Ao chegar as tropas sob o regedor Aires da Silva e o Governador D. Álvaro de Castro, a matança já estava quase terminada. Deram notícia ao rei, que se encontrava na vila de Avis a caminho de Beja. Este enviou o Prior do Crato e D. Diogo Lopo com poderes para punir os culpados.


Os estrangeiros, com os despojos, retiraram-se para os seus navios. Muitos dos portugueses foram presos e enforcados. Os dois frades dominicanos, que andaram com o crucifixo pela cidade, perderam a sua condição de religiosos e foram queimados.


Os fiéis envolvidos tiveram os seus bens confiscados e os representantes da cidade foram expulsos do Conselho da Coroa. O convento, pelo que tudo indica, permaneceu fechado durante muitos anos.


Assim como descrito, o rei e os círculos da população de situação social mais privilegiada não tiveram influência imediata na eclosão do massacre, sendo este resultado de pessoas do povo exacerbadas na sua religiosidade sob instigação dos padres pregadores de São Domingos.


Essas instigações, segundo a Crônica, não disseram respeito a judeus, mas sim a hereges entre os conversos, demonstrando a intensidade da desconfiança e o espírito inquisitório implantado na cultura popular pelos pregadores.


Essa desconfiança intensificou-se em época de peste, sêca e fome devido à crença que seriam castigos de Deus devido a heresias no povo cristão. Essa crença era defendida e propagada pelos Dominicanos e utilizada em textos relativos à Inquisição.


Releitura da história da Inquisição sob a perspectiva dos Estudos Culturais


O espírito inquisitório estava assim profundamente implantado na cultura popular, independentemente da ação institucional da Inquisição, representando os seus pressupostos.


Nos estudos dedicados à Inquisição, a atenção tem sido dirigida quase que exclusivamente a aspectos institucionais, não considerando-se suficientemente a existência do espírito inquisitório na própria cultura, em particular de camadas mais modestas da população.


Pouco se tem atentado ao fato de que medidas institucionais foram resultado de pressões derivadas dessa fanatização do povo em ação secular de ordens religiosas, dos Franciscanos e, sobretudo, dos Dominicanos.


A literatura relativa à Inquisição merece ser assim relida sob esta perspectiva dos estudos culturais. Como exercicio, partiu-se, no ciclo de estudos, de uma das obras já clássicas a respeito da Inquisição na Idade Média, a de Henry Charles Lea (1825-1909), um estudo sob muitos aspectos pioneiro e que apresenta a característica de não refletir visões eclesiásticas. (History of the Inquisition of the Middle Ages, New York 1888; em tradução alemã Geschichte der Inquisition im Mittelalter II, Bonn 1905, nova ed. Greno 1020, 1987; 213-216).


Já em 1211 Afonso II teria demonstrado o seu cuidado pela pureza da doutrina, defendendo leis mais severas contra a heresia. Quando, porém, o primeiro provincial dominicano da Espanha tentou introduzir inquisidores da Ordem de São Domingos nos reinos, Afonso II não o autorizou, continuando as acusações de heresia a ser tratadas pelos foros jurídicos episcopais comuns. Segundo H. Ch. Lea, nesta época teria havido considerável liberdade de pensamento,


Ao redor de 1325, Alvares Pelayo registrou uma longa série de êrros que o monge Thomas Scotus defendia. Ainda que segundo o autor tivesse chegado a afirmar que os fundadores das três grandes religiões fossem ludibriadores, a tolerância da população apenas foi ultrapassada quando afirmou que Santo Antonio teria tido concubinas. Foi apenas aqui, ou seja, no âmbito mais propriamente da religiosidade popular, que o prior dos Franciscanos o fêz encarcerar e processar.


Em 1376, uma bula pontifícia autorizou o bispo de Lisboa a nomear um inquisidor franciscano, uma vez que não havia inquisidores no reino, tendo sido o primeiro Martin Vasquez.


Com a cisão da igreja em 1378, tendo Portugal e a Espanha apoiado diferentes papas, também os Dominicanos espanhóis foram divididos. Os portugueses nomearam um vigário geral e, em 1418, um Provincial. Assim, um outro franciscano seguiu-se a Martin Vasquez. Em 1394, Rodrigo de Cintra, que se denominava de Inquisidor de Portugal e do Algarve, pediu confirmação papal,


A esse pregador de D. João I seguiu-se um Dominicano: Vicente de Lisboa, que havia sido Provincial na Espanha. Em 1413, nomeou-se a inquisidor um confessor real, o Franciscano Afonso de Alprão. A partir de 1418, quando o reino foi organizado como província dominicana independente, todos os provinciais foram ao mesmo tempo inquisidores gerais. Houve uma longa série desses inquisidores até a introdução da nova Inquisição, em 1531, pouco se sabe, porém, de suas atividades, supondo-se não terem sido intensas.


Esse quadro traçado por Henry Charles Lea sugere um papel particularmente relevante desempenhado pelos Franciscanos na implantação do espírito inquisitório na cultura popular.


Teria havido, assim, numa primeira fase, uma implantação do espírito cerceador da liberdade de pensamento antes através de expressões visuais, imagens do culto de santos, encenações populares e da mística. A ela teria seguido uma fase mais verbal e doutrinária, marcada pela palavra dos pregadores dominicanos.


Como o massacre de Lisboa de 1506 exemplifica, os dominicanos agiram antes como instigadores, aproveitando-se de uma situação para intensificar o ódio contra a heresia; a causa, porém, residiu numa dúvida de cristão-novo a respeito de um fenômeno de luz visto como sinal divino, ou seja, de credulidade e misticismo.


Tudo indica que foi a pressão popular de um povo assim fanatizado que levou não apenas à já mencionada conversão dos judeus à época de D. Manuel I° como tambem a seu pedido de autorização ao Papa para a instituição da Inquisição em Portugal em 1515.


Como Henry Charles Lea interpreta, ainda que tivesse um provincial dominicano à disposição, parece não ter usado de seus serviços. A nomeação caiu no franciscano Henrique de Coimbra.


À época de D. João III° (1502-1557), "o Piedoso", foi marcada pelo fanatismo religioso e pela Inquisição estabelecida.


Em 23 de maio de 1536, por bula papal, instituiu-se a Inquisição, com sede inicialmente em Évora, passando a seguir a Lisboa. É significativa a data dessa bula, por cair na epoca da festa de São Jorge, uma vez que o combate ao dragão pode ser lido figurativamente no sentido de combate à heresia.


A instituição da Inquisição de início a uma fase de incentivo à denunciação, sendo o povo levado a fazer acusações. Pode-se compreender que o fomento desse espírito denunciador instaura uma atmosfera de desconfiança, temor e coibição da liberdade do pensar e do exprimir-se.


Em 1539, o cardeal D. Henrique (1512-1580), irmão do rei e posteriormente o seu sucessor, tornou-se inquisidor. Em 1551, estabeleceram-se tribunais em Coimbra, Porto, Lamego e Tomar. Em 1544, redigiram-se instruções, sendo o primeiro regimento datado de 1552.


Francisco Xavier S.J. solicitou, em 1545, a introdução da Inquisição em Goa. Também aqui as vítimas foram os conversos que, fugindo de Portugal, ali procuravam refúgio. O mais famoso foi Garcia de Orta, acusado de continuar com práticas judaicas; os seus ossos foram queimados publicamente em 1580. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/131/Tema_em_debate.html)


Consequências globais de uma cultura marcada pelo espírito inquisitório


Como consequência do clima repressivo, inquisitor e repleto de riscos, muitos conversos abandonaram o país após pagarem o alto preço de resgate à Coroa, dirigindo-se na sua maior parte aos Países Baixos e, em menor parte à Turquia e a outras regiões, também ao Brasil.


A memória da situação de terror em que se encontravam os conversos em Portugal é conservada no Museu Judaico em Amsterdam.


Ali apresentam-se imagens de autos-da-fé e da queima de hereges perante grande número de pessoas e que assistia aos atos em espírito de religiosidade. Nessas imagens, os observadores podem ver os religiosos dominicanos que procuravam preparar espiritualmente os punidos admoestando-os ao arrependimento dos pecados para a salvação de suas almas.



Também nessa exposição, porém, a atenção é dirigida antes à Inquisição como instituição, não atendo-se aos fundamentos do espirito inquisitório lançados durante séculos pelos religiosos que mais se dedicaram às camadas mais simples da população.


Essa mudança de ângulo de visão na consideração da tragédia de mortandades que mancha de forma irrevogável a história cristã é necessáría para a percepção e a análise de riscos que ainda hoje se encontram potencialmente presentes.


Aspectos de discussões sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.). "A Liberdade como conceito crucial nos Estudos Culturais do mundo de língua portuguesa. O espírito inquisitório, o fanatismo e a intolerância implantados pelos pregadores". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 140/6 (2012:6). http://revista.brasil-europa.eu/140/Memorial-da-Tolerancia.html




  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.