Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Vom Fels zum Meer

Vom Fels zum Meer


Marcha Elegiaca A Camoes de L. Miguez

Hymno Triumphal A Camoes de A. Carlos Gomes

Marcha Heroica de A. Napoleao




 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 141/12 (2013:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Dr. H. Hülskath e Comissão especializada

Organização de estudos de processos culturais em relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
e institutos integrados


© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N°2968


A.B.E.

Contrastes de concepções e modos de vida de alemães e luso-brasileiros
Crítica alemã a ímpetos de grandeza manifestados
no Tricentenário de Camões (1880) no Rio de Janeiro


Do Rio Grande do Sul a Alagoas:
o diário de engenheiro alemão no São Francisco em narração de Hermann Ferschke (1835-1903) I

Alemanha-Brasil
Diálogos de Berlin-Charlottenburg pelos 30 anos do simpósio euro-brasileiro de renovação dos estudos da emigração alemã ás Américas
no ano da Cumbre Unión Europea-CELAC 2013

 

Em 2013, ano dedicado em especial às relações entre a Alemanha e o Brasil, completam-se 30 anos da realização de simpósio internacional pelo tricentenário a emigração alemã à América. Esse evento trouxe à consciência a necessidade de uma atualização de estudos atlânticos e interamericanos, de imigração e colonização sob as novas condições trazidas pela integração européia. (http://revista.brasil-europa.eu/141/Brasil-Alemanha-2013.html)

Como então salientado, para essa atualização torna-se necessário reconsiderar fontes históricas e a literatura específica a partir de critérios adequados e a questionamentos mais recentes no âmbito de estudos culturais. O levantamento e a análise de materiais desconhecidos ou considerados como de importância secundária de literatura de divulgação, de artigos em jornais, revistas e magazines surgem na sua heterogeneidade não apenas de interesse sob a perspectiva já clássica de uma história das mentalidades, mas sim também como fontes para estudos de processos inter-e transculturais. (Cf.http://www.revista.akademie-brasil-europa.org/CM15-01.htm)

Revisões merecem sobretudo prefácios e apresentações de obras históricas da literatura de viagens, uma vez que refletem a recepção das mesmas à época de suas reedições e traduções. Vários desses textos introdutórios revelam-se hoje não apenas como superados nas suas apreciações, mas sim também como altamente questionáveis pelo vocabulário empregado e pelos critérios condutores de seus autores, muitos deles de renome nos respectivos países.

Há, de ambos os lados, textos que refletem ressentimentos e preconceitos de prefaciadores, em geral reveladores de visões nacionalistas ou de estreito centrismo cultural. Como testemunhos de sua época, contextos e de correntes de pensamento, oferecem indícios para estudos de processos receptivos, uma vez que neles a atenção é sobretudo dirigida aos receptores.

Como exemplo das múltiplas possibilidades que se abrem de uma leitura que não se limite exclusivamente a neles ver repositório de explícitas informações sobre nomes, fatos e ocorrências, tem-se um artigo referente ao Brasil até hoje não considerado nos estudos brasileiros. Trata-se de texto publicado em revista de divulgação alemã também hoje caída no esquecimento: o "No Nordeste do Brasil de um diário de um oficial emigrado" de Hermann Ferschke. (Hermann Ferschke, "Im Nordosten Brasiliens. Aus dem Tagebuche eines ausgewanderten Offiziers",  Vom Fels zum Meer, Spemann's Illustrirte Zeitschrift für das Deutsche Haus I, Oktober 1888 bis März 1889, Stuttgart: Verlag v. W. Spemann 478-336).

O Nordeste brasileiro em "Da Rocha ao Mar", revista ilustrada "para o lar alemão"

Vom Fels zum Meer, "da rocha ao mar", uma revista ilustrada de editôra de Stuttgart, é uma das muitas publicações periódicas do século XIX e início do XX em alemão que, hoje ignoradas, não teem sido suficientemente consideradas nos estudos culturais apesar dos muitos dados que oferecem e das possibilidades que abrem para estudos do próprio contexto cultural de seus leitores.

A publicação da editôra W. Spemann era especificamente dedicada ao "lar alemão", dirigindo-se a famílias que eram conscientes da sua identidade nacional e patriótica e a cultivavam. Surge, assim, como um órgão particularmente significativo para estudos de círculos populacionais marcados por uma concepção de alemanidade, não devendo porém ser esta considerada a partir de situações políticas do século XX, mas sim, nas suas diferentes acepções, à época do império alemão de fins do XIX.

Assim como outros magazines ilustrados, o Vom Fels zum Meer  inclui uma seção dedicada a países, povos e cidades e que oferece artigos referentes a outras partes do mundo e a culturas exóticas.

O artigo referente ao Nordeste do Brasil surge ao lado de textos sôbre a fronteira turco-persa, os habitantes do Kirgistão, o Lago de Constanza, New Orleans, sôbre estradas de ferro na Suíça, hiperbóreos, Stralsund, a Turíngia e sôbre uma excursão a Abbazia.

Dos autores, o único mais conhecido nos estudos relacionados com o Brasil é Ernst von Hesse-Wartegg devido ao muito posterior relato de suas viagens pelo país (Zwischen Anden und Amazonas: Reisen in Brasilien, Argentinien, Praguay und Uruguay, Stuttgart/Berlin/Leipzig: Union Deutsche Verlagsgesellschaft 1915) (Veja http://www.revista.akademie-brasil-europa.org/CM16-05.htm). Na revista, Ernst von Hesse-Wartegg encontra-se representado com um texto que se refere à entrada no Novo Mundo pelo porto de New York.

Apesar de textos relativos a regiões e povos extra-europeus, como o seu explícito escopo indica, a publicação não deve ser considerada como fonte de textos etnológicos ou sob enfoques de uma Völkerkunde, mas antes analisada sob uma perspectiva da própria cultura alemã, ou seja volkskundlich. Os textos referentes a povos e culturas extra-européias são publicados para serem lidos por leitores de "lares alemães".

Artigo de Hermann Ferschke com base em diário de um oficial alemão emigrado

O artigo sobre o Nordeste brasileiro oferece neste sentido duplo interesse para o leitor de "lares alemães". Ainda que descrevendo regiões e situações no Brasil, o faz da perspectiva de um oficial alemão emigrado e da leitura de seus diários por um escritor que então gozava de popularidade na Alemanha. 

Hermann Freschke, hoje autor praticamente esquecido, nascido em Straupitz, na região da floresta do Spree, Brandenburgo, e tendo estudado em Cottbus e em Guben no Lausitz inferior, provinha de um complexo contexto do Leste marcado pela existência de um grupo populacional singular, o dos sorbios, e pela proximidade à Polonia, o que pode talvez explicar um acentuado interesse por temas referentes à terra, à própria cultura e ao nacional.

Renome alcançou Hermann Ferschke com uma peça teatral leve (20000 Thaler Mitgift, 1861). Nos anos que se seguiram à publicação do artigo, desenvolveu intensas atividades como escritor, cujos títulos sugerem um especial interesse por questões relacionadas com a vida militar ou soldática e exóticas (In Reih'und Glied: Soldatenbilder, Stuttgart: Carl Krabbe 1895; Papa Wrangel: Heiter Geschichten aus seinem Leben, Stuttgart: Carl Krabbe, s.d.1896; Der Bienenjäger. Erzählung aus d. Wildnis Nordamerikas, James Cooper, Stuttgart: Effenberger, 1900).

De militares alemães que passaram a conhecedores do Brasil e a técnicos

Hermann Freschke não informa o nome do oficial emigrado cujas experiências no Brasil são descritas no seu artigo, podendo-se apenas supor haver uma relação pessoal mais estreita que explique o fato do imigrante ter colocado o seu diário à disposição do escritor.

A menção explicita de ter sido militar adquire particular interesse, uma vez que se conhece o papel desempenhado por soldados profissionais na história do Brasil em décadas passadas (Veja e.o. Carl Seidler, Zehn Jahre in Brasilien Während der Regierung Don Pedro's und nach dessen Entthroniung. Mit besonderer Hinsicht auf das Schicksal der Ausländischen Truppen und der deutschen Colonisten, Quedlinburg/Leipzig: Gottfr. Basse 1835; port. Dez anos no Brasil, São Paulo: Martins, 1951).

Pelas informações transmitidas no texto, apreende-se que o oficial alemão contava apenas com 46 anos, passara a vida percorrendo a América do Sul, sabendo-se que esteve nos planaltos andinos, e tinha acabado de fazer medições topográficas de uma região de colonização no Rio Grande do Sul que, em dimensões, seria maior do que um principado da Alemanha.

A história de vida exposta no artigo indica assim a experiência de um militar que atuava na vida civil em trabalhos técnicos vários, de acordo com propostas que recebia, e que ganhara experiência nas regiões de colonização européia do sul do Brasil. A sua história de vida estabelece assim uma ponte entre o mundo dos imigrantes alemães do Rio Grande do Sul e os empreendimentos que passou a dirigir como engenheiro ferroviário em Alagoas.

Síndrome de liberdade de ação de alemães e a intranquilidade na viagem errante da vida

As suas palavras introdutórias expõem o estado de espírito em que se encontrava, cansado de uma vida marcada por andanças e situações inseguras, nas quais períodos de ocupação se alternavam com épocas de desemprêgo. A culpa dessa situação que dificultava planejamentos a longo prazo e uma vida sedentária era vista na centralização do Império, onde tudo era decidido e executado no Rio de Janeiro.

Assim, via-se atirado de um lado para o outro, uma trajetória de vida que conhecia momentos de desemprêgo. Mesmo uma pessoa de espírito aventureiro e empreendedor como êle perdia aos poucos a vontade e procurava um porto de descanso nessa vida marcada por inseguranças e andanças. Apesar de já estar há muitos anos percorrendo a América do Sul, tinha repetidas vezes procurado dirigir o navio de sua vida a um local onde pudesse ancorá-lo. Tinha, porém, sempre sido levado a aproveitar um vento favorável e, assim, com as novas propostas, caído novamente no oceano de uma viagem sem fim. Às vezes a causa foi financeira, outras o interesse por uma região que ainda não conhecia, na maior parte, porém, teria sido o costume ao trabalho que fazia que sempre caísse no antigo modo de vida. Quem já se acostumara com uma vida em perambulações, dela não podia sair.

Essas palavras indicam, assim, na forma de uma narração romanceada, o ímpeto de liberdade de ação e de conquista de espaços que marcava a vida de imigrantes alemães e que se manifestava em espírito de aventura e empreendendorismo diversificado. Este, visto à distância proporcionada por meditações mais profundas, surgia como um impulso nem sempre positivo, pois condicionava a vida, transformando-a numa viagem em oceano atribulado, sem tranquilidade e fins, continuamente marcada pelo desejo de alcançar um porto seguro.

Essa imagem da vida como viagem em mar encapelado pelos ventos é transmitida pelo escritor do diário através da descrição de sua viagem do Rio Grande do Sul ao Rio de Janeiro. Tendo acabado de fazer medições topográficas de uma região de colonização alemã no sul, tinha pensado em encontrar abrigo na capital do Império. Entretanto, m "vento pampeiro" que tinha repentinamente surgido lançara o seu navio como uma bola nas ondas.


Descrição do Rio de Janeiro por ocasião do Tricentenário de Camões

No Rio de Janeiro, encontrou a cidade em comemorações festivas pelo Tricentenário de Camões, um dos maiores eventos celebrativos da história portuguesa e brasileira - sobretudo luso-brasileira - do século XIX. Essa menção possibilita situar historicamente o relato, indicando que o seu autor esteve no Rio de Janeiro em junho de 1880.

As suas referências às comemorações apresentam conotações negativas. Aos olhos do técnico alemão, as festividades manifestavam a mania de grandeza portuguesa e brasileira. Por todo lado encontravam-se grandes oradores que louvavam um poeta que há 300 anos tinha morrido e cujas obras certamente ninguém lera.

Esse ambiente cultural da capital brasileira, em particular de meios luso-brasileiros, criticado por uma excessiva tendência a festividades, exageros de expressões de magnificência e grandiloquência vazias de conteúdo, ao mesmo tempo de cultivo de modos e de falta de cultura mais profunda, levou a que o autor do diário mudasse de planos, aceitando novamente uma proposta de trabalho que o afastou do centro do Império. Comprometeu-se, assim, a transferir-se a Alagoas, onde devia atuar na correção do traçado de projetada estrada de ferro que deveria possibilitar a superação da barreira comercial representada pela cachoeira de Paulo Afonso no Rio São Francisco.

O autor do diário fugiu, assim, da cidade em constantes júbilos e pôde assim realizar o seu sonho já há muito acalentado de visitar o Nordeste do Brasil.

Observações culturais de brasileiros que se moviam entre o Rio e o Nordeste

A sua viagem dirigiu-se primeiramente a Maceió, de onde partiria para o Baixo São Francisco. Embarcou tão logo quanto possível no vapor Espírito Santo. De início, ocupado com os seus próprios assuntos, não tomou notícia dos demais passageiros. Assim que as malas foram colocadas nos seus lugares, a cabina ocupada e já estando o navio em movimento, passou a observar aqueles que com êle viajavam.

Um golpe de olhos no salão demonstrou que ali viajavam muitos senhores e senhoras, deputados que retornavam e funcionários públicos com as suas famílias que tinham ido ao Rio de Janeiro para as comemorações, algumas senhoras que viajavam a sós para encontrar com os seus maridos que trabalhavam na província ou que já viviam lá há muito como fazendeiros e que tinham vindo à capital para fazer compras. Segundo as suas próprias palavras, há anos acostumado a percorrer regiões afastadas com o revólver a punho, sentia-se até mesmo deslocado nessa sociedade marcada por distinção.

O texto narrado por Ferschke transmite ao leitor dos "lares alemães" uma visão da realidade brasileira dos anos 80 do século XIX em que se contrapõe o espírito de liberdade, de trabalho e empreendendorismo alemão àquele de uma sociedade luso-brasileira refinada mas questionável nos exageros de suas manifestações celebrativas e festivas.

Nesse contraste, o leitor percebe o registro de diferenças culturais entre concepções alemãs e modos de vida luso-brasileiros da capital e de círculos sociais mais privilegiados do Império. Se escritos de alemães e teuto-brasileiros constantemente criticam os luso-brasileiros de regiões interioranas e rurais pela sua indolência, essa narração de Ferschke salienta uma tendência ao brilho exterior e superficial do Rio de Janeiro. (Cf. http://revista.brasil-europa.eu/141/Teutos-e-lusobrasileiros-Litoral-paulista.html) O texto adquire, assim, um significado para os estudos de processos culturais, o que, entretanto, exige uma leitura mais atenta.


Cíclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Contrastes de concepções e modos de vida de alemães e luso-brasileiros. Crítica alemã a ímpetos de grandeza manifestados no Tricentenário de Camões (1880) no Rio de Janeiro Do Rio Grande do Sul a Alagoas: o diário de engenheiro alemão no São Francisco em narração de Hermann Ferschke (1835-1903) I". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 141/12 (2013:1). http://revista.brasil-europa.eu/141/Alemaes-e-critica-da-sociedade.html