Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Fotos A.A.Bispo.
©Arquivo A.B.E







 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 142/16 (2013:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Dr. H. Hülskath (Dir. Adm.) e Conselho Científico

Organização de estudos de processos culturais em relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa  -
e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2986




O rítmo como fator cognitivo de tradições e na ação inovadora da cultura musical caboverdiana Momentos de entrevista com o percussionista Antero Júlio Gonçalves dos Santos
na Alliance Française de Mindelo

Em sequência a encontro na Embaixada da República de Cabo Verde em Berlim
Na passagem dos 25 anos do primeiro da série de eventos euro-brasileiros do I.S.M.P.S. e da A.B.E. pelos 500 anos de Descobrimentos portugueses

 



Os trabalhos do ISMPS voltados ao estudo teórico-cultural do fenômeno da difusão e da aceitação internacional da música caboverdiana nas últimas décadas tiveram o seu prosseguimento em entrevista com o percussionista Antero Júlio Gonçalves dos Santos, levado a efeito em fevereiro de 2013 na Alliance Française em Mindelo.

Esse músico participou de várias apresentações de Cesária Évora (Veja http://revista.brasil-europa.eu/142/Musica-Cabo-Verde.html), sendo conhecido pela sua presença nos álbuns Mar Azul, Café Atlântico e Sentimento. Atuou também com vários outros grupos e músicos caboverdianos de renome, entre eles da Banda Cola, Dudu Araújo - hoje no Canadá - Baú e Voginha; participou de apresentações com Hermínia Évora - prima de Cesária Évora, com o compositor Vasco Martins, com Nancy Vieira e Paulinho Vieira; gravou discos e.o. com Luís Morais e Chico Serra.

Antero Júlio Gonçalves dos Santos é, assim, um músico de vasta experiência profissional, tendo viajado várias vezes ao Exterior para gravar, sendo solicitado por diferentes artistas e grupos no Cabo Verde e em outros países.  Muitas viagens realizou Antero Júlio Gonçalves dos Santos em cruzeiros marítimos, aproveitando as oportunidades das estadias em portos para conhecer países. Mesmo assim, salienta nunca ter deixado a ilha, nunca ter fixado residência no Exterior.

No Brasil, apresentou-se e.o. em Recife, Fortaleza, Salvador, São Paulo, Santo André, Santos e Rio de Janeiro. Considera o Brasil como a sua "segunda pátria" por nele reconhecer uma cultura muito próxima à do Cabo verde sob os mais diversos aspectos, inclusive quanto à culinária. Se a base portuguêsa é comum a ambos, os traços de analogia dos resultados de desenvolvimentos em Cabo Verde e o Brasil são evidentes.

A sua carreira do percussionista não pode ser compreendida sem a formação de cultura geral e musical que recebeu em S. Vicente. Na sua sêde de conhecimentos, aproveitou na medida das possibilidades todas as oportunidades de estudos que a terra natal oferecia na sua juventude, cursando todo o Liceu e, mais tarde, iniciando estudos em Gestão de Marketing.

Deve os seus conhecimentos musicais sobretudo a um sacerdote, conhecido simplesmente como Pe. Simões, que vivera nos Estados Unidos. Com formação em canto lírico, foi um grande incentivador da música no Cabo Verde. Indiretamente, assim, através do seu mentor e de gravações, manteve-se sempre informado a respeito de tendências musicais no Exterior, em particular dos Estados Unidos. Quanto ao domínio teórico e de formação auditiva, recebeu aulas de Jorge Monteiro, professor da Academia local.

O seu extraordinário domínio prático-musical, sobretudo de instrumentos de percussão, adquiriu espontaneamente em constantes participações nas mais diversas ocasiões. Tanto em festas tradicionais como em concertos ou em execuções informais e incidentais assimilou profundo conhecimento de rítmos e repertórios da tradição caboverdiana e da música popular internacional.

Mesmo mantendo-se em posição de receptividade, aberto a múltiplos impulsos, salienta a questionabilidade do conceito de World music. Usando da sua formação em Marketing, lembra que esse termo não deveria ser compreendido como uma designação de música tradicional, mas sim como representando em si um produto cultural e um rótulo para a venda de um produto.

A extraordinária experiência musical do percussionista permite a êle demonstrar de imediato diferenças quanto ao rítmo de várias expressões musicais do Cabo Verde, exemplificando as intervenções que procura fazer na procura de novas fórmulas no sentido de aproximações a tendências da música popular internacional.

Antero Júlio Gonçalves dos Santos admite ser influenciado pelo que ouve, procura, porém, não afastar-se do tradicional, guiando-se pelo ideal de uma fusão da tradição com tendências da indústria musical.

Sente-se. assim, como percussionista, numa luta constante entre o jazz, música africana, música caboverdiana e música brasileira, vendo nesse campo de múltiplas tensões uma problemática que caracterizaria o universo musical caboverdiano nas suas dimensões amplas, abrangentes também dos caboverdianos no Exterior.

A sua atitude perante o repertório rítmico e estilos é, assim, baseada em profundo conhecimento de expressões tradicionais, o que não impede inovações e criações refletidas. Tendo a consciência que tudo se transforma e se modifica, que as próprias expressões tradicionais não são imutáveis, não tem receios em participar como agente nesse processo.

Oportunidade favorável para essas inovações criativas é o carnaval, tão intensamente festejado em Mindelo, onde pode reelaborar fórmulas tradicionais a partir de novos impulsos, em particular do carnaval brasileiro.

A sua ação reelaboradora e criativa fundamentada na sua convicção da transformabilidade de tradições diz respeito também à morna. Lembra que a morna do passado apresentava outras características do que a atual, era acompanhada apenas por cavaquinho e violão, sem instrumentos de percussão; apenas posteriormente nela introduziu-se a maraca e instrumentos similares para adaptá-la as preferências dos ouvintes e de acorco com os locais em que passou a ser interpretada. 

Em mornas antigas vê, por exemplo, proximidades ao tango, o que já não seria o caso da atualidade. Indo mais longe no passado, vê fundamentalmente uma influência ou mesmo base judaica na morna e em geral na música caboverdiana, o que se evidenciaria sobretudo na importância do violino nas tradições.

Em viagens realizadas com Cesária Évora a Israel e em apresentações em comunidades judaicas de outros países constatou uma recepção extraordinária da música caboverdiana, em particular da morna e coladeira.

Manifestações de sintonia de sentimentos e de estados de espírito por parte de judeus testemunhariam a existência de fundamentos comuns, explicáveis apenas por processos históricos e pela presença de judeus e cristãos-novos no passado mais remoto do arquipélago. A sua própria mãe, com vínculos familiares de ascendência judaica, mencionava uma tradição judaica da música tradicional para violino nas ilhas.

Muitos estudiosos - e pesquisadores de música - poderiam não estar de acordo com essa sua opinião, mas esta era resultado da experiência feita com Cesária Évora em Israel e com comunidades judaicas no mundo.

Nesse contexto, lembrou-se, por parte do I.S.M.P.S., dos trabalhos levados a efeito na antiga Sinagoga Portuguesa de Amsterdam, o maior centro museal e de estudos da diáspora judaica lusófona no mundo (Veja http://revista.brasil-europa.eu/140/Sinagoga-de-Amsterdam.html ).

O percussionista procura fundamentar a sua prática criativa no diálogo com a tradição e, concomitantemente, tirar resultados de sua experiência prática para a construção de uma concepção cultural.

A dinâmica transformatória das tradições e a característica particular resultante de contextos específicos surgem aqui como conceitos centrais da sua argumentação. Para isso muito contribuiram observações que realizou no Brasil.

Constatou, no Nordeste, que o maxixe, o forró e o xaxado, e mesmo o maracatú, ainda que não existentes com esses termos e com as suas características na tradição caboverdiana, apresentam ritmos que êle próprio registrou na ilha.

Haveria, assim, fórmulas rítmicas e métricas que seriam gerais, levando porém a diferentes resultados em diversos contextos e no emprêgo de outros instrumentos e em funções diversas. Um exemplo que menciona com saliência é a do uso de tambores da tradição européia no Arquipélago em séculos passados.

Teria havido uma por assim dizer universalidade na técnica de transmissão de toques militares e uma particularização regional com o uso de outros instrumentos e em outros contextos. Assim explicaria usos de tambores em certas expressões tradicionais, por exemplo na Ilha de Santiago e mesmo no Fogo, aqui em particular nas Bandeiras.

O principal exemplo seria o do Pilão, uma das principais expressões para estudos da percussão e da rítmica na cultura caboverdiana, o que êle inseriria na esfera de música de trabalho. Vários foram os seus estudos de tradições caboverdianas de inserções em festas religiosas e que passaram por transformações, entre elas de expressões de festas de São João em Santo Antão, de Santa Cruz, de S. Felipe, S. Pedro e S. Sebastião, das Bandeiras no Fogo, do Cola São João, correspondente à umbigada no Brasil nas ilhas do Barlavento, do batuque de mulhes em Santiago e da Canisade do Fogo,

Nesse processo adaptativo, o percussionista vê uma similaridade com o que aconteceu com o idioma, o crioulo, o português modificado no contexto africano. Instrumento que com mais evidência demonstraria a adoção de novos elementos em expressões musicais, assim como a substituição de instrumentos é o acordeão, empregado p.e. no funaná da cidade de Praia.

Como discutido no encontro, esse emprêgo do acordeão poderia ser estudado comparativamente com aquele em outras regiões do mundo, no Nordeste do Brasil ou no Norte do México e Texas, não apenas quanto aos caminhos de sua difusão a partir de países europeus no século XIX como quanto ao papel que exerceu substituindo outros instrumentos e exercendo determinadas funções em expressões com determinadas conotações de ruralidade nas suas dimensões com concepções simbólico-antropológicas.

Para Antero Júlio Gonçalves dos Santos, Mindelo, devido à sua formação como cidade portuária no século XIX serviria muito melhor como exemplo de transformações do que a ilha de Santiago, cujas expressões remontariam a épocas mais remotas.

A aproximação entre as ilhas torna-se assim uma importante questão da política cultural, uma vez que habitantes da Ilha de S. Vicente desconhecem em parte tradições de Santiago e vice-versa. Nesse sentido, a atual política cultural do Govêrno, dirigida por um ministro com formação musical, tem mostrado sensibilidade para o valor patrimonial representado pela música de Cabo Verde, pretendendo-se assim realizar encontros promotores dessa aproximação em Mindelo.

Nesse contexto de valorização da música e dos músicos como importante riqueza das ilhas levanta-se a questão dos Direitos de autor, o que permitiria uma vida mais digna para aqueles que conservam e desenvolvem um patrimônio que tanto marca e difunde a imagem do país.


Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "O rítmo como fator cognitivo de tradições e na ação inovadora da cultura musical caboverdiana. Momentos de entrevista com o percussionista Antero Júlio Gonçalves dos Santos na Alliance Française de Mindelo". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 142/16 (2013:2). http://revista.brasil-europa.eu/142/Antero-Julio-Santos.html