Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Praia.Fotos A.A.Bispo.
©Arquivo A.B.E.









 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 142/1 (2013:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Dr. H. Hülskath (Dir. Adm.) e Conselho Científico

Organização de estudos de processos culturais em relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa  -
e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2972





Claridade! Cabo Verde e Brasil
Significados e dimensões de relações atlânticas
nos estudos de processos culturais em contextos globais
- Estudos Culturais e Ciências da Educação -


Em sequência a encontro na Embaixada da República de Cabo Verde em Berlim
Na passagem dos 25 anos do primeiro da série de eventos euro-brasileiros do I.S.M.P.S. e da A.B.E. pelos 500 anos de Descobrimentos portugueses


 
A presente edição da Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira dá início à publicação de relatos de observações, reflexões e estudos realizados em ilhas atlânticas - Macaronésia - em janeiro e fevereiro de 2013. A atenção é dirigida, neste número, a Cabo Verde.

Dá-se sequência, com esses trabalhos, ao cumprimento de intenções programáticas discutidas e a impulsos recebidos em encontro realizado na Embaixada da República de Cabo Verde em Berlim, em 2005. (Veja http://www.akademie-brasil-europa.org/eventos-Berlin-1.htm).

Cumpre apresentar os agradecimentos às instituições e personalidades que, em espírito de abertura e cooperação, possibilitaram diálogos em São Vicente e Santiago, entre outros ao Centro Cultural e ao Centro Nacional de Artesanato e Design em Mindelo, à Profa. Maria Santos Trigueiros da Universidade Jean Piaget de Mindelo, ao Sr. Bento Oliveira, Assessor para as Artes do Gabinete do Ministro da Cultura de Cabo Verde, ao Quartel Jaime Mota na Cidade da Praia, com os seus elos pessoais de anos com a Alemanha, em particular com a região de Aachen e Colonia, assim como aos entrevistados, em particular a Antero Júlio Gonçalves dos Santos.

Esta edição ocorre na passagem dos 25 anos do primeiro da série de eventos euro-brasileiros do I.S.M.P.S. e da A.B.E. dedicados aos 500 anos das grandes datas dos Descobrimentos portuguêses que, contando com o apoio de instituições pontifícias, pôde ser inaugurada no "Ano Bartolomeu Dias" (1987/88) em Roma.

Abriu-se, naquele ano, a programação internacional das instituições euro-brasileiras que, sob a direção do editor, levaria também a várias realizações no Brasil, entre êles o do congresso pelos 500 anos da América, em 1992, o colóquio pelo ano Vasco da Gama, em 1997/98 e, sobretudo, o triênio de eventos científico-culturais pelos 500 anos do Brasil com as suas múltiplas consequências para os trabalhos do século XXI.

Por ocasião da abdicação do Papa Bento XVI no corrente ano, cumpre recordar o apoio concedido a esses trabalhos pelo então Prefeito de Congregação. Foi esse apoio que possibilitou o desenvolvimento de estudos de fontes em arquivos e bibliotecas romanas e impulsionou diálogos e cooperações com pesquisadores de história missionária relativas a regiões do antigo Padroado Português que marcaram o desenvolvimento dos trabalhos da série de eventos. Por esse motivo, retomam-se nesta edição algumas das questões então consideradas.

Atualidade dos estudos em ano de eventos científíco-culturais em Cabo Verde

Temáticamente, dá-se continuidade aqui aos debates em andamento referentes aos fundamentos de processos culturais nas relações Mediterrâneo/Atlântico e suas expansões no Novo Mundo, de atualidade devido à celebração de Marseille como "Capital Européia da Cultura" de 2013. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Estudos-e-Esclarecimento.html)

Em Cabo Verde, 2013 é celebrado como "Ano de Amílcar Cabral" (1924-1973), sendo marcado por conferências e debates, salientando-se o III Ciclo de Conferências Internacionais "Cidades e Globalizações" do Programa UniverCidade na cidade de Praia.

Pressupostos: direcionamento das atenções a processos nos Estudos Culturais

O significado do Cabo Verde nos Estudos Culturais apenas pode ser avaliado a partir de uma perspectiva adequada.

À frente da costa africana, cujo cabo lhe
empresta o nome, o conjunto de ilhas do Atlântico teve os seus desígnios através dos séculos determinados por sua posição de ponte e de passagem entre a Europa, a África e o continente americano, também do trânsito marítimo do Ocidente com o Oriente, inserindo-se em espaço de confrontos e intersecções de esferas de interesses de potências européias e de comunicações no Atlântico.

A essa situação geográfica e geopolítica corresponde o papel que exerceu no encontro e nas interações de grupos culturais, sociais e étnicos, de cristãos e "cristãos novos", infelizmente também no tráfico de escravos.

A história insular é marcada por emigrações e imigrações, separações e retornos, podendo ser apenas considerada adequadamente a partir dessas dimensões inter-e transnacionais de um espaço global, transoceânico.

O Cabo Verde surge sob o signo de um complexo populacional e cultural marcado por misturas e miscigenações, e que procura definir a sua identidade a partir de valores próprios do Crioulo. Deve desempenhar, assim, papel de particular relevância nas discussões teórico-culturais que, sob esse conceito ou termos afins desenvolve-se em vários contextos, em particular naqueles referentes à América Latina e ao Caribe.

Não é de se surpreender que, sob essas condições, o Cabo Verde não se encontre representado adequadamente nos grandes museus de arte do mundo e pouco presente nos museus de Etnografia, sendo pouco considerado em obras de história cultural e mesmo de Etnologia.

Disciplinas definidas nos seus objetivos e procedimentos fundamentalmente segundo esferas culturais determinadas a priori - a do artístico ou erudito, a do folclórico e a do popular -, dificilmente estão em condições de considerar apropriadamente situações caracterizadas pela transpassagem de postuladas divisas, pela intercomunicação de espaços, por resultados de movimentos entre membranas e misturas, por situações e
expressões de entre-fronteiras.

Esse problema dos Estudos Culturais, reconhecido a partir da situação brasileira, levou à fundação, em 1968, da sociedade de fomento da renovação teórica e da prática cultural que passou a defender uma reorientação de enfoques a processos e que hoje constitui a Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais/Academia Brasil-Europa (Veja http://www.akademiebrasileuropa.de/Chroniken/1966-Geschichte-Volkskunde.html)

Osmose como modêlo teórico-cultural e suas analogias com a música

Nesse intento, serviu, nos anos sessenta, como modêlo orientador de reflexões, a Osmose das Ciências Naturais. Tratava-se
aqui sobretudo de questões de difusão, tanto na política cultural quanto na difusão de conhecimentos. Diferentemente de procedimentos convencionais, uma "nova difusão" procuraria não difundir nomes, obras e repertórios, mas difundir uma nova perspectiva no tratamento de complexos culturais, exercitando e promovendo enfoques dirigidos a fluxos, passagens, correntes, movimentações e transformações. (Veja http://www.akademiebrasileuropa.de/Chroniken/1968-Neue-Diffusion.html)

É compreensível que esse desenvolvimento das preocupações teóricas partido do Brasil tenha ocorrido sobretudo no âmbito das disciplinas teórico-musicais. É justamente na música que o pesquisador mais diretamente é confrontado com o folclórico e o popular no erudito, o erudito no popular, o semi-erudito e o semi-popular, o folclórico que se torna popular ou oo popular que passa a ser folclore e muitas outras situações que demonstram a insuficiência das aproximações disciplinares convencionais.

Além do mais, o olhar dirigido a processos e, assim, a desenvolvimentos no tempo, com estruturas e mecanismos que passam a ser alvos de análises, neles encontra uma analogia com a música. É compreensível, assim, que as preocupações pela renovação teórica dos Estudos Culturais tivessem a sua principal expressão no intuito de desenvolvimento de uma musicologia de orientação teórico-cultural e de uma culturologia que empreste particular atenção a expressões musicais.

Essa orientação marcou a introdução da Etnomusicologia na Licenciatura em Educação Musical e Artística em São Paulo, em 1972. Diferenciando-se nesses seus pressupostos teóricos tanto da antiga Musicologia Comparada alemã como da Etnomusicologia e Antropologia da Música norte-americana, emprestando especial atenção a processos históricos apesar de sua orientação antes empírica e dirigida ao presente, a área disciplinar foi desde a sua implantação estreitamente relacionada com a de uma História da Música voltada a contextos globais e não apenas limitada à esfera convencionalmente categorizada como a do artístico, erudito ou clássico.

40 anos da 1a. Exposição Colonial Portuguesa no Porto (1934) em anos de de-colonização

Foi nesse contexto que, impulsionado pelo compositor português Jorge Peixinho (1940-1995), passou-se a reconsiderar desde fins da década de 60 com maior atenção as regiões do mundo marcadas culturalmente pelos portugueses, então imerso em lutas pela emancipação do regime colonial na África e pelas expectativas de transformação política em Portugal.

No levantamento da literatura específica existente em bibliotecas brasileiras para o desenvolvimento desses estudos, deparou-se então com a conferência de Fausto Duarte (1903-1955) proferida na 1a. Exposição Colonial Portuguesa, em 1934, no Porto, evento que seguiu-se à Exposição Colonial Portuguesa de Paris, de 1931. ("Da Litratura Colonial e da 'morna' de Cabo Verde", Edições da 1a. Exposiçãõ Colonial Portuguesa 1934, Separata)

Nesse texto, a posição intermediária, de passagens, trânsitos, fluxos e misturas de Cabo Verde é expressamente formulada, ainda que sob uma perspectiva colonial. Partindo das condições naturais do arquipélago, Fausto Duarte procura explicar características culturais demopsicologicamente através de uma fundamental orientação às águas do Atlântico, estabelecendo relações entre a alma do povo caboverdiano e uma alma do oceano.

"Cabo Verde é a transição...
Nem arvoredos bastos crescidos ao acaso pela mão da natureza, nem culturas geométricas. E porque a terra se recusou à fecundação, o carboverdeano volveu os olhos para o mar, e o mar enamorou-se dele, atraiu-o, acalentou-o, esculpindo na sua sensibilidade o ritmo das ondas. Sob as velas entunadas que se deleitam na luz flava e recolhem o murmúrio da brisa, tão grato aos ouvidos dos mareantes, o caboverdeano escutou os queixumes, as notas plangentes que se perdem na imensidade do espaço e são a própria alma do oceano.
E, dedilhando o violão, compôs a primeira 'morna': dolência, sofrimento e harmonia - virtudes da alma do povo ilhéu que se inspirou directamente na mágoa dolorosa do Atlântico". (...) (pág. 10-11)

"Ao emigrar, o caboverdeano leva consigo a saudade e o violão. E assim a 'morna' foi conquistando toda a costa ocidental de África, passou o oceano, deleitou cidades norte-americanas e fulgiu por momentos nos salões da Europa." (pág. 14)

Em anos marcados pelo debate de-colonizador do início da década de 70, essa publicação surgiu como particularmente significativa, uma vez que dirigia a atenção à política de propaganda colonial do Estado Novo nos anos 30, de suas inserções no contexto da problemática político-colonial no contexto europeu nas décadas posteriores à Primeira Guerra e, ao mesmo tempo, ao papel nela desempenhado por questões culturais, no caso da música, em particular da morna de Cabo Verde.

Belo e original motivo de propaganda!
(...)
Disse um escritor - que o poder algumas vezes incompreensível da música tem a sua razão de ser na própria essência do som, e no privilégio que lhe pertence exclusivamente de despertar no fundo da alma e do coração os sentimentos íntimos latentes, que ali se acham dormentes, dando-lhes vida e movimento." (pág. 18)

O estudo dessa publicação representou um dos principais incentivos para a realização de uma primeira viagem de observações e contatos a Portugal, em 1974, 40 anos após a Exposição Colonial do Porto.

O Cabo Verde no desenvolvimento de uma musicologia adequada teórico-culturalmente

Com o início de uma nova fase da história política de Portugal e de suas antigas colonias, intensificaram-se em meados da década de 70 as preocupações pela renovação dos Estudos Culturais em reajuste às novas realidades também nos meios universitários da Europa. Como as reflexões relativas ao Cabo Verde traziam à consciência, a música não poderia deixar de desempenhar papel de particular importância.

Na Universidade de Colonia, cidade com considerável parcela populacional de migrantes lusófonos, estabeleceu-se um diálogo entre o pensamento histórico-musical português e aquele proveniente do Brasil. Se o pensamento histórico-musical português, representado pela Profa. Dra. Maria Augusta Alves Barbosa, preocupava-se na época sobretudo com a introdução, em Portugal, de Ciências Musicais na Universidade segundo critérios qualitativos de sua prática internacional nos grandes centros da disciplina, o pensamento brasileiro, representado pelo editor desta revista, era voltado ao desenvolvimento de estudos de processos culturais com especial consideração da música e, em particular, de uma Musicologia de condução culturológica.

1976: 25 anos do discurso de Gilberto Freyre no Clube de São Vicente

A passagem dos 25 anos da viagem de Gilberto Freire (1900-1987) em "terras portuguesas ou ex-portuguesas da Europa, da Ásia e da África" (1951-1952) trouxe à consciência, nesses trabalhos, da necessidade de uma reconsideração desse singular empreendimento do escritor brasileiro na sua inserção em processos político-culturais e de revisão de suas concepções culturais motrizes na nova situação política das ex-coloniais, de Portugal e das relações internacionais correspondentes.

A releitura de uma obra como Um Brasileiro em Terras Portuguesas (Rio de Janeiro/S.Paulo: José Olympio, Coleção Docuimentos Brasileiros 76, 1953) surgia como uma exigência devido ao fato de constatar-se que conceitos como tropicalismo e luso-tropicalismo continuavam a determinar as reflexões universitárias de estudos luso-brasileiros sem que fossem devidamente consideradas na sua contextualização histórica e político-cultural.

No seu prefácio, Gilberto Freyre apresenta uma tentativa de sistematização de uma possível luso-tropicologia, "que seria o estudo sistemático de todo um conjunto ou de todo um complexo de adaptações do português aos trópicos e dos trópicos não ao jugo imperial, mas à especialíssima vocação transeuropéia, da gente portuguêsa. Não só transeuropéia: especìficamente  tropical."  Refuta, ao mesmo tempo, críticas que o acusavam de de estar a serviço de um Portugal decadente e de uma conivência com o regime autoritário português.

Nessa obra, Gilberto Freyre reconstitui discurso que proferiu no Clube de São Vicente, em outubro de 1951, então improvisado. Inicia-o afirmando que em Cabo Verde um brasileiro estaria ainda no Brasil, estando já em Portugal. (op.cit. 221-222) As águas do Atlântico seriam quase as do Nordeste do Brasil e a vegetação, que lembraria a do Nordeste. Sobretudo a população teria semelhança com a do Nordeste do Brasil. Em Cabo Verde, o Portugal e a África tinham-se encontrado "em dias remotos, em antecipação do encontro de raças e de culturas que no Brasil se tornaria a maior aventura moderna de miscegenação nos trópicos: a de maior amplitude nas suas consequências éticas e nos seus efeitos estéticos". (....)

O autor brasileiro afirmava que a sua experiência de Cabo Verde acentuara o seu lusismo.

"Dêste meu contacto com as terras pobres e as populações também pobres de Cabo Verde sai enriquecido o meu lusismo. Acabo de sentir o drama de Cabo Verde: o de uma gente heròicamente pobre que, entretanto, conserva-se fraternalmente cristã na sua pobreza, sempre à espera de melhores dias para o seu arquipélago (...)".

"Cabo Verde é, como nenhuma outra terra, traço de união de Portugal com o Brasil. Não é preciso recorrer à retórica para afirmá-lo: são os mapas que o dizem. Os mapas que se tornam líricos quando os vemos com olhos de portuguêses ou de descendentes de portuguêses." (op.cit. 222)

Tanto a concepção que esboça de uma luso-tropicologia como essas afirmações feitas no Clube de São Vicente em Cabo Verde manifestam assim de forma explícita uma determinada perspectiva e identificação cultural que exigiam reflexões diferenciadoras na nova situação política de Portugal e das ex-colonias.

Correspondendo ao desenvolvimento do pensamento iniciado no Brasil, considerou-se se os problemas relacionados com a proposta de uma luso-tropicologia não poderiam ser solucionados através de um direcionamento da atenção a processos, não a um "conjunto ou de todo um complexo de adaptações do português aos trópicos" e dos trópicos ao português.

O Cabo Verde no ISMPS como instituição de estudos de processos músico-culturais

O escopo dos diálogos de Colonia era o de preparar a fundação de institutos em Lisboa e no Rio de Janeiro como primeiras instituições de uma rêde que, necessariamente, deveria incluir o Cabo Verde.

Constatando-se, a partir de 1980, a inviabilidade imediata da realização dos projetos tanto em Portugal como no Brasil, decidiu-se optar pela criação de um instituto de estudos que, representando internacionalmente o centro de pesquisas fundado no Brasil, em 1968, propiciasse a presença mais intensa da língua portuguêsa e a consideração mais atenta de complexos temáticos relacionados com países, regiões e comunidades marcadas culturalmente pelos portugueses no meio universitário europeu sob a perspectiva de um direcionamento das atenções a processos.

Criou-se, assim, Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (http://ismps.de/Historico_ISMPS.html), no qual um programa de pesquisas passou a ser dedicado ao Cabo Verde. (Veja http://ismps.de/Cabo-Verde_ISMPS.html)

1983: 50 anos do Folclore Caboverdiano de Pedro Monteiro Cardoso (ca.1890-1942)

Fundamental impulso para as reflexões representou a reedição, pela Associação de Trabalhadores Caboverdianos - Solidaridade Caboverdiana - em França, do Folclore Caboverdiano de Pedro Monteiro Cardoso (ca. 1890-1942), editado no Porto, em 1933. (Pedro Cardoso, Folclore Caboverdiano, Edição da Solidariedade Caboverdiana Paris, Lisboa: Safil, 1983). A reedição foi precedida por substanciais textos trodutórios e prefaciadores de Luiz Silva e de Alfredo Margarido. (http://revista.brasil-europa.eu/142/Folclore-Cabo-Verde-Brasil.html

Pedro Monteiro Cardoso, autor que recebeu a sua formação no Seminário São Nicolau, dedica um capítulo especial às relações entre o Cabo-Verde e Brasil (pág.33 ss.)

"A etnografia brasileira caracteriza-se por modalidades várias conforme os grupos em que se subdividem as populações: praieiros, matutos e sertanejos.
Assim, de Norte a Sul, os divertimentos populares: o baião e as emboladas, os reizados e cateretês, os sambas e chibas, etc.
Em Cabo Verde há-os também característicos, e todos se prendem originàriamente às festividades religiosas, sendo tradicionais em Santo Antão as romarias por S. João e S. Pedro, estrondeantes de zabumbas; em S. Nicolau, as longas e intermináveis procissões, precedidas de missas solenes; no Fogo, os reinados com os seus têrços cantados, e as bandeiras com os seus 'pilões', canizade e cavalhadas, tudo ao ritmo do imprescindível tambor; e em Santiago (...) os batuques escaldantes de sensualidade e as tabancas com os seus reis e rainhas, suas superstições e cabalas". (pág. 38-39)

Através da comparação de tradições caboverdianas com aquelas do Brasil, em particular do repertório do ciclo festivo do ano religioso, já Pedro Monteiro Cardoso chegara assim à explicitamente conclusão da existência de uma cultura comum, que posteriormente seria vinculada por demais indiferenciadamente com a proposta lusotropicológica.

Segundo êle, ter-se-iam desenvolvido formas sincréticas que possibilitaram a manutenção de valores portugueses ou mediterrâneos, sem cortar com aqueles especificamente africanos. Essa síntese, que necessitara de séculos para ser alcançada, faria do arquipélago uma unidade cultural única no mundo, distante tanto da Europa como da África, sem perder, porém, os seus vínculos com ambos, e aqui residiria um dos principais aspectos de sua complexidade.

"Seja nos sambas e cateretês dos praieiros, ou nos feitiços e abusões dos curandeiros caribocas; seja nos bailes dos sampalhudos e batuques dos vadios, ou nas rezas e mezinhas dos jacobosos, há flagrantes vestígios comuns às duas raças que, fundidas ao fogo do Equador, estatuaram em bronze o tipo mestiço daqui e de Além-Atlântico (...)" (pág. 40)

"Com efeito, somos irmãos, embora nascidos em hemisférios diferentes.
Irmãos no sangue e na linguagem." (pág. 37)

1987/88: O Cabo Verde no estudo de fundamentos de processos culturais - "Ano Bartolomeu Dias"

Para além do estudo da literatura existente, procurou-se, para o desenvolvimento fundamentado dos estudos, levantar e analisar fontes históricas em arquivos e bibliotecas, em especial de Roma. (http://revista.brasil-europa.eu/142/Ribeira-Grande-Jesuitas.html)

Considerando-se que a expansão portuguesa no mundo foi estreitamente acompanhada pela ação cristianizadora, a pesquisa de documentos conservados em instituições do Vaticano e o diálogo com pesquisadores especializados em história e métodos missionários surgiram como indispensáveis. (http://revista.brasil-europa.eu/142/Cabo-Verde-Miserere.html)

A fundação do ISMPS em 1985 teve como um de seus objetivos criar bases institucionais adequadas à orientação teórico-cultural voltada a processos músico-culturais perante as décadas que seriam marcadas pelos 500 anos de Descobrimentos portugueses. O primeiro da série de eventos que se realizaram, motivado pela passagem dos 500 anos da viagem de Bartolomeu Dias, foi dedicado às décadas iniciais dos processos históricos da expansão européia na África e dos fundamentos culturais de desenvolvimentos que então se iniciaram. (http://revista.brasil-europa.eu/142/Ribeira-Grande-Rosario.html)

A realização dos eventos desse ano a partir de Roma tiveram a sua justificativa também no papel exercido por navegantes provenientes de cidades italianas na história dos Descobrimentos.

Lembrou-se que Dinis Dias, comerciante, a serviço do Infante D. Henrique (1394-1460), atingiu, em 1444, o promontório denominado de Cabo Verde no ponto mais a Ocidente do litoral africano, descobrindo a "terra dos Guinéus". Essa viagem seguiu àquela de João Dias, que, com Gil Eanes, dobrou o Cabo Bojador. Pelas águas do arquipélago navegou António Fernandes, em 1445.

A terra teria sido tocada porém pela primeira vez pelo que tudo indica por Alvise Cadamosto de Veneza, em 1456. O seu descobrimento sistemático foi levado a efeito a partir de 1458 por Antonio de Noli, de Gênova, que, juntamente com Diogo Gomes, atuou a serviço do Infante e que, a partir de 1461, teriam dado início ao povoamento das ilhas com um pequeno posto militar na ilha de Santiago e na de Fogo.

A prioridade do Descobrimento, se a ser dada ao português Diogo Gomes ou ao genovês Antonio de Noli foi motivo de rivalidade e mantém-se, no presente, nas diferentes perspectivações nacionais da historiografia.

Tendo-se considerado a perspectiva italiana na historiografia dos Descobrimentos em Roma, os eventos euro-brasileiros do "Ano Bartolomeu Dias" foram dedicados, a seguir, à consideração da visão portuguesa das decorrências em encontros e estudos desenvolvidos na ilha da Madeira.

As perspectivas para a intensificação de cooperações com o ISMPS, e mais em particular com a comunidade madeirense no Brasil, foram tratadas em encontro com autoridades do Govêrno local e com estudiosos da Biblioteca e do Conservatório em Funchal. (http://www.revista.akademie-brasil-europa.org/CM01-02.htm)

1989: Colóquio euro-brasileiro da emigração lusófona na Europa

Esses trabalhos tiveram a sua continuidade em colóquio euro-brasileiro realizado na Alemanha em 1989. Esse evento teve como escopo considerar tendências da pesquisa de expressões culturais da atualidade relativas a tradições culturais de referenciação cristã e do sincretismo, assim como discutir a necessidade de reconsiderações teóricas, hipóteses de origem e de interpretação.

Esses revisões surgiam como necessárias como resultado de estudos de fontes históricas e dos debates relativos ao significado teológico e histórico-missiológico de sentidos de tradições de fundamentação religiosa desenvolvidos no decorrer dos trabalhados referenciados pelo "Ano Bartolomeu Dias".

Esse empreendimento, que contou com a participação de considerável número de pesquisadores culturais brasileiros na Alemanha, emprestou particular atenção à internacionalização dos estudos lusófonos de processos culturais através da procura de neles integrar intelectuais da imigração portuguesa, brasileira e de outros países e comunidades de idioma português na Europa. (http://www.revista.akademie-brasil-europa.org/CM02-09.htm)

Ao Cabo Verde compete aqui desempenhar um papel relevante como país marcado de forma particularmente intensa pela emigração e pela atividade intelectual de suas associações de migrantes com os seus centros de encontros, associações culturais e de esportes, programas musicais, de danças e de publicações.

A música do Cabo Verde nos estudos universitários e em eventos internacionais

A música e processos músico-culturais do Cabo Verde foram pela primeira vez alvo de atenções especiais na universidade alemã no contexto de série de cursos realizados a partir de 1997 na Universidade de Colonia dedicados à renovação metodológica e de perspectivas do estudo músicológico de orientação cultural  em contextos globais.

Os especiais elos que unem o Cabo Verde ao Brasil justificaram a sua consideração privilegiada no âmbito do triênio de eventos pelos 500 anos do Brasil, em particular na sessão dedicada ao Choro do colóquio Brasil 2001, realizado com o patrocínio da Embaixada do Brasil na Alemanha, quando novas aproximações quanto a seu desenvolvimento histórico puderam ser discutidas.

Na Friedrich-Wilhelms-Universität de Bonn, o Cabo Verde
foi alvo de particular atenção não apenas no âmbito de uma História da Música em contextos globais, mas sim também em cursos dedicados aos Cultural Studies, Gender Studies e, em particular, à questão da World music.

Foram nesses seminários e colóquios dos anos de 2002 a 2004 que se discutiu sobretudo a extraordinária relevância e a atualidade do Cabo Verde para os estudos de processos culturais no presente. Essa relevância demonstra-se pelo fato do Cabo Verde vir de encontro de forma especial a questionamentos dos Cultural Studies da esfera anglofônica e pela popularidade internacional conquistada por músicos caboverdianos, sobretudo por Cesária Évora (1941-2011).

Educação em cooperações internacionais como desideratum

No encontro de 2005 na Embaixada de Cabo Verde em Berlim traçou-se um quadro geral dos trabalhos relativos ao Cabo Verde do ISMPS, salientando-se, em particular, a orientação teórica peculiar da instituição e o desenvolvimento histórico que a justifica.

Por parte da representação diplomática do Cabo Verde, manifestou-se um interesse especial pela intensificação de cooperações internacionais na área da Educação e da formação de professores em cursos de Licenciatura.

Como então salientando, esse desideratum vem de encontro à orientação dos estudos euro-brasileiros no seu vir-a-ser desde a década de setenta, uma vez que foi alvo de atenções no âmbito de disciplinas na área da Licenciatura em Música e Educação Artística. (http://revista.brasil-europa.eu/142/Universidade-Piaget-Mindelo.html)

Entretanto, salientou-se que a atenção foi sempre aqui primordialmente dirigida a fundamentos e análises culturais, não à prática educativa. O objetivo de promoção de uma Educação Musical adequada culturalmente tem como pressuposto o desenvolvimento de pesquisas de bases a partir de uma orientação teórica refletida. (http://revista.brasil-europa.eu/142/Ensino-Cabo-Verde-Brasil.html)

Como consequência dos resultados do encontro, o Cabo Verde passou a ser objeto de reflexões em universidades alemãs, nos quais processos formativos e educativos foram particularmente considerados. Essas considerações tiveram lugar no contexto dos seminários Música na África Lusófona, Processos Transatlânticos e interamericanos, Colonialismo e Pós-Colonialismo e Migração e Estética.

Já Luiz Silva, em 1983, na sua introdução à mencioonada reedição do Folclore Caboverdiano de Pedro Monteiro Cardoso dedicou um capítulo ao tema "A Educação Escolar e a Emigração". O autor lembra que na Europa e mesmo em países africanos lusófonos corria a noção de que os caboverdianos ter-se-iam beneficiado quanto ao considerável grau de escolarização do país do colonialismo português. Para o autor, porém nessa paixão do caboverdiano pelo ensino devia ser considerado motivos históricos e também o papel importante desempenhado pelos emigrantes.

"O direito à educação foi sempre uma das grandes exigências do caboverdiano. Habituado a emigrar, a contactar povos de grandes civilizações e culturas, o caboverdiano, sempre aberto aos ventos da história que passam pelo Porto Grande, compreendeu que a natureza ingrata das ilhas poderia ser transformada graças à contribuição científica, pondo termo ao problema secular da emigração." (op.cit. XVIII)

"No estrangeiro, o caboverdiano compreende a necessidade de uma formação necessária para  melhor se triunfar na sociedade onde vive e prarar melhor o seu regresso. Mesmo, se não conseguir atingir o nível desejado, ele fará todos os sacrifícios para que os filhos consigam uma formação superior. O equilíbrio social e cultural que se vem desenvolvendo em Cabo Verde seria devido em parte ao investimento dos emigrantes na educação dos filhos. Em vinte anos na América ou na Europa, um emigrante caboverdiano, pode fazer do seu filho um doutor, um engenheiro, um quadro superior na vida do país." (op.cit. XIX)

"Mas os erros decorrentes duma alfabetização sem ter em conta as realidades sociais, económicas, culturais, sem levar também em conta as características especiais de cada ilha, serviram para encorajar a emigração. Os casos das ilhas de Santo Antão e da Brava seriam os mais flagrantes. Todo o camponês alfabetizado seria um candidato à emigração." (op.cit. XX) Para o autor, "bibliotecas, casas de cultura, revistas especializadas de carácter regional poderiam contribuir a reflexões sobre os problemas de cada ilha e do arquipélago no seu conjunto, a fim de fixar o caboverdiano na sua terra, em vez de estar a sonhar emigrar". (ibidem)


Mediterrâneo/Atlântico no ano de Marseille como "Capital da Cultura 2013"

A programação de um ciclo de estudos no mundo insular do Atlântico dá continuidade sob diferentes aspectos a trabalhos em andamento e a debates de complexos temáticos considerados em empreendimentos recentemente realizados.

O fato de Marseille ser Capital Européia da Cultura 2013 - o internacional e cosmopolita porto francês no Mediterrâneo que se se apresenta hoje como uma das cidades européias mais marcadas por encontros e interações culturais - coloca no centro dos interesses questões relacionadas com navegação e comércio, contatos entre povos, colonizações e descobrimentos.

Em ciclo de estudos preparatórios, considerou-se que essa cidade portuária remonta à colonização greco-insular no Ocidente em remota Antiguidade, tendo-se tornado por sua vez centro de viagens de navegação e descobrimentos que ultrapassaram a área do Mediterrâneo e se estenderam ao Atlântico, tanto ao Atlântico Sul como ao Atlântico Norte. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Estudos-e-Esclarecimento.html)

A celebração desse porto como Capital Européia da Cultura de 2013 dirigiu a atenção assim a fundamentos de um edifício cultural relacionado com a orientação nos mares de remota proveniência e que, apesar de reinterpretações e mudanças de referenciais históricos de suas imagens permaneceu vigente através dos séculos, sendo transportado em fases posteriores da história da expansão européia às regiões de colonização extra-européias.

Na continuidade desses estudos, focalizam-se prioritariamente processos desencadeados com uma retomada de ímpetos de expansão e colonização na Idade Média tardia no universo atlântico. Se as reflexões haviam partido do Mediterrâneo, o centro das atenções desloca-se agora para o mundo insular atlântico alcançado, descoberto ou redescoberto, e que se tornou alvo de cristianização e colonização. Essas ilhas não apenas inseriram-se em processos históricos de expansão e colonização, mas também tornaram-se pontes para a colonização do continente americano e mesmo de outras regiões do globo. (http://revista.brasil-europa.eu/142/Ribeira-Grande.html)

No estudo do papel exercido pelas ilhas atlânticas, não se optou pelo sequência histórica dos descobrimentos ou pela proximidade geográfica relativamente ao continente. A preocupação voltada à análise de fundamentos do edifício cultural remontante à Antiguidade e que continuaram a vigorar nas imagens celestes orientadoras de navegantes levou a que se partisse de concepções da antiga mitologia associadas com as ilhas, que perduraram na tradição literária e que podem oferecer caminhos para a compreensão de sentidos de expressões culturais ou de suas interpretações.

Nesse sentido, as Hespérides e as Gorgades da linguagem da antiga Geografia e de suas localizações no Oceano ocidental serviram de ponto de partida de análises culturais. (http://revista.brasil-europa.eu/142/Hesperidas-Gorgadas-Cabo-Verde.html)

Cabo Verde no contexto da renovação dos estudos transatlântico/interamericanos

A realização do ciclo de estudos no mundo insular atlântico dá prosseguimento também a intentos de renovação dos estudos transatlânticos sob as novas condições criadas pelos processos de integração européia e de aproximação dos países americanos entre si e que vem marcando há 30 anos os trabalhos euro-brasileiros (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/128/Canada-EUA-Brasil.html).

Como salientado e debatido em várias ocasiões, a visão e interpretação de ocorrências históricas no Atlântico e nas relações transatlânticas foram determinadas por elos coloniais, refletindo perspectivas das metrópoles ou delas assimiladas ou reformuladas com base em argumentos de idioma, experiências históricas e tradições comuns, e que são elas próprias resultados de desenvolvimentos históricos.

Esses enfoques nacionais ou bi-laterais criam no todo uma complexa situação de fragmentação de conhecimentos, de diferentes culturas de saber, marcadas por repertórios distintos de nomes, obras e fatos. Somente um ponto de perspectiva mais distanciado poderá permitir análises de processos que decorreram no Atlântico e que nas suas complexas interações estenderam-se a países como o Brasil. Também nesse sentido justifica-se a consideração do Cabo Verde como ponto de partida privilegiado dos estudos atlânticos.

Se nesses estudos tem-se a consciência da divisão entre esferas de interesses da Espanha e de Portugal de antigos tratados, entre p.e. as Canárias e o mundo insular lusófono, - e que ainda se mantém de forma insustentável em época de aproximação dos países latinoamericanos -, se nesses estudos também se tem a consciência da ponte entre a África e o Novo Mundo representada pelas ilhas do Cabo Verde, ainda insuficiente é a consciência do papel desempenhado por países do Atlântico Norte, em particular pela Grã-Bretanha nas relações internacionais no Atlântico e para o qual o Cabo Verde oferece principal exemplo. (http://revista.brasil-europa.eu/142/Mindelo.html)

Para o escopo acima mencionado de uma renovação dos estudos atlânticos e interamericanos o Cabo Verde, tendo possuido o principal porto de abastecimento de navios que cruzavam os oceanos, inserindo-se em configurações políticas e relações luso-britânicas que marcaram a história européia, surge como predestinado a desempenhar papel de central importância.

Esse significado do Cabo Verde para o estudo de processos histórico-culturais em contextos globais e nas relações internacionais vem justificando a atenção dada ao arquipélago em seminários universitários e nos trabalhos euro-brasileiros das últimas décadas.

A presença britânica no Cabo Verde, sobretudo em Mindelo no século XIX, e as consequências de suas interações culturais com um contexto de formação luso-africana remontante ao início da era das Descobertas fazem com que o complexo insular caboverdiano assuma uma posição de particular relevância na consideração de encontros e relações entre esferas político-culturais européias no Atlântico e, assim, para a superação de enfoques particularistas e reducionistas que se impõe. (http://revista.brasil-europa.eu/142/Mindelo-Torre-de-Belem.html)

O Cabo Verde adquire também sob um outro aspecto atualidade nos estudos culturais preocupados com a renovação de visões, questionamentos e procedimentos. A intensidade de contatos entre homens do mar e viajantes de diferentes nações em portos do mar esclarece, nas situações insulares, a transpassagens de esferas culturais.

A existência de grandes comunidades de origem caboverdiana em cidades da América do Norte e da Europa impõe uma visão ampla do complexo cultural referenciado pelo Cabo Verde e que inclui necessariamente a presença caboverdiana no mundo fora do arquipélago. A consideração de processos culturais em que se inserem os migrantes nos diferentes contextos, marcados por necessidades e complexos impulsos por vezes contraditórios de integração e diferenciação, de auto-afirmação social e cultural nos diferentes países e conscientização de origens e características culturais do mundo insular surge mostra-se sobretudo no caso do Cabo Verde como uma tarefa indispensável dos Estudos Culturais da atualidade.

Os estudos caboverdianos não dizem respeito apenas ao arquipélago, mas sim às sociedades que os recebem, em particular neste contexto ao Brasil e à Europa. Essa perspectiva ampla, incluindo necessariamente a consideração de desenvolvimentos das grandes comunidades de ilhéus na América do Norte, traz à consciência o papel que cabe ao Cabo Verde na renoção dos estudos de processos transatlânticos, interamericanos e suas interações.

Significado do Cabo Verde sob a perspectiva dos Cultural Studies

Essa exigência de consideração de situações referenciadas pelo Cabo Verde no Exterior impõe-se sobretudo pelo papel relevante desempenhado por caboverdianos e seus descendentes nas grandes metrópoles européias quanto à difusão mundial de conhecimentos e de expressões culturais caboverdianas, em particular da música.

Trata-se, aqui, da necessária leitura de textos e de tentativas de compreensão de desenvolvimentos quanto a expressões artísticas a partir da situação da imigração e da dinâmica de transformações culturais fora geograficamente do mundo insular, ou seja, de procedimentos que vinculam estreitamente os estudos culturais com aqueles de rêdes de contatos, da produção de saber e de iniciativas criadoras.


Os estudos relativos ao Cabo Verde vêem de encontro, nos seus questionamentos, aos interesses dos Cultural Studies britânicos ou a êles remontantes, em particular na sua prática no mundo anglofone. Esse fato - que salienta a necessária atenção que cabe ao Cabo Verde no debate cultural da atualidade - não se justifica apenas superficialmente pelos elos com a Grã Bretanha na história comercial marítima e dos transportes, mas sim pelas condições de trabalho ali criadas pelo empreendendorismo inglês e que determinou desenvolvimentos sociais e culturais. (http://revista.brasil-europa.eu/142/Musica-Cabo-Verde.html)

Correspondendo assim às tendências dos Cultural Studies, a atenção dirige-se necessariamente a questões relacionadas com o mundo de trabalho em situações determinadas por desenvolvimentos industriais e técnicos, pelas expressões e transformações culturais do mundo operário e de contextos sociais urbanos relacionados com a vida de trabalho, no caso portuária.

Abertura caboverdiana ao pensamento brasileiro e anelos esclarecedores: Claridade!

A obra de Pedro Monteiro Cardoso testemunha de forma expressiva que o seu autor conhecia e estudara textos de pesquisadores brasileiros, uma vez que cita Mello Moraes (1844-1919), Silvio Romero (1851-1914), Afranio Peixoto (1876-1947) e João Ribeiro (1860-1934).

Essa recepção e mesmo essa fascinação pelo Brasil no pensamento caboverdiano foi considerada no fundamental estudo de Manuel Ferreira como Prefácio à republicação de Claridade ("O Fulgor e a Esperança de uma Nova Idade", Claridade, Linda-a-Velha: A.L.A.C., Colecção para a Historia das Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa", 1986, XIX ss.), no qual também trata de um "mito do Brasil": "O Brasil enquanto modelo de virtudes várias, pátria dos grandes valores culturais, lugar onde se forjou uma nova fisionomia humana e social." (pág. XXXVII)

Preocupados desde fins da década de 60 com a renovação da própria área disciplinar, por demais marcada por delimitações nacionalistas do passado, pesquisadores brasileiros de Folclore e disciplinas afins passaram a reconhecer que estudiosos caboverdianos há muito não apenas constataram a existência de expressões culturais comuns como também tiveram a abertura de olhar para além de suas fronteiras insulares e considerar a literatura e as correntes de pensamento do Brasil. (http://revista.brasil-europa.eu/142/Folclore-Cabo-Verde-Brasil.html)

Em nenhum outro país de língua portuguesa pôde-se até hoje registrar um interesse comparável por obras de intelectuais brasileiros como no Cabo Verde.

Não há país do mundo que manifeste de forma mais intensa a irradiação intelectual do Brasil no mundo do que o Cabo Verde, que testemunhe maior simpatia nascida de uma consciência de estreitos elos quanto a experiências históricas, a relações e de mentalidades afins.

Essa situação não apenas honra, mas traz consigo responsabilidades e deveres para o Brasil que, vindo de encontro a essa receptividade, deve assumir esse convite a uma estreita cooperação intelectual transatlântica no prosseguimento das reflexões.

A exigência de estudos comuns deriva, assim, não apenas da existência de tradições e expressões culturais similares nas duas esferas, mas sim também de uma afinidade quanto a modos de pensar, ver e interpretar fatos e desenvolvimentos em história já longa de diálogos e interações.

O Cabo Verde não surge aqui apenas como receptor, mas também como indispensável colaborador no desenvolvimento do pensamento teórico-cultural em contextos globais, pois tem manifestado a sensibilidade de percepção, a lucidez de consciência e a abertura de espírito necessárias para a superação de delimitações.

Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. Claridade! Cabo Verde e Brasil. Significados e dimensões de relações nos estudos de processos culturais em contextos globais - Estudos Culturais e Ciências da Educação". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 142/1 (2013:2). http://revista.brasil-europa.eu/142/Cabo-Verde-Brasil.html