Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Fotos A.A.Bispo.
©Arquivo A.B.E

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 142/9 (2013:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Dr. H. Hülskath (Dir. Adm.) e Conselho Científico

Organização de estudos de processos culturais em relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa  -
e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2980




Miserere. De toadas que movem à devoção e às lágrimas
Fundamentos religioso-culturais da tristeza e da dor caboverdianas

Em sequência a encontro na Embaixada da República de Cabo Verde em Berlim
Na passagem dos 25 anos do primeiro da série de eventos euro-brasileiros do I.S.M.P.S. e da A.B.E. pelos 500 anos de Descobrimentos portugueses

 

Uma das questões que sempre se levantam quando se considera a cultura do Cabo Verde diz respeito a preponderância da tristeza nas suas expressões cantadas e que surge até mesmo como característica determinadora de identidade cultural.

Já há muito foi a tristeza, a melancolia e a saudade decantadas como manifestação de uma alma caboverdiana. Essa interpretação demopsicológica leva compreensivelmente à procura de razões para explicá-la e vários foram e são os caminhos até hoje tentados.

As condições geográfico-naturais de insularidade no Atlântico central que determinaram isolamentos e separações, desenvolvimentos históricos marcados pelos trágicos destinos de escravos para ali trazidos e que dali partiam e sobretudo a experiência existencial de emigrantes e de suas abandonadas famílias encontram-se entre as muitas razões apontadas como elucidativas da saudade, do chorar e de outras expressões de tristeza caboverdiana.

"(...) desta saudade feita de fulgores, nascida da incerteza, formou-se o tipo crioulo identificado com a dor lapidescente nas planuras sertanejas. Seus versos revelam o pesar do marinheiro que partira das praias de Portugal em demanda de caminhos ignorados, o comêço de outra aventura sempre mais além, o sonho do pequeno reino que desejava dilatar-se em grande Império; seus versos rescendendo a maresia, colherm a difusão da luz, a claridade dos espaços onde as aves mensageiras das ilhas misteriosas se libravam preguiçosamente..." (Fausto Duarte, Da Literatura Colonial e da 'morna' de Cabo Verde, 1a Exposição Colonial Portuguesa, Porto 1934, Separata 12)

A saudade não é prerrogativa da cultura do Cabo Verde, mas também considerada como característica cultural distintiva de Portugal e do Brasil. Como sempre reconhecido pelos observadores, a morna caboverdiana apresenta afinidades de expressão de emoções e sentimentos com o fado e com a modinha do passado brasileiro.

As razões aventadas podem, assim, justificar diferenças e que passaram a ser caracterizadoras de contextos particulares e identidades nacionais, não dizem respeito, porém aos fundamentos de complexos culturais e talvez até mesmo demopsicológicos.

A existência de similaridades para além de limites continentais e insulares,  atravessando o Oceano, apenas pode ser entendida a partir de processos experimentados por todas essas regiões. A perspectiva histórica surge assim como necessária na procura das razões mais profundas das características comuns e das suas singularidades nos diferentes contextos.

Essa aproximação dirige a atenção a configurações e processos culturais já em vigência em Portugal e que se estenderam no decorrer da história dos Descobrimentos e da colonização a outras regiões do mundo.

Resultados da ação formativa e transformativa da cristianização ibérica de remotos séculos, complexos culturais assim configurados estiveram sujeitos por séculos a ações por parte de religiosos, em constantes restaurações, correções, modificações quanto a pêsos e expressões.

O povoamento e a ação missionária nas regiões descobertas procederam-se em época da história cultural européia particularmente marcada por extraordinárias tensões religioso-culturais e que tiveram as suas mais evidentes expressões na expulsão e conversão de judeus, com os conflitos subsequentes entre cristãos "velhos" e "novos",  de reiteração do Judaísmo, assim como nos movimentos reformatórios, interno-reformistas do Catolicismo e contra-reformatórios.

O Cabo Verde, o Brasil e outras regiões do mundo alcançadas pelos portugueses não se inseriram em Cristandade culturalmente imóvel, mas em "Igreja sempre reformanda" em diferentes sentidos, marcada pela pluralidade de correntes, acentos e tendências.

Possíveis pressupostos religioso-culturais dessas características da tristeza em expressões culturais de Portugal e do mundo marcado pelos portugueses foram consideradas no âmbito dos trabalhos euro-brasileiros realizados em Roma pelo "Ano Bartolomeu Dias" (1987/88) e que inauguraram a série de eventos euro-brasileiros dedicada a 500 anos de Descobrimentos portugueses. (A.A.Bispo, Grundlagen christlicher Musikkultur in der außereuropäischen Welt der Neuzeit: der Raum des früheren portugiesischen Patronatsrechts, Musices Aptatio 1987/88, Roma 1989, 752)

O Miserere como ponto de partida das reflexões

Ponto de partida das reflexões musicológicas e teológicas relativas à tristeza e sentimentos similares na cultura caboverdiana nos trabalhos em instituições pontifícias romanas em 1987 foi uma referência em fonte do início século XVII que menciona uma "uma nova toada" do Miserere que teria sido "tam devota que a todos movia a muita devação e lagrimas". (Monumenta Missionaria Africana IV, ed. A. Brásio, Lisboa 1952-1968, 2a. série, 528 ss., loc.cit.)

Essa notícia documenta o significado do canto do Miserere na vida religiosa do Cabo Verde e
registra uma nova versão musical do texto, salientando o seu efeito nos fiéis.

O termo Miserere, embora surja como primeira palavra de diferentes salmos (50, 55, 56) e em muitos outros textos, indica aqui certamente o salmo 51 (50 da Vulgata). Era a primeira palavra do texto Miserere mei Deus secundum magnam misericordiam tuam.

Esse salmo era cantado na prática consuetudinária européia em numerosas ocasiões das Horas, da celebração de missas, na oração do breviário, em enterros e em vários outras cerimônias e da vida religiosa de sacerdotes e leigos. O Miserere tinha uma posição de particular significado nos ofícios e em muitas solenidades. Era o primeiro salmo das Laudes nos dias feriais em todo o ano fora do tempo pascal e nos ofícios dominicais da Septuagesima ao Domingo de Palmas. O Miserere era também cantado no ofício dos mortos.  Encontrava-se presente nas preces feriais das Vésperas nas semanas da Quaresma, com exceção do triduum da Semana Santa, do Advento, e nas Vigílias, com exceção das de Natal, Epifania, Ascensão e Pentecostes.   Era rezado antes da oratio em todas as Horas no triduum da Semana Santa, com exceção das Vésperas e Completas do Sábado Santo.

O Miserere marcava particularmente as preces da Semana Santa, destacando-se o Ofício das Trevas da Quinta-Feira Santa, a Sexta-Feira da Paixão e o Sábado. Cantava-se o seu primeiro verso e Gloria Patri com a antífona Asperges me na missa solene de domingo fora do período pascal.


O Miserere encontrava-se em outras funções cerimoniais, no da morte, com a antífona Ecultabunt Domino ossa humiliata, na visitação episcopal de paróquias, na benção de sinos, na consagração de pedra de altar, na colocação de pedra-canto de uma igreja, na benção de igrejas, cemitérios, casas e campos. Na consagração da igreja era dito de fora solene e repetido por grupos de três versos durante o aspergir de água benta sobre o altar. Na visita a doentes, o sacerdote podia rezá-lo enquanto levava o Santissimo Sacramento ao doente.

Encontrava-se presente também em vários atos de contrição e penitência. Era o quarto dos sete salmos penitenciais, recitado de acordo com o Breviário. Era dito diariamente nas orações após o jantar, com exceção da época de Natal até a Oitava da Epifania, do Sábado Santo e período pascal, e da Quinta-Feira da Ascensão até a Oitava de Pentecostes.

Era pronunciado por um penitente absolvido de excomunicação e pelo sacerdote, no caso de excomunicados que haviam dado algum sinal de contrição antes da morte. Nos conventos, era orado durante as disciplinas. Era fundamental em antigas práticas de reconciliação de penitentes.

Florescimento de composições polifônicas do Miserere nos séculos XVI e XVII

A menção da "nova toada" do Miserere no Cabo Verde vem de encontro a um desenvolvimento histórico-musical marcado pelo interesse despertado por esse salmo em compositores europeus dos séculos XVI e XVII. As fontes indicam a prática a várias vozes desse salmo, em trabalhos por vezes anônimos, como em documento inglês de meados do século XVI. Elaborações do tipo de falso bordão sugerem a existência de prática consuetudinária de execução vocal e, assim, de suas inserções em tradições de remotas origens. É significativo, neste contexto, que haja documentos anônimos de elaborações a várias vozes desse salmo na Inglaterra de meados do século XVI.

O uso do falso bordão teria sido intensificado em período preocupado com a maior solenização dos atos litúrgicos através, mesmo em época do calendário religioso que impunha restrições à prática musical artística. Esse seria o caso de composições a várias vozes de todo o salmo para o ofício das Trevas, quando essas práticas do tipo de falso bordão alternavam com o Canto Gregoriano. Muitos dos grandes compositores dos séculos XVI e XVII escreveram obras para o texto do Miseerere, devendo-se lembrar  sobretudo a famosa obra de Gregorio Allegri de vedada cópia e que, passando à tradição romana, adquiriu aura de mistério. Também elaborações discretas desse salmo penitencial podem ser registradas na polifonia ibérica do contexto da Semana Santa, lembrando-se, entre outros, de T. L. de Victoria (ca. 1548-1611).

A prática de execução alternada de elaborações a várias vozes e Canto Gregoriano do salmo penitencial parece remontar a 1514, época de Leão X (1513-1521), anos de particular significado para o estudo cultural das relações entre Portugal e a Santa Sé.

O interesse pelo tratamento musical do Miserere - nas suas formas mais simples do tipo de falso bordão àquelas mais elaboradas, por ex. dos franco-flamengos -, necessita ser estudado nas suas relações com concepções teológico-musicais relativas ao culto e suas transformações no decorrer de movimento de auto-reforma da Igreja. 

A ação missionária nas regiões extra-européias, sobretudo nas práticas dos Jesuítas, tendo sido acompanhada pelo cultivo de práticas de fomento à contrição e à penitência, levou a uma ampla difusão do Miserere, marcando a cultura popular de comunidades em formação.

Menções em fontes de várias regiões do mundo indicam a atenção dada pelos missionários à criação de situações e atmosferas determinadas por sentimentos de arrependimento e às expressões de tristeza.

Dessas referências constata-se uma intensificação da emocionalidade e mesmo dramaticidade de atos e expressões individuais e coletivas no período posterior ao Concílio Tridentino, um desenvolvimento que pode ser analisado nas suas dimensões globais e nas suas relações com a atuação de determinadas ordens nos diferentes contextos.

Essas referências dizem respeito sobretudo à intensificação de práticas da Semana Santa como principal período do ciclo do ano religioso e uma atenção acentuada ao Mistério da Paixão. Esse desenvolvimento pôde ser estudado em particular na Índia.  Segundo carta do Pe. Luis Frois (1532-1597) de 1561, introduziu-se nesse ano uma nova prática: à entoação do Miserere, padres e irmão passaram a disciplinar-se no coro superior da igreja, enquanto os fiéis, na nave, penitenciavam-se com grande ardor, "huns com punhaladas nos peitos, outros arrancando as barbas (...)" "(...) foi huma das cousas que muito me confundirão ouvir aquelles sospiros e sentimento do povo que parecião sairem-lhe d'alma, por não erão com rumor de gritos mas com excessos de soluços e lagrimas"). (Documenta Indica V,ed. J. Wicki, Monumenta Historica Societatis Iesu, Roma, 1948-1984, 255,  cit. A.A.Bispo, op.cit. 699)

A "nova toada" citada no documento relativo ao Cabo Verde, justamente à época da tentativa de fixação dos Jesuítas em Ribeira Grande parece indicar que também ao arquipélago alcançou um desenvolvimento registrado em países europeus de diversificação de possibilidades de tratamento do Miserere nas décadas mais avançadas do século XVI e no XVII, por ex. em composições para alaúde.

O termo "toada" parece indicar que o texto ou a sua mensagem teriam sido tratados melodicamente, talvez em foram de canção.

O salmo Miserere na tradição judaica e dos "cristãos novos"

Tratando-se de um texto do Velho Testamento, esse salmo penitencial de David ocupava também posição de particular relevância na vida religiosa dos judeus, fato que não pode ser neglicenciado em época marcada pela expulsão de judeus da Espanha e posteriormente de Portugal, de suas conversões induzidas, reconversões e diáspora.

Considerando a presença acentuada e atuante de "cristãos novos" sobretudo as ilhas atlânticas de Cabo Verde (e São Tomé) pode-se compreender que os salmos, em particular o Miserere, tenha possibilitado vínculos entre o patrimônio religioso judaico, as concepções e a vida religiosa cristã.

Essa permanência de estado de espírito e de alma marcados pelo Velho Testamento através do salmo, intensificado na sua prática pelos procedimentos missionários e pelos intuitos auto-reformistas, explicaria o papel especial que o Miserere - ou a sua mensagem - teria desempenhado na formação de uma cultura do choro e das lamentações nas ilhas.

Significado da exegese do Miserere para análises culturais

Como discutido nos trabalhos de 1987 em Roma, esse papel de primordial relevância desempenhado pelo Miserere em processos de formação cristã-ocidental em regiões extra-européias dos séculos XVI e XVII, faz com que a exegese de seu texto surja como pressuposto para análises de fundamentos religiosos da cultura musical assim implantada.

Para isso, torna-se porém necessário realizar estudos da própria história da interpretação de seus sentidos. Partindo-se aqui da sua leitura nas Enarrationes in Psalmos de Sto. Agostinho, constata-se que a tradição exegética considera o conteúdo desse salmo como modelar para todos os cristãos, tanto para aqueles que já pecaram, como para aqueles que ainda não pecaram. Serve, assim, como indicativo de caminhos para a absolvição de culpa e como advertência.

Em súmula, o fiel, consciente das suas transgressões, pede que Deus o lave completamente da iniquidade, purificando-o do pecado com a água, apagando-as. Ele pede que Deus o faça ouvir júbilo e alegria, para que os seus ossos, quebrantados, possam gozar. Ele pede que lhe seja novamente dada a alegria da salvação; então ensinará aos transgressores os caminhos de Deus e os pecadores se converterão. Ele pede que Deus lhe abra os lábios, para que a sua boca entoe o louvor divino.

O conteúdo do salmo revela, portanto, a íntima relação entre o choro do coração contrito e quebrantado com a alegria, entre a edificação dos muros de Jerusalem com a bênção de Sião, ou seja, com a congregação.

"(...) tam devota que a todos movia a muita devação e lagrimas"

Como a referência à nova toada do Miserere em Cabo Verde indica, a função alcançada da música era a do mover o interior dos fiéis, fomentando a piedade e os levando ao derramamento de lágrias, ou seja, ao choro. Essa intenção de "mover" o homem interior pode ser comprovada também em outras regiões do mundo de língua portuguesa da época.

Essa referência testemunha assim a vigência de concepções relativas a afetos e à função da música no co-mover de antiga tradição no Cabo Verde e que, na época, alcançava a sua maior expressão na doutrina dos afetos nos países europeus.

Seria tarefa merecedora de atenção considerar se uma cultura de saber e de cultivo da oratória que desempenhou papel significativo no Cabo Verde devido às peculiaridades de sua posição de posto europeu à frente do continente africano não tenha contribuído ao desenvolvimento de formas de expressão musical estreitamente unidas à palavra e correspondente aos recursos da retórica, talvez até mesmo com o uso de suas figuras relacionadas com a dor e o pesar (e.o. Syncopatio, Aposiopesis, Passus duriusculus, Saltus duriusculus, Suspiratio/Tmesis). Uma tendência melódica descendente registrável em "mornas" poderia ser interpretada no sentido da Katabasis.

Ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Miserere. De toadas que movem à devoção e às lágrimas. Fundamentos religioso-culturais da tristeza e da dor caboverdiana". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 142/9 (2013:2). http://revista.brasil-europa.eu/142/Cabo-Verde-Miserere.html