Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Mindelo, Praia e Assomada (ultimas do texto e da coluna) A.A.Bispo.
©Arquivo A.B.E.








 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 142/3 (2013:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Dr. H. Hülskath (Dir. Adm.) e Conselho Científico

Organização de estudos de processos culturais em relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa  -
e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2974




O estudo de processos formativos e do desenvolvimento escolar
como pressuposto para cooperações na área da Educação
Contribuições da história oral:
Júlio Nascimento Teixeira, discípulo de Baltasar Lopes da Silva (1907-1989)

Em sequência a encontro na Embaixada da República de Cabo Verde em Berlim
Na passagem dos 25 anos do primeiro da série de eventos euro-brasileiros do I.S.M.P.S. e da A.B.E. pelos 500 anos de Descobrimentos portugueses

 

Na Embaixada de Cabo Verde em Berlim, em 2005, apresentou-se o trabalho que vem sendo realizado pelo ISMPS, manifestando-se o desejo dos pesquisadores dedicados a estudos de culturais euro-brasileiros de estabelecimento de intercâmbios de conhecimentos com instituições e estudiosos caboverdianos. (Veja http://revista.brasil-europa.eu/142/Cabo-Verde-Brasil.html)

Nessa ocasião, o Embaixador do Cabo Verde salientou o significado de questões relativas à Educação e da formação de professores e no desenvolvimento de instituições no seu país, sugerindo residir aqui o maior interesse em colaborações internacionais, em particular também brasileiras.

Como então exposto, o desideratum de dar-se atenção especial a assuntos relacionados com temas educativos vem de encontro à orientação dos estudos euro-brasileiros pelo próprio desenvolvimento das reflexões e das atividades.

Esse decorreu não apenas no âmbito de iniciativas e instituições voltadas ao ensino e à formação de professores no Brasil, em particular à época da introdução da Licenciatura em Música e Educação Artística no início da década de 70, mas também teve a sua expressão em eventos realizados na Alemanha no início da década de 80 e que foram voltados ao desenvolvimento de uma Pedagogia Comparada e de uma Educação de orientação cultural em relações internacionais e em situações multiculturais.

Como, porém, salientado nesse e em outros eventos e tratado em publicações, esses eventos partiram e partem de uma orientação teórico-cultural que, remontante à entidade fundada em 1968, procura uma renovação dos estudos e da prática a partir de um direcionamento da atenção a processos culturais.

Essa necessidade de que questões educativas sejam consideradas em estreito relacionamento com estudos de processos culturais surge como de fundamental significado para estudos relacionados com o Cabo Verde, país que tem a sua história marcada pelo fato de ter sido passagem de escravos vindos do continente para o Novo Mundo no passado mais remoto e por migrações e emigrações de extraordinárias dimensões e intensidade.

Os trabalhos de levantamento e análise contextualizada de dados em fontes referentes ao Cabo Verde desenvolvidos nas últimas décadas têm demonstrado o significado de processos educativos e formativos nos primeiros séculos da história das ilhas.

Como discutido no "Ano Bartolomeu Dias" (1987/88), essas referências indicam de início a inserção do Cabo Verde em desenvolvimentos europeus de concepções e estrategias político-culturais de fundamentação teológica em época de instabilidade, receios de heresias, de expulsão e conversão de judeus e ímpetos de reforma e revigoramento eclesiástico de fins do século XV e do século XVI.

O ensino de africanos a serviço da conversão e catequese foi acompanhada de início pelo intuito da atração e conquista cultural de líderes através do esplendor de atos litúrgicos e expressões festivas. Esse caminho para uma cristianização a partir de líderes e classes dirigentes dos próprios povos africanos tem os seus mais expressivos testemunhos no transporte a Portugal e na recepção de representantes de Djolof (Jalofos) e congoleses para que, retornando, com a impressão ganha do brilho das expressões culturais, de hospitalidade e amizade, atuassem como agentes e mediadores na transformação cultural de seus povos. (A.A.Bispo, Grundlagen christlicher Musikkultur in der außereuropäischen Welt der Neuzeit: Der Raum des früheren portugiesischen Patronatsrechts II, Musices Aptatio 1987/88, Roma, 1989, 523 ss. )

Para esse fim, tornava-se necessário criar um clero nativo, sendo que as esperanças concentraram-se primeiramente na formação teológica e sacerdotal de africanos em Portugal para que, nas suas terras, com o conhecimento de língua e de costumes, pudessem agir de forma mais eficaz do que missionários europeus.

Pode-se supor que o intento de impressionar e formar através do esplendor do culto e do brilho de expressões culturais e festivas não poderia deixar de ter tido repercussões também´em Portugal, uma vez que exigiam particular atenção à forma e meios de expressão em atos, cerimônias e na própria condução de vida.

Esse desenvolvimento, que valeu primordialmente para a ação político-religiosa em nações africanas no continente, salientando-se aqui o antigo Reino do Congo, difere daquele do Cabo Verde, povoado que foi por europeus, cristãos e "cristãos novos", além de africanos trazidos de diferentes pontos do continente e seus descendentes de uniões com europeus.

A situação insular de posse portuguesa defronte à terra firme, onde a presença européia tinha outras características, pois concentrava-se em feitorias e fortificações em meio africano, conferiu ao arquipélago uma posição de bastião religioso-cultural mais estreitamente inserido em desenvolvimentos europeus, vendo as ações na África antes da perspectiva portuguesa, voltada à necessidade do ensino e formação religiosa nos seus estreitos elos com o próprio culto e cultura.

Compreende-se, assim, que as tendências que se intensificaram à época de D. João III° (1502-1557) tenham tido particular influência na formação cultural do Cabo Verde. Sob o "Rei Piedoso" já não se tratava tanto do esplendor de solenidades e do brilho exterior de festas, que servia ao despertar da fascinação de africanos, mas sim de uma perfeição do culto em consciência da sacralidade dos atos, das neles vigentes relações terreno-celestiais, por assim dizer cósmicas.

Compreende-se, assim, as ordens do rei no sentido que já em terra firme os africanos e os filhos de europeus fossem ensinados em cantar e rezar para servir à missa e o cuidado da época na prática do canto das Horas do ofício, uma vez que exprimem a concepção de uma íntima relação entre a música e o texto sagrado, o do canto não como elemento acessório, mas sim como sacral em si.

A criação da Diocese de Cabo Verde em Ribeira Grande decorreu nessa época marcada por intuitos de reconscientização de fundamentos teológicos do culto e cultura. Ela não pode ser considerada apenas como um ato administrativo, mas sim nas suas características resultantes de processos históricos particulares do Cabo Verde e que a diferenciava de outras dioceses então criadas. (Veja http://revista.brasil-europa.eu/142/Ribeira-Grande-Catedral.html)

Também o intuito do ensino e da formação de um clero nativo, que teve a sua expressão maior na ordem de criação de um Seminário na segunda metade do século XVI, deve ser visto em contexto outro do que aquele de fins do século XV e início do XVI.

Distinguindo-se quanto ao contexto cultural do Seminário também então idealizado para São Tomé, da mesma forma em situação insular, o projeto de sua ereção também foi uma expressão da época de D. Sebastião (1554-1578) e do Concílio de Triento (1545-1563). Manifesta o intento de concretização dos preceitos tridentinos  e da intensidade da preocupação com a coibição de abusos, com a recondução do culto e da vida religiosa a seus fundamentos, como reforma católica por exigências internas e em reação ao mopvimento da Reforma, o que exigia estudos e reflexões.

Esses pressupostos contextuais das primeiras décadas da história do ensino no Cabo Verde nas suas inserções em processos internacionais eclesiásticos e político-culturais  devem ser considerados na tentativa de explicar-se uma tendência a conhecimentos e à erudição que tem-se apontado em caboverdianos e que os diferenciariam sob vários aspectos de africanos do continente. Ela não seria simplesmente resultado de medidas promotoras da educação de épocas mais recentes, sobretudo das últimas décadas do regime colonial, mas estaria inserida em processos culturais de muito mais remota proveniência.

O alto nível intelectual do clero caboverdiano no século XVII foi testemunhado pelo Pe. António Vieira (1608-1697) que, de passagem pela Cidade de Ribeira Grande, surpreendeu-se de ali encontrar cônegos negros mas "tão doutos no saber" que fariam inveja aos cónegos das catedrais do reino. (cit. Luiz Silva, "Introdução", Pedro Monteiro Cardoso, Folclore Caboverdiano, Paris: Solidariedade Caboverdiana 1983, XVII).

O Seminário de São Nicolau: Cônego António Manuel da Costa Teixeira

Também no período posterior da história caboverdiana foi um seminário o principal centro de formação do arquipélago: o de São Nicolau, criado em 1869. Nessa instituição formou-se grande parte da elite intelectual do Cabo Verde e, correspondendo ao interesse na Europa pelo estudo das tradições populares, também ali se desenvolveu o interesse pelo estudo do folclore e a valorização da fala crioula.

Pedro Monteiro Cardoso, no seu Folclore Caboverdiano, lembra do Cônego António Manuel da Costa Teixeira, cuja memória estaria ainda esperando pela devida justiça:

"O Cónego Teixeira foi um lutador incansável, uma inteligência arguta e o iniciador, entre nós, do estudo do folclore regional, como consta dos dois números do almanaque 'Luso-Africano' que fundou e dirigiu, e da publicação que organizou em homenagem a D. António Moutinho, bispo de Cabo-Verde e, ao depois, de Portalegre, na qual fêz estampar várias composições em português e crioulo, quer da lavra própria quer da de outros caboverdeanos, a seu convite concorrentes à homenagem" (op.cit. 26)

Outro nome lembrado por Pedro Monteiro Cardoso que testemunha os elos entre os estudos culturais e a Educação no Cabo Verde é o de Eugénio Tavares, poeta, autor de populares mornas, cognominado, em alusão ao brasileiro Catulo da Paixão Cearense (1863-1946), de "Catulo-Cearense Caboverdeano". (ibidem). Eugénio Tavares empenhou-se na reforma do Ensino Primário em Cabo Verde, levando o Govêrno a reestruturá-lo, em 1916.


São Vicente na história do ensino escolar no século XX: Liceu Infante D. Henrique

A situação especial de internacionalidade do Porto Grande, o cosmopolitismo da vida urbana e os impulsos recebidos da presença britânica, dos contatos com o Brasil e sobretudo daqueles decorrentes dos Estados Unidos levaram a que a capital da ilha de São Vicente se tornasse dinâmico centro cultural e educativo, marcando um processo secularizador na história da Educação em Cabo Verde.

Já em fins do século XIX o desenvolvimento escolar da vida em florescimento levou a desejos de criação de uma escola de instrução secundária. Esse desenvolvimento atingiu o seu ápice nos anos anteriores à Primeira Guerra quando, em 1912, criou-se ali o Liceu Infante D. Henrique, instituição que teria um cunho modelar para o desenvolvimento posterior também na capital, Praia, uma veu que op Liceu Nacional, ali criado em 1860, tivera apenas breve duração. A instituição do Liceu em Porto Grande de São Vicente apenas tornou-se possível através da iniciativa e do empenho de idealistas.

Cumpre registrar, assim, as relações entre a consciência despertada para o significado da formação escolar e uma cultura urbana marcada por produtiva recepção de impulsos externos mas, ao mesmo tempo, pelos problemas e receios trazidos por essa modernização internacionalizadora no sentido de uma descaracterização ou perda de valores culturais tradicionais de formação portuguesa.

Uma expressão dessa intensificação da consciência de lusitanismo foi a comemoração do Tricentenário de Camões, em 1880. A  acentuação dos elos históricos de Mindelo com as Descobertas portuguesa s manifestou-se da forma mais evidente na própria fisionomia da cidade com a singular construção da réplica da Torre de Belém. (Vieja)

Esse campo de tensões em Mindelo relacionou-se com desenvolvimentos políticos em Portugal nas suas inserções em contextos internacionais, em particular com as transformações políticas causadas pelo término da monarquia e a Primeira Guerra Mundial, sendo o debate relativo a questões educativas também conduzido na imprensa à época republicana de 1910 a 1926 (Luiz Silva, op.cit.)

Luiz Silva dedicou na sua mencionada introdução à reedição do Folclore Caboverdiano de Pedro Monteiro Cardoso de um capítulo especificamente ao tema "A Educação Escolar e a Emigração". Lembra que a proibição de entrada de analfabetos nos EUA, em 1917, teve repercussão no desenvolvimento educativo das ilhas e nas comunidades caboverdianas na América do Norte. Ela levou ao surgimento da caução de emigrantes para o financiamento de escolas particulares com o escopo da emigração.

"Mas o caboverdiano não vai somente alfabetizar-se em Cabo Verde. No estrangeiro ele compreende também a necessidade duma formação necessária para melhor se triunfar na sociedade onde vive e preparar melhor o seu regresso. Mesmo, se não conseguir atingir o nível desejado, ele fará todos os sacrifícios para que os filhos consigam uma formação superior." (op.cit. XIX)

Luiz Silva menciona no seu estudo problemas de ensino nas colonias sob o Estado Novo português. O Liceu Infante D. Henrique chegou a ser fechado em 1936, sendo, porém,logo  reaberto em 1937, aqui também graças ao empenho particular, o do Dr. Adriano Duarte Silva.

Desenvolvimento do ensino escolar após a Segunda Guerra: Liceu da Praia

Do período posterior à Segunda Guerra, principal acontecimento foi o da instituição, em 1955, na cidade de Praia de uma seção da escola de São Vicente - agora com o nome de Liceu Gil Eanes - por decreto do Ministro do Ultramar português.. Essa seção foi estabelecida inicialmente em edifício que atualmente é ocupado por um casa de comércio.


O Liceu foi inaugurado em 1960 no âmbito da comemoração do V centenário do Descobrimento de Cabo Verde e das Viagens Henriquinas. Com autonomia relativamente ao Liceu de São Vicente, foi instalado em edifício especialmente construido, prédio de grandes proporções e modelares instalações. Nas suas concepções arquitetônicas e critérios estilísticos, o edifício representa significativo exemplo da arquitetura portuguesa nessa fase do regime autoritário.

Na sua similaridade com construções da época que podem ser encontradas em Portugal, em particular em Lisboa, o liceu demonstra a continuidade da concepção de uma unidade da nação portuguesa para além de fronteiras. Esta é acentuada pela simbólica dos Descobrimentos do monumento na praca fronteiriça e que acentua o sentido de todo o espaço urbano dessa parte de Mindelo. No conjunto da cidade, constitui um pendant na sua expressão do moderno do regime autoritário com a praça do outro lado da cidade alta, marcada por edifícios do passado colonial mais remoto.

Se no Seminário de São Nicolau formaram-se várias personalidades da vida intelectual no século XIX, muitos dos grandes nomes da vida social, cultural e política caboverdiana do século XX passaram pelo Liceu da Praia.


Grande mentor dos professores caboverdianos: Baltasar Lopes da Silva (1907-1989)

A grande personalidade que uniu nos seus interesses e atividades estudos culturais e Educação foi Baltasar Lopes da Silva (1907-1989), um dos fundadores da revista Claridade, intelectual e escritor particularmente relacionado com o pensamento brasileiro.

Tendo obtido a sua formação em São Vicente, estudou em Lisboa, graduando-se em Direito e Filologia Românica. Em São Vicente, tornou-se professor do Liceu Gil Eanes, passando a seguir a dirigí-lo. Por algum tempo exerceu também atividades de ensino em Leiria, cidade que apresenta laços particularmente estreitos com a história do ensino e das atividades culturais de Cabo Verde.

Tendo estado à frente tanto do liceu de Mindelo como da sua seção na Praia, é rememorado em ambas as cidades - e em todo o país - como um dos maiores vultos da intelectualidade caboverdiana, da pesquisa cultural e como mentor do Liceu, do Ensino Secundário e dos professores.


Desenvolvimento do ensino escolar após a Independência: Liceu Domingos Ramos

A Independência do Cabo Verde trouxe consequências para a história institucional da Educação caboverdiana. Em correspondência à nova situação política e suas aspirações, criou-se, por despacho de 1976, o Liceu Domingos Ramos, denominado segundo um combatente que morrera na luta de libertação da Guiné e do Cabo Verde.

Posteriormente, surgiriam outras escolas secundárias na Praia e em outras localidades. A expansão de instituições de ensino intensificou-se na década de 90, e só a capital possui, hoje, 11 escolas secundárias.

Reconstruções de desenvolvimentos a partir da memória de protagonistas

A expansão de instituições de ensino no Cabo Verde também pode ser considerada como sendo, ela própria, expressão de processos culturais. Para reconstruir-se desenvolvimentos das últimas décadas, tem-se hoje ainda a possibilidade de, para além de fontes publicadas, recorrer-se à memória de pessoas mais idosas que atuaram nas últimas décadas do regime colonial e experimentaram o período de lutas e o posterior à Independência.

As recordações do vivenciado oferecem a possibilidade de conhecimentos de pormenores não registrados, de contextos, de percepções e sentimentos de protagonistas envolvidos nos acontecimentos e de sua apreciação à luz da memória e mesmo da nostalgia. O quadro que assim se obtem, por ser produto de procedimento retroativo, pode diferir daquele criado cronologicamente a partir de fontes, complementando-o. Não é apenas história oral, pois os informantes não procedem apenas do passado ao presente, mas também do presente ao passado.

Problemas da história oral: Fatos reais e projeções da erudição caboverdiana

As singularidades de uma aproximação empírica ao estudo do desenvolvimento da Educação escolar caboverdeana das últimas décadas foram constatadas em conversa com o Sr. Júlio Nascimento Teixeira, de 85 anos, professor e inspetor escolar aposentado, e que tem a consciência de ter sido um pioneiro do ensino oficial particular em Santiago.

Nascido em Paul, Eito, na ilha de Santo Antão, é orgulhoso da sua terra natal, que considera a mais bela ilha do arquipélago.

Na sua tentativa de reconstrução do próprio passado, recordações de dados transmitidos pela tradição familiar parecem mesclar-se com conhecimentos históricos posteriormente adquiridos, não se podendo discernir exatamente fatos reais de projeções.

Esse parece ser o caso das suas relações com o Brasil, onde teria atuado o seu tio Pedro Teixeira, um viajante que percorrera o Amazonas e ao qual teria sido levantado um monumento numa das cidades da região. Tendo atingindo a idade provecta de 110 anos, chegou a procurar os seus parentes em Buenos Aires quando da emigração, não sendo, porém, reconhecido.

A narrativa, apesar de seus muitos detalhes, levanta diversas questões. Pergunta-se se não se reflete nela uma expressão da erudição do professor, projetando na própria história familiar conhecimentos de Pedro Teixeira (?-1641) transmitidos por leituras, talvez da Historia do Brasil do Frei Vicente do Salvador (1564-c.1635).

As referências a respeito do seu tio lembram aquelas do militar que atuou na expulsão dos franceses do Maranhão, no início do século XVII, participou na expedição à foz do Amazonas, quando fundou-se então o forte do Presépio, combateu holandeses e inglêses na Amazônia, e subiu o Tapajós envolvido em comércio de escravos. A narrativa da viagem do seu antepassado que teria subido o rio Amazonas à procura de caminho ao Peru assemelha-se àquela da viagem de Pedro Teixeira e que levou à delimitação entre as esferas de posse de Portugal e Espanha.

O impedimento de emigrar e cosmopolitismo da formação em Mindelo

A história de vida de Júlio do Nascimento Teixeira é marcada por migrações insulares e emigrações. Ainda que não proveniente de meio necessitado, a procura de novas oportunidades levou à emigração de muitos membros de sua família à Argentina.

Pelo fato de ter sido acometido por paralisia infantil, levando a deficiência física que marcaria toda a sua vida, somente a sua mãe não pôde acompanhar os outros familiares à emigração, permanecendo no arquipélago.

É porém, justamente nas dificuldades e nos sofrimentos derivados dessa deficiência que Júlio Nascimento Teixeira vê retrospectivamente a causa de uma energia que desenvolveu para a superação de obstáculos e que faz com que a trajetória que percorreu surja, hoje, como surpreendente e razão de sentimentos gratificantes.

Não podendo procurar novos horizontes e caminhos no Novo Mundo, mas procurando possibilitar ao filho maiores oportunidades de vida e ascensão social, a sua mãe transferiu-se para a ilha de São Vicente, onde o seu filho fêz o curso primário e o Liceu. Em Mindelo, teve a oportunidade de crescer em ambiente cosmopolita, marcado por intensa vida musical e cultural.

Se trazia da lembrança e conhecia da tradição familiar as festas consuetudinárias da ilha de Santo Antão, em particular as de São João na Ribeira do Julião, Porto Novo, com o Tambor e a prática das umbigadas, procurada por moradores de outras ilhas, cresceu em Mindelo em ambiente impregnado de notícias do Exterior trazida por marinheiros, viajantes e emigrantes que vinham de visita, ávido de novos conhecimentos.

Foi na vida marcada pela musicalidade de Mindelo, e preparado por tradição familiar, que passou a participar em serenatas, em bares e em ocasiões festivas. Dotado de voz sonora, foi cantor procurado, atuando com vários músicos e poetas, salientando-se aqui o renomado poeta e autor de mornas Francisco Xavier da Cruz (Bê Léza). Dele, Júlio Nascimento Teixeira guarda na memória a sua personalidade amável e de espontânea creatividade poético-musical.

Devido à popularidade de mornas dedicadas a assuntos portugueses relacionados com as navegações, entre elas Barco Sagres e Bartolomeu Dias, era procurado por oficiais da Marinha mercante na sua casa. Entre os seus companheiros de serenatas cita Humberto Leite, filho de um dos mais renomados professores do Liceu, orador, e Adriano Ramos.

Essas recordações traz à consciência que a juventude de Júlio Nascimento Teixeira decorreu em época de fomento da lusitanidade dessa fase da política colonial do Estado Novo. Foram décadas marcadas por intuitos de intensificação da consciência da unidade portuguesa fundamentada na sua história dos Descobrimentos e, nos anos trinta, sobretudo pelas preocupações pela internacionalização da África portuguesa e da Segunda Guerra Mundial. Significativamente, positivas são as suas recordações de militares alemães que passaram pelo Cabo Verde.


Discípulo de Baltasar Lopes da Silva: interesse pelo Brasil e estudos em Portugal

Júlio Nascimento Teixeira salienta que o seu grande mentor foi Baltasar Lopes da Silva. Tendo sido o seu professor de Português e Francês, foi para êles antes um exemplo de abertura de pensamento, de sêde de conhecimentos e procura de erudição, assim como de interesse por autores brasileiros e suas aproximações teórico-culturais. Foi, para êle, sobretudo um exemplo humano no seu comportamento pessoal, na sua atitude perante os alunos e nos seus procedimentos. Sabia despertar o desejo por conhecimentos sem pedantismo, mantendo sempre uma atmosfera descontraída, quase que lúdica nas aulas, sem perder, por isso, a sua autoridade. Julinho, como era também por êle chamado, guardou na memória a sensação de ter sido o seu aluno predileto, tornando-se posteriormente seu amigo.

Nos anos 60, terminadas as possibilidades de estudos em Cabo Verde e seguindo o exemplo de Baltasar Lopes da Silva, Júlio Nascimento Teixeira transferiu-se a Lisboa. Em Portugal, preparou-se para ser professor primário. Tinha a intenção de realizar estudos superiores, procurando ingressar na Universidade de Coimbra. Apoiado por conterrâneos já integrados e por amigos portugueses, fixou residência em Leiria, cidade que tinha sido marcada pela presença de Baltasar Lopes da Silva. Com as suas aptidões musicais, integrou-se na sociedade e conquistou amigos que o apoiaram ao retornar ao Cabo Verde.

Preparação de alunos para a admissão ao Liceu em Assomada

A próxima fase na vida de Júlio Nascimento Teixeira foi marcada, em Praia, pela sua nomeação a professor. Nessa sua atuação, constatou o grave problema então representado pela excessiva concentração de possibilidades de estudos no Liceu da capital.

Os alunos do interior da ilha, que desejassem ingressar no Liceu, precisavam prestar exames de admissão, o que exigia presença na capital, incorrendo em gastos que nem sempre as famílias podiam arcar. Tratava-se, assim, de uma questão fundamental para o desenvolvimento do ensino escolar secundário no país e também um problema social.

Para solucioná-lo, Júlio Nascimento Teixeira tomou uma decisão que, segundo êle, foi pioneira: instituiu um curso preparatório para alunos do ensino oficial na Cidade de Assomada, principal cidade de Santa Catarina e terceira em população do arquipélago. Nessas aulas, passou a preparar os alunos das comunidades Santa Catarina, Santa Cruz e Tarrafal em todas as matérias para a realização dos exames de admissão no Liceu da Praia. Exerceu essa atividade durante dez anos.


Com essa atividade de implantação do ensino preparatório nessa cidade, centro procurado pela população do interior pelo seu grande mercado, Júlio Nascimento Teixeira contribuiu a que jovens de esferas populacionais menos privilegiadas tivessem acesso à educação secundária. Teria sido, de acordo com as suas informações, preparador de um desenvolvimento que levou a que Assomada também se tornasse um centro de ensino de importância, hoje conhecida pelo seu Liceu de Amílcar Cabral.

Ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo

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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "O estudo de processos formativos e do desenvolvimento escolar como pressuposto para cooperações na área da Educação. Contribuições da história oral: Júlio Nascimento Teixeira, discípulo de Baltasar Lopes da Silva (1907-1989)". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 142/3 (2013:2). http://revista.brasil-europa.eu/142/Ensino-Cabo-Verde-Brasil.html