Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Fotos A.A.Bispo.
©Arquivo A.B.E

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 142/10 (2013:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Dr. H. Hülskath (Dir. Adm.) e Conselho Científico

Organização de estudos de processos culturais em relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa  -
e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2981




A igreja de Nossa Senhora da Luz como núcleo religioso da povoação do Porto Grande
e a tradição de Luz de Tavira/Algarves

História urbana do Porto Grande de São Vicente
nas suas inserções em contextos político-culturais globais
e em suas relações com o Brasil I

Em sequência a encontro na Embaixada da República de Cabo Verde em Berlim
Na passagem dos 25 anos do primeiro da série de eventos euro-brasileiros do I.S.M.P.S. e da A.B.E. pelos 500 anos de Descobrimentos portugueses

 
As reações críticas que despertaram recentes reformas na igreja de Nossa Senhora da Luz em Mindelo manifestaram a consciência existente entre arquitetos, historiadores e entre os habitantes da cidade do significado da igreja como um dos principais monumentos do seu patrimônio.

Situada ao lado do edifício governamental, no centro da cidade, na "pracinha da Igreja", surge visualmente como um símbolo do poder espiritual ao lado do civil e da religião como fundamento da formação cultural caboverdiana.

Ainda que a atual construção desperte de início discreto interesse pela sua arquitetura marcada por expressões aparentemente convencionais da segunda metade do século XIX, quando então foi reformada (1862), a igreja de Nossa Senhora da Luz remonta à capela que, como expressão do culto mariano, marcou a fundação da povoação que foi conhecida pelo seu nome em 1795.

Ao contemplar a igreja, o observador conscientiza-se que um estudo de processos culturais de Mindelo - considerada a capital cultural do arquipélago - não pode
partir exclusivamente de desenvolvimentos posteriores do porto como local de abastecimento de navios à época da navegação a vapor e a consequente predominância britânica.

O significado das transformações sociais e culturais então ocorridas e a dinâmica portuária marcada pela presença de marinheiros de muitas nações e comerciantes dirige a atenção a contextos não-religiosos, mundanos, a bares e a uma vida social marcada por liberdade de costumes e que se manifestava, entre outros aspectos, na prática da prostituição. A visão de acontecimentos assim determinada representa uma delimitação de perspectivas e de possibilidades de análises.

As festas religiosas que continuaram a ser praticadas pelos trabalhadores do porto e das usinas e os seus elos com a vida festivo-religiosa de outras ilhas, não podem ser estudadas adequadamente sem a consideração de seus fundamentos religioso-culturais. A força desses elos tradicionais com a vida marcada por expressões tradicionais de outras ilhas demonstra-se no fato de para elas se dirigirem os ilhéus migrantes e seus descendentes que as procuravam em dias de festa.

Essa redução de enfoques prejudica, assim, estudos culturais voltados justamente a esferas de trabalhadores das próprias ilhas, a mobilidades e migrações internas, a expressões populares de formação colonial de séculos e mesmo de considerações mais aprofundadas de transformações culturais vivenciadas por aqueles que, marcados por tradições e formação cultural e familiar, inseriram-se em processos secularizadores e de cosmopolizadores.

Como a vida portuária da era da navegação a vapor do século XIX, também a anterior da urbe referenciava-se pelo Porto Grande, pelas águas da granda baia que marca
a paisagem e determinaram a história do local.

Desenvolvimentos secularizadores de complexos culturais de fundamentação religiosa relacionam-se com mudanças na imagem de porto e de águas no edifício de concepções de remotas proveniências e que perderam gradualmente os seus sentidos figurados e dimensões transcendentes.

Na visão do mundo marcada pela sensibilidade a sentidos velados na leitura de textos bíblicos e na percepção do mundo perceptível pelos sentidos, as águas do oceano possuiam um sentido metafórico relacionado com o mar da vida, com o mundo existencial repleto de perigos para o homem na sua viagem.

Essa percepção do mundo natural já não era aquela dos marujos ingleses, dos viajantes e comerciantes de viagens transatlânticas em navios a vapor, com a sua maior segurança, sem depender tanto de ventos, sem mastros com velas com todas as suas conotações simbólicas do antigo edifício de imagens de antiga proveniência.

A tradição do culto a Nossa Senhora da Luz em Cabo Verde

A devoção a Nossa Senhora da Luz manifestada na dedicação da igreja foi secularmente intensa em localidades de mar, de praias e portos.

Significativamente, o primeiro documento de relevância músico-cultural referente ao Cabo Verde diz respeito significativamente a essa festa, sugerindo ser esta já antiga, uma vez que possuia características locais nas suas expressões. Ela deve remontar, assim, aos primeiros
anos da chegada dos europeus, à fase inicial de Ribeira Grande na ilha de Santiago.

Quando a expedição que levava Paulo Dias de Novais à Angola deixou o porto da ilha de Santiago , no dia 8 de janeiro de 1560, os viajantes reuniram-se no convés e fizeram uma procissão com velas pelo navio cantando "al tono y modo“ da terra.)

A menção do documento da viagem menciona explicitamente que, após a estadia no Cabo Verde, aqueles que partiram para Angola realizaram a procissão do dia dois de fevereiro com música e ao modo da terra merece ser considerada com particular atenção. A procissão realizada correspondia à tradição da festa do dia 2 de fevereiro, possuia porém já características próprias da localidade.

Elos com o Algarve - o culto a Nossa Senhora da Luz em Tavira

O culto a Nossa Senhora da Luz no Cabo Verde sugere a existência de elos com o Algarve. Tavira é um dos centros da devoção (Luz de Tavira). Sendo a região atravessada por diversos rios, entre êles o Gilão (também Ribeira da Asseca ou Séqua), a Ribeira do Almargem e o rio Vascão, explica-se a força do culto mariano da localidade. Essa devoção experimentou justamente à época dos Descobrimentos uma especial intensificação, o que explicaria a sua irradiação às regiões então alcançadas pelos portugueses. Com a elevação de Luz de Tavira a sede de freguesia, construiu-se ali a igreja que hoje representa monumento histórico-cultural. O fato de ter sido esse templo possibilitado por donativos de fiéis da localidade indica a força da devoção popular.

Do culto a Nossa Senhora da Luz em Porto Grande

A fundação da aldeia com essa designação na área onde se encontra a igreja remonta do capitão-mor João Carlos da Fonseca Rosado, proveniente de Tavira, quando, em 1795, trouxe casais de colonos e escravos da ilha de Fogo e que foram ali assentados.

A instituição do culto a Nossa Senhora da Luz não poderia ser compreendida sem uma tradição mariana secular na própria cultura dos habitantes. Como o capitão-mor denominou a povoação criada segundo o seu benfeitor real - D. Rodrigo de Souza Coutinho (1755-1812) -  (Veja http://revista.brasil-europa.eu/142/Mindelo-Povoamento.html), parece ter havido uma confluência de tradições relacionadas com o culto no Porto Grande. Poder-se-ia supor que a devoção já estivesse enraizada tanto na cultura dos habitantes da ilha do Fogo para ali trazidos, como na tradição cultural do próprio capitão-mor de Tavira como na de anteriores colonos vindos de outras ilhas atlânticas.

Uma tentativa de povoamento sistemático da ilha de São Vicente, ordenado em 1781, ocorreu à época de D. Maria I (1734-1816), uma rainha que entrou na história pela sua religiosidade extremada ("a Piedosa"), clericalismo e empenho anti-iluminista manifestado na demissão de Sebastião José de Carvalho e Mello, Marquês de Pombal (1699-1782), cujas medidas de coibição da excessiva influência da Igreja em assuntos do Estado em parte desativou.

Considerando essa atmosfera de reconscientização de fundamentos religiosos da ação política do período é compreensível que se tenha pensado primeiramente num povoamento da ilha de São Vicente com colonos da Madeira e dos Açores, uma vez que se criaria no Atlântico Sul mais um centro populacional marcado por profundo Catolicismo.

Essa iniciativa levaria também a uma renovação de cunho restaurador do Catolicismo no arquipélago, uma vez que a vida religiosa das ilhas, nas suas expressões e festividades derivadas de processos históricos de sua formação étnica, social e de procedimentos missionários do passado teria assumido características sentidas como exteriorizantes, heterodoxas e necessitadas de uma reforma que possibilitasse correção de abusos e maior disciplina moral. Essas razões religioso-culturais surgem como mais plausíveis do que aquela de um simples intento de se criar um Cabo Verde menos africanizado a norte.

A devoção e as expressões festivas relacionadas com Nossa Senhora da Luz eram acentuadas tanto na Madeira como nos Açores. Na Madeira, o culto assumiu tal significado que Nossa Senhora da Luz passou a ser considerada como padroeira dos estudos na segunda metade do século XVIII, ou seja, à época do projeto de povoamento da ilha de São Vicente. A tradição de ser a festa sobretudo celebrada por estudantes durou até meados do século XIX. (Pe. Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Meneses, Elucidário Madeirense II, Funchal: Secretaria Regional de Turismo e Cultura/DRAC 1984, 457)

Do sentido das concepções e expressões, em particular da procissão de luzes

O sentido do culto a Nossa Senhora da Luz e suas expressões deve ser considerado a partir de seus fundamentos teológicos e histórico-simbólicos transmitidos pela tradição.

Segundo esta, a procissão de luzes remontaria à iniciativa de uma mulher, Hikelia, fundadora de um convento no caminho de Belém, que teria distribuido aos membros da congregação velas para que, indo de encontro a Maria que se dirigira ao Templo para a Purificação, saudavam Cristo que entrava em Jerusalem pela primeira vez.

A tradição que menciona o ato de Hikelia permite que se compreenda o papel fundamental desempenhado por mulheres na organização do grupo de fiéis, na procissão, nas ofertas e nos atos festivos de alegria relacionados com a purificação.

Assim como Maria levava dádivas para o sacrifício purificador, explica-se que as tradições da festa incluiam e incluem o ato de levar e oferecer valores, moedas, jóias e flores às praias, uma prática até hoje registrada em muitas regiões colonizadas das Américas.

Idas festivas de fiéis com dádivas - sobretudo mulheres - às praias e que recapitulam aquelas entregues por Maria caracterizam festas desse dia em muitas regiões litorâneas do mundo marcado pelos portugueses. A elevação das águas e a luz são representadas em imagens diversas, em trajes, nas cores e na profusão de velas e luminárias. A simbologia da luz pode explicar também a predominância da côr branca em trajes. 

Práticas da Idade Média européia relacionadas com a linguagem simbólica podem explicar também a participação sobretudo popular nessas festas, em particular de escravos e trabalhadores. A festa, na Europa, marcava o fim do ano serviçal, quando o salário ou recompensa do ano eram entregues; entre o dia 2 e o dia 5 de fevereiro, que marcava o início do novo ano das atividades de campo, o trabalhor gozava de um interregno livre, o que explica também o caráter festivo dessa época do ano. A tradição em presentear-se sapatos com o sentido de procura propícia de novas ocupações pode talvez explicar um sentido do uso de trazer sapatos à mão por homens do campo do passado em idas à igreja e em dias de festa.

Aproximações aos estudos culturais de cariz demopsicológico e da mulher

Um estudo mais aprofundado do ato da Purificação no Velho Testamento e suas resignificações no Cristianismo pode abrir caminhos para análises e reflexões relacionadas com concepções e imagens da mulher, com as de alma e suas implicações coletivas.

Segundo a linguagem das imagens, a purificação de Maria equivale a um elevar-se das profundezas do mar e da qual teria sido o modêlo de exemplaridade.

Essa imagem, de remotas origens, equivale, na tradição da Antiguidade, a uma transfiguração, à perda de uma forma aquática da mulher que se eleva das águas. A imagem relaciona-se assim com concepções da sereia tão enraizadas na tradição cultural portuguesa e de uma dinâmica transformatória que equivale a uma purificação. A antiga imagem da sereia pode ser interpretada, entre outras possibilidades, como representação de um estado figurativamente de submersão, da tristeza, melancolia e da sensação de exclusão do ser imbuído de um profundo anelo de ascensão. Nessa situação, exerce um fascínio sôbre os homens pelo seu canto que fascina pela sua expressão de tristeza e, ao mesmo tempo, sensualidade.

Ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "A igreja de Nossa Senhora da Luz como núcleo religioso da povoação do Porto Grande
e a tradição de Luz de Tavira/Algarves". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 142/10 (2013:2). http://revista.brasil-europa.eu/142/Mindelo-Igreja-Nossa-Senhora-da-Luz.html