Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Fotos A.A.Bispo.
©Arquivo A.B.E






 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 142/14 (2013:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Dr. H. Hülskath (Dir. Adm.) e Conselho Científico

Organização de estudos de processos culturais em relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa  -
e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2985




A Torre de Belém de Lisboa e de Mindelo
Emblema da consciência de "Portugal inteiro" em Cabo Verde colonial
transformações atuais de sentidos e paralelos com a morna

História urbana do Porto Grande de São Vicente
nas suas inserções em contextos político-culturais globais
e em suas relações com o Brasil IV


Em sequência a encontro na Embaixada da República de Cabo Verde em Berlim
Na passagem dos 25 anos do primeiro da série de eventos euro-brasileiros do I.S.M.P.S. e da A.B.E. pelos 500 anos de Descobrimentos portugueses

 
Em estudos de Arquitetura e Urbanismo de orientação cultural (http://www.arquitetura.brasil-europa.eu/ ), a percepção e a análise de vínculos estilísticos e de concepções de projetos e obras em diferentes regiões, países e continentes desempenham papel relevante.


Na realidade construída e no espaço urbano configurado pode-se constatar evidências de elos nas suas inserções históricas, aproximações a correntes de pensamento e de expressão em diferentes contextos e relações de sintonia com situações e desenvolvimentos de natureza política ou político-religiosa em dimensões globais.


A leitura do edificado vai além da constatação de elementos comuns e similaridades exteriores, exigindo a consideração de sentidos através da análise de imagens, entre outras da função que exercem como sinais, signos, símbolos ou emblemas nos diversos contextos.


Como considerado em estudos desenvolvidos em diferentes países, a reprodução mais ou menos fiel de modêlos foi de particular significado em situações coloniais e missionárias ou de política eclesiástica. Igrejas européias serviram de exemplos para edificações em colonias ou de círculos coloniais em regiões extra-
européias, salientando-se aqui aquelas do século XIX e início do XX. (Veja e.o. http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Medievalismo-no-Pacifico.html ;http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Catedral-de-Saigon.html;http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Trabalho-correcional-no-Colonialismo.html; http://www.revista.brasil-europa.eu/126/Anglicanismo.html)


Dois momentos poderiam ser aqui salientados, o do anelo historicista de reatamento com situações de passado mais remoto em pretendida revitalização cultural a partir de fundamentos e aquele de fortalecimento de Unidade em situações de diversidade.


Como exemplo particularmente expressivo desse sentido da reprodução arquitetônica em relações transatlânticas pode-se citar a catedral de Montreal, a represenciação da Basílica de São Pedro de Roma no Canadá francês como manifesto da união com a Santa Sé, da Unidade do Catolicismo para além de fronteiras nacionais no sentido das convicções ultramontanas. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/128/Ultramontanismo-e-arquitetura.html)


A Torre de Belém de Mindelo e atualidade de sua consideração


Outro exemplo particularmente expressivo que demonstra que a constatação de similaridades, mesmo de imitações ou réplicas na arquitetura em diferentes contextos exige aproximações mais sensíveis na leitura de seus sentidos é o da Torre de Belém de Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde.


Reproduzindo na praia do Porto Grande junto ao mar e ao lado do mercado de peixe a Torre de Belém no Tejo, ainda que em dimensões menores e formas estilizadas, marca de forma significativa a fisionomia da frente marítima de Mindelo.


Diferentemente do original, a torre foi construída em alvenaria, com tijolos e argamassa de pedra e cal. Quadrada na sua base, com três andares e cobertura em forma de mirante em patamar ao alto, com torres de vigia aos cantos e ameias, apresenta janelas, portas e outros elementos inspirados na Torre de Belém no Tejo. A Torre
de Mindelo apresenta símbólica dos Descobrimentos de conotações ou implicações religiosas que marcaram a época manuelina.


Comparando as dimensões e os elementos das Torres de Belém no Tejo e no Porto Grande pode-se constatar o grau de estilização que caracteriza a construção do Mindelo. O observador ganha a impressão que não o original, mas sim talvez uma ilustração em revista de divulgação popular tenha servido de modêlo para o edifício.


Sentida hoje como insólita, descrita como ingênua réplica do original de Lisboa, percebida talvez até mesmo como Kitsch ou comparada com construções apresentadas como típicas em exposições mundiais, em parques de fantasia e de encenações teatrais ou de cenários de indústria cinematográfica, a Torre de Mindelo necessita ser considerada a partir de uma perspectiva adequada que permita o reconhecimento de seu valor como monumento histórico, qualificação que vem recebendo em iniciativas de cooperação internacional recentes.


Se pelas suas dimensões relativamente às construções circundantes, pela sua posição e pela sua retórica expressiva a Torre de Belém de Mindelo possui características que a poderiam tornar emblemáticas, estas tornaram-se anacrônicas com o término do período colonial, e apenas há poucos anos, passadas décadas da Independência, pôde passar a ser valorizada como edifício histórico, restaurado com o apoio da antiga metrópole. 


As bases oficiais para os trabalhos de restauro da construção, que se encontrava em estado degradado, foram lançadas em acordo bi-nacional assinado em 1997
como protocolo adicional ao Acordo Cultural na Área do Patrimônio Arquitetônico e Recuperação do Patrimônio Histórico e que tem atuado em Mindelo desde o início do século atual.


Os trabalhos de recuperação foram possibilitados com recursos do Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento (IPAD) e efetuados em duas fases. Numa primeira etapa, recuperou-se a torre, que corria o risco de ruir. A segunda fase, iniciada após vários anos, foi dedicada à zona envolvente, entre êles aos muros exteriores e edifícios anexos, do pátio interno e às instalações elétricas, para além de outros trabalhos.


A reinauguração da prédio deu-se em 2010 pelo Presidente português Aníbal Cavaco Silva no âmbito do programa de comemorações dos 35 anos da independência de Cabo Verde.


Dessa forma, em complexo jôgo de sentidos, um monumento que como poucos representou o desejo de acentuação da unidade portuguesa da época colonial foi reinaugurado em novo brilho em data comemorativa da emancipação política da ex-colonia.


Exposição Espaços urbanos de Cabo Verde - O tempo das cidades porto


A questão do uso do edifício a ser recuperado acompanhou necessariamente os intentos e os trabalhos de restauração. Pode-se compreender que, menos sob a perspectiva dos cooperadores portugueses, a construção ofereça-se como espaço adequado para abrigar um museu histórico ou até mesmo tornar-se um núcleo de estudos histórico-culturais no centro de Mindelo. Por outro lado, a linguagem visual do edifício, com a sua simbólica colonial, permite que se compreenda possíveis reticências quanto a esse uso.


Atualmente, os espaços da Torre são utilizados para uma exposição de cartazes editados pela Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.


O seu tema, Espaços Urbanos de Cabo Verde- O tempo das cidades porto faz com que a própria Torre seja percebida como elemento em processo histórico mais amplo, aquele do desenvolvimento urbano de Mindelo. Com base em documentos e fotografias, os textos denotam uma orientação cultural na consideração da história urbana, considerando com particular atenção questões de vivência popular em contexto portuário-comercial marcado por diversidade étnica e cultural.


Entre os temas tratados, salientam-se: As tentativas de povoamento e colonização; A invenção do Mindelo, cidade-porto; O Estado e a cidade-porto; A configuração urbanística; A vivência popular mindelense; A cidade: lugar de diversidade étnica e comércio; A praia: entre o interior agrário e as linhas de comércio marítimo.


Tratando da "invenção do Mindelo, cidade-porto", a exposição parte da recomposição do espaço atlântico na primeira metade do século XIX, quando teria surgido "um novo Atlântico" que passa a integrar a ilha de S. Vicente nas correntes de tráfego. Na segunda década desse século ter-se-ia redesenhado a configuração política e econômica sul-atlântica com a independência das mais prósperas colonias latino-americanas, a Argentina e o Brasil, agora atraídos para a esfera comercial inglesa. A exposição salienta, assim, que foi nesse contexto de aumento das relações comerciais anglo-brasileiras e anglo-argentinas que se intensificou o tráfego transoceânico.


Os processos culturais desencadeados em São Vicente podem ser apreciados sob duas principais perspectivas. O observador pode dar maior atenção às transformações culturais dirigidas à crescente presença e influencia estrangeira, à internacionalização, ou à permanência de elos com a cultura tradicional de formação colonial portuguesa, manifestada na continuidade de práticas e expressões tradicionais pelos trabalhadores vindos de outras ilhas. Estes elos mantinham-se tão fortes - e talvez ainda mais fortalecidos na situação de migração - que trabalhadores de Mindelo retornavam às ilhas natais por ocasião de grandes festas do ciclo religioso, sobretudo São João e Santa Cruz.


O que necessitaria ser considerado com maior atenção é o campo de tensões similares que teria marcado uma comunidade local em ascensão social e ávida de ampliação de conhecimentos e de instrução. Esse desenvolvimento em esferas mais privilegiadas da população parece ter vindo de encontro a uma tendência á erudição de remotos fundamentos coloniais no Cabo Verde e que teria sido acentuada com o ensino escolar na época do florescimento de Mindelo na segunda metade do século XIX.


Tendência à erudição, desenvolvimento do ensino e lusitanidade


Para além de todo o interesse no aprendizado de línguas estrangeiras e na assimilação de conhecimentos, modos de vida e expressão do Exterior, a tendência à erudição acentuou a consciência de lusitanidade. Principal exemplo dessa afirmação de identidade cultural deu-se por ocasião do Tricentenário de Camões, em 1880, e a glorificação do grande vulto da literatura portuguesa levou a que a própria escola local recebesse o seu nome.


A construção da Torre para a Capitania do Porto Grande do Mindelo caiu em anos em que se rememoravam os 500 anos da Torre de Belém em Lisboa, mandada construir por D. Manuel I (1469-1521) em 1515 e terminada em 1521.


Remontante pelo que tudo indica a planos forjados em anos que se sucederam à Primeira Guerra, a Torre, construida em 1929 e terminada em 1937, insere-se em época marcada pela vitória dos aliados na história do Atlântico e das navegações, de fase conturbada da história política de Portugal e da instauração do Estado Novo.


Pode ser considerada, assim, numa primeira aproximação como um marco de afirmação portuguesa de seu império colonial em campo de tensões de interesses internacionais e da sua recepção nas colonias. Nesse sentido, é um monumento a ser considerado em contextos globais sob diferentes aspectos, entre êles sobretudo o da questão colonial na própria Europa de entre-Guerras. Ela deve ser lida, porém, de forma mais profunda e diferenciada a partir de processos culturais locais, de auto-consciência e identidade, de concepções de lusitanidade acima de delimitações geográficas e fundamentadas na história.



Signos da lusitanidade e morna. Dimensões musicais da Torre de Belém de Mindelo


No seu fundamental estudo como prefácio à reedição da revista Claridade, Manuel Ferreira designa como "mito lusitano" de uma "superpátria imperial" a exaltação patriótica a Portugal que se constata na obra de intelectuais caboverdianos do passado como José Lopes e Pedro Cardoso.


O autor lembra de uma poesia deste último que exorta os poetas, que andariam buscando em crônicas estrangeiras temas e inspiração, a estudar a história gloriosa de Portugal. ("O fulgor e a esperança de uma nova idade", Claridade, Linda-a-Velha, 1986, Colecção para a História das Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, pág. XXXIX). Para Manuel Ferreira, lendo Pedro Cardoso, "fica-se com a percepção de que nele havia, com efeito, a necessidade de continuamente assumir a ufania de uma descendência lusitana, reencontrando na sua (dela) história os mais variados motivos semânticos, desde os dados concretos da sua história até aos símbolos, até aos emblemas e, nesses, o maior de todos - a Bandeira." (XL)


Considerando, porém, que, ao lado da Bandeira e a pátria lusitana, Pedro Cardoso exaltou também a morna, chegando a estabelecer elos entre ela e a saudade com as quinas da bandeira e as chagas de Jesus, indica um jogo de dois signos de diversa origem cultural:


"um caboverdiano - a morna; outro lusitano - a saudade, uma sendo a expressão do homem crioulo, outra a expressão do homem português, ambas nasceram sob igual modelo: talvez o da nostalgia, o da solidão, da inquieta solitude, e tendo origem semelhante, ambas terminaram também por encarnar a 'Pátria inteira!', e qui entende-se, julgamos, a pátria adicionada, feita de dois povos de dois territórios: Portugal+ Cabo Verde.
A pátria é assim um todo que de dispersivo se congrega no como que signo único e símbolo díspar. Os dois povos e as duas culturas ficam irmanados no mesmo destino universal"
(op.cit. XLI)

A Morna mais a Saudade, -
Quinas da mesma Bandeira,
Nasceram sob igual signo
Encarnam a Pátria inteira!
(loc.cit.)


Morna, saudade e lusitanidade na 1a. Exposição Colonial do Porto em 1934


Os estreitos elos entre sentimentos de lusitanidade, seus signos históricos e a morna foram novamente salientados por ocasião da Primeira Exposição Colonial Portuguesa, em 1934, pelo escritor caboverdiano Fausto Duarte no "Dia de Cabo Verde", comemorado a 13 de Setembro daquele ano ("Da Literatura Colonial e da 'morna' de Cabo Verde", Separata).


"A 'morna' - quási gémea do fado decadente - é a ingénua expressão musical dêste Arquipélago. (...).

O clima, a paisagem agreste, a sinfonia dolente das ondas nas praias douradas, as manhãs luminosas e as noites cá´lidades criaram o tipo crioulo que é a fusão de duas correntes immigratórias: o branco e o negro; o marinheiro das caravelas de Sonho e as indígenas de seis nus onde se polariza a volupia.
Ambos deiram as pátrias para criar uma pátria nova nas ilhas de basaldo negro, de penedias monstruosas, montes escalvados e terras afogueadas do Sol.
Daí a eterna saudade que baila nos olhos cheios de emoção e ansiedade, imaginação e nostalgia;
Daí a origem da 'morna', canção regional que traduz em cada quadra um estado de alma.
E desta saudade feita de fulgores, nascida da incerteza, formou-se o tipo crioulo identificado com a dor lapidescente nas planuras sertanejas. Seus versos revelam o pesar do marinheiro que partira das praias de Portugal em demanda de caminhos ignorados, o comêço de outra aventura sempre mais além, o sonho do pequeno reino que desejava dilatar-se em grande Império; seus versos rescendendo a maresia, colheram a difusão da luz, a claridade dos espaços onde as aves mensageiras das ilhas misteriosas se libravam preguiçosamente..."
(pág. 11-12)


Problemas de interpretação e atualidade da discussão


Procurando explicar uma "espécie de cissiparidade pátrida" de autores caboverdianos, Manuel Ferreira conclui que a pátria portuguesa seria aquela "que veio da escola, dos livros, dos Aparelhos Ideológicos do Estado. Aquela que ao longo de cinco séculos de colonialismo fora sistematicamente instilada, e particularmente pressionada, massificada depois da instauração do fascimo em Portugal. A pátria caboverdiana aquela que naturalmente estava dentro de cada um dos habitantes. (....) A pátria caboverdiana o espaço de nascimento, de cultura, o espaço das origens e do processo sociocultural responsável pela autêntica formação nacional" (op.cit. XLIII)


Essa interpretação, porém, ainda que plausível, sugere a projeção de concepções do presente no passado. Uma consideração adequada dos processos históricos de formação de identidade necessitaria analisar as concepções a partir de seus próprios pressupostos e das transformações a que estiveram e estão sujeitas identificações.


A atualidade da discussão resulta do fato de que a morna continua a surgir como emblema musical do Cabo Verde independente. A reflexão sôbre as suas interpretações do passado colonial torna-se assim pré-condição para procedimentos analíticos apropriados e justos tanto relativos à sua história como ao presente.


Ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "A Torre de Belém de Lisboa e de Mindelo. Emblema da consciência de "Portugal inteiro" em Cabo Verde colonial. Transformações atuais de sentidos e paralelos com a morna". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 142/14 (2013:2). http://revista.brasil-europa.eu/142/Mindelo-Torre-de-Belem.html