Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Fotos A.A.Bispo.
©Arquivo A.B.E







 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 142/15 (2013:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Dr. H. Hülskath (Dir. Adm.) e Conselho Científico

Organização de estudos de processos culturais em relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa  -
e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2987



Cesária Évora (1941-2011) e o periódo "pós-Cesária"
Projeção mundial da morna e a atualização musical caboverdiana na era da globalização
De elos com a tradição da classe laborial no
Club Náutico
e o progressismo do
Festival da Baía das Gatas



Em sequência a encontro na Embaixada da República de Cabo Verde em Berlim
Na passagem dos 25 anos do primeiro da série de eventos euro-brasileiros do I.S.M.P.S. e da A.B.E. pelos 500 anos de Descobrimentos portugueses

 

Mindelo, na ilha de São Vicente, é uma das cidades do mundo insular atlântico que maior atenção desperta em considerações e estudos voltados à cultura. Por vezes até mesmo designada como capital cultural do Cabo Verde, foi "Capital Lusófona da Cultura" em 2003, abrigando um programa diversificado que contou com uma edição especial do Mindelact-Festival Internacional de Teatro do Mindelo a participação de escritores e músicos de vários países, entre êles do Moçambique e de Angola, salientando-se a cantora portuguesa Dulce Pontes. Também o carnaval de Salvador esteve presente.

Paralelamente, o projeto incluiu um seminário internacional para discussão de questões relativas à recuperação do patrimônio cultural caboverdiano. Especial menção cabe a um espetáculo de rua projetado por António Tavares, bailarino, e Vasco Martins, músico. ("A genialidade de um progressista", Nós Genti 2 Cabo Verde, Praia 2012, 51 ss.). Espécie de cantata cênica, o espetáculo Crioulo, em língua da cidade da Praia, ilha de Santiago, e de São Vicente, guiou-se pelo intuito programático de oferecer um panorama da formação histórico-cultural do Cabo Verde e mostrar a necessidade sentida no presente de produzir novos desenvolvimentos pela própria energia dos caboverdianos.

A projeção internacional de Mindelo para além dos países de língua portuguesa é devida sobretudo à atuação de músicos e cantores. É, assim, principalmente sob a perspectiva da música que as atenções voltam-se a Mindelo em seminários realizados em universidades centro-européias.

Esse foi o caso do colóquio de título Worldmusic? levado a efeito na Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität de Bonn e que se articulou com os colóquios e seminarios dedicados aos Cultural Studies e aos Gender Studies.

Na Universidade de Colonia, aspectos dos estudos de processos culturais que enfocam o Cabo Verde foram considerados sobretudo nos seminários Música na África Lusófona e Imigração e Estética, também este desenvolvidos com base nos trabalhos do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (I.S.M.P.S.). Sessões especiais foram dedicadas ao fenômeno singular que representa a extraordinária popularidade mundial alcançada pela música caboverdiana.

Cesária Évora (1941-2011) sob a perspectiva do Cultural e do Gender Studies na Alemanha

Nesses eventos universitários europeus relacionados com o Cabo Verde, as atenções voltaram-se frequentemente a Cesária Évora, a personalidade que encarna por excelência um fenômeno que não é apenas de interesse para os estudos da música popular, em particular da África lusófona, mas como também e sobretudo para os Cultural Studies e Gender Studies, em particular com os Estudos da Mulher.

"(...) o expoente máximo, jamais alcançado por qualquer outro interprete. A voz de Cesária tornou a música de Cabo Verde numa referência mundial, fruto da harmonia melódica que transporta e do sentimento que transmite." ("Cesária Évora, A Rainha da Morna", Nós Genti 2 Cabo Verde, Praia 2012, 21 ss.)

Apenas uma orientação teórico-cultural da pesquisa musicológica e uma atenção especial à música na pesquisa cultural - como vêm sendo propugnadas no âmbito dos estudos euro-brasileiros podem fazer jus às múltiplas dimensões do fenômeno da "rainha da morna" e "diva dos pés descalços".

Em primeiro lugar, considerou-se que uma aproximação ao fenômeno Cesária Évora não pode ser tentada sem a consideração de seus pressupostos culturais, do contexto especial representado por Mindelo a cidade portuária cosmopolita da Ilha de São Vicente.

As próprias referências à prática do violino, cavaquinho e violão do seu pai Justino da Cruz possibilitam ser consideradas sob diversos aspectos, tanto relativamente à tradição instrumental nas ilhas como às suas inserções em desenvolvimentos da prática de cordas dedilhadas conhecidos de outros contextos, não só atlânticos. A vida de seu pai - e a sua primeira infância - decorreram em anos marcados pela atividade de renomados compositores de mornas, sobretudo B. Leza. Também o fato do seu irmão ser saxofonista, acompanhando-a em apresentações públicas, traz à consciência a inserção da vida musical local em desenvolvimentos internacionais.

Nessas tentativas de compreensão da sua formação, evitando-se projeções anacrônicas de concepções e posicionamentos político-culturais do presente ao passado, deve-se dirigir a atenção à situação cultural da época colonial, quando sentimentos de amor à terra nem sempre se opunham, mas relacionavam-se com aqueles de uma pátria acima de fronteiras, da "pátria inteira". Morna e saudades eram decantadas juntamente com signos do passado lusitano, como presentes visualmente na Torre de Belém de Mindelo. (Veja http://revista.brasil-europa.eu/142/Mindelo-Torre-de-Belem.html)

Significativamente, também na vida de Cesária Évora apontam-se elos estreitos com o ambiente circunvizinho ao quartel português, o bairro do Lombo, época de sua atuação com Gregório Gonçalves, entre outros. Já conhecida como cantora de bares e hotéis, atuou como artista para companhia de pesca de participação lusa.

Justamente o período após 1975, ano da independência do país, é aquele que surge como marcado por múltiplas dificuldades para a artista, econômicas e pessoais, deixando de cantar. Nessas condições, motivada por cantor residente em Portugal, ali atuou. A sua fase de sucesso decorreu sobretudo em Paris, centro de considerável comunidade de emigrantes caboverdianos, conhecida pelas suas atividades de valorização da cultura caboverdiana  e publicações.

Já  em 1983 manifestava Luiz Silva na introdução à reedição do Folclore Caboverdiano de Pedro Monteiro Cardoso a preocupação da Solidariedade Caboverdiana de Paris com a formação da juventude emigrante, principalmente daqueles que nasceram no exterior, que sofriam a influência da mídia. (Paris: Solidariedade Caboverdiana, 1983, VII-VIII).

Cinco anos depois, em 1988, ano em que o ISMPS realizava trabalhos pelo "Ano Bartolomeu Dias", Cesária Évora gravou o álbum La diva aux pieds nus. No ano que antecedeu ao Congresso Internacional de Musicologia do Rio de Janeiro de 1992, levado a efeito em cooperação com o ISMPS, registrou-se o lançamento do álbum Mar Azul (1991), seguido por Miss Perfumado. Nos anos seguinte, marcados pela fundação do centro do ISMPS no Brasil, a atenção foi dirigida à sua gravação Sodade (1994). Em 1997 e 1998, ano em que o ISMPS realizava trabalhos no âmbito do "Ano Vasco da Gama", foi considerado o álbum Cabo Verde, e tomou-se conhecimento que a cantora recebera o Kora All African Music Awards.

Na Alemanha, a recepção de sua obra foi marcada por prêmios da Crítica Alemã de Gravações em 1998 e 1999, salientando-se o álbum então lançado Café Atlântico (1999). À época da realização do seminário de título World Music? na Universidade de Bonn, Cesária Évora lançava os recebia o prêmio Grammy de melhor gravação de World Music com o seu álbum Voz d'Amor.

Esse seminário salientou a necessidade de reflexões quanto a procedimentos teóricos adequados no tratamento do Cabo Verde sob o aspecto dos estudos culturais conduzidos musicologicamente e, ao mesmo tempo, por uma musicologia de orientação cultural.

Lembrou-se, que, diferenciando-se de iniciativas e instituições voltadas ao fomento da lusofonia posteriormente estabelecidas, o ISMPS vem pioneiramente defendendo um direcionamento da atenção da pesquisa a processos culturais, não a esferas culturais ou a países ou contextos determinados pelo idioma.

Essa orientação mostra-se necessária de forma particularmente evidente no caso do Cabo Verde, ilhas que representaram sob múltiplos aspectos focos e agentes mediadores de processos culturais no espaço do Atlântico.

A existência de grandes comunidades de caboverdianos em países europeus e na América do Norte, inseridos em complexos processos de transformação cultural, de integração nos respectivos contextos e, ao mesmo tempo, de impulsos de afirmação diferenciadora acentuam a necessidade de um direcionamento teórico voltado à análise de processos. É essa orientação que possibilita também o tratamento adequado de emigrações, imigrações e retornos temporários ou não de caboverdianos e que tanto marcam as ilhas.

Uma sensível diferenciação deve ser feita quanto ao escopo do ISMPS e que vale em particular para os estudos do Cabo Verde: é o estudo músico-cultural no seu todo e nas suas configurações particulares que é objetivo de uma pesquisa versada em português, não o estudo de uma cultura musical por assim dizer essencialisticamente compreendida como lusófona nas diversas nações.

Somente esse direcionamento das atenções a processos poderá considerar adequadamente sobretudo o papel de Mindelo no contexto de uma história músico-cultural compreendida nas suas dimensões globais. Tendo-se desenvolvido em época relativamente tardia no contexto da expansão britânica nos mares e do desenvolvimento técnico da navegação a vapor como posto de abastecimento de carvão entre os continentes, essa sua posição na intersecção de esferas culturais não pode ser subestimada. Reduções na avaliação do papel caboverdiano no mundo e mesmo incorreções no tratamento de expressões culturais caboverdianas seriam o resultado.

Vozes de músicos no "Club Náutico": Biduca, Francisco, Rui, Minduca, Nin, João


No mundo insular atlântico, Mindelo salienta-se neste sentido pelo fato de ter-se desenvolvido no século XIX como porto de abastecimento de navios que ligavam as nações européias com as várias regiões do mundo, tornando-se um local marcado pela presença de estrangeiros, de funcionários de empresas ali atuantes, marinheiros e viajantes de diferentes nacionalidades, o que explica as características peculiares da vida social e cultural do ambiente portuário que ali se criou.

Sobretudo sob a perspectiva dos Cultural Studies de origem britânica, que focalizam privilegiadamente processos e expressões em esferas sociais menos favorecidas ou subalternas, de operários e trabalhadores, de meios laborais marcados pela industrialização, diferenciando-se de aproximações de disciplinas culturais como a Etnografia e o Folclore, Mindelo adquire particular relevância em contextos internacionais.


Nas trocas de idéias com os músicos, os múltiplos problemas existenciais do trabalhador caboverdiano foram tematizados e possibilitaram reconhecer e perceber empaticamente os profundos elos dos sentimentos cantados com a situação humana e social da cidade marcada pela vida portuária.

Mencionados foram, por exemplo por Francisco, cantor, os problemas da mulher - levadas a ter logo filhos pela sociedade e pela Igreja - abandonadas por maridos que emigram e forçadas a ganhar a vida, assim como a situação dos homens, que pela insegurança e instabilidade evitam elos definitivos.

A música surge não apenas como expressão das difíceis condições de vida, mas como necessidade existencial, motivo de auto-consciência e orgulho de famílias. Assim, Francisco, que já com mais de 40 anos ainda vive na casa paterna, com uma filha no Senegal, não se cansa de salientar a importância da música na sua família, enaltecendo a arte do seu pai, Cirilo, hoje com 74 anos.

Doenças que não podem ser curadas por falta de recursos e impedem o trabalho poderiam explicar por vezes uma extraordinária dedicação ao canto. No caso de Rui, personalidade que impressiona pela sua extraordinária musicalidade e sensibilidade de pensamentos e expressões, poder-se-ia esperar sucessos no Exterior, caso tivesse para isso oportunidade.

Tratando-se de uma necessidade existencial, apenas a experiência da admiração que as suas expressões musicais causam aos europeus é que leva cantores e instrumentistas a pensar em gravações, para as quais, porém, também faltam recursos. Essa situação foi salientada por Minduca, excelente executante de cavaquinho, que espera poder realizar em breve uma primeira gravação dos músicos que participam espontâneamente dos encontros no Club Náutico.



Elos com a esfera anglo-saxônica e músicos progressistas: Festival da Baía das Gatas

Um dos aspectos discutidos em seminários dedicados a relações entre a música e processos político-culturais na América Latina e em países lusófonos de outros continentes diz respeito a situações paradoxais com as quais o pesquisador se confronta em diferentes contextos.

No caso do Cabo Verde, surge como paradoxo ou aparente paradoxo o fato da morna (e da coladeira), que representou a cultura caboverdiana já na Primeira Exposição Colonial Portuguesa no Porto ,em 1934, e que foi decantada como expressão relacionada com a lusitanidade no passado, ter continuado a marcar a imagem do Cabo Verde no período que se seguiu à independência.

Procurou-se, correspondentemente, emprestar atenção a músicos que representaram tendências alternativas, entre êles o mencionado Vasco Martins e Valdemiro Ferreira (Vlú). Constatou-se, aqui, diferentemente do caso da morna, a vigência de impulsos de correntes e expressões da esfera cultural anglo-saxõnica.

Em publicação recente, Valdemiro Ferreira ("Festival da Baía: espelho de união e liberdade", Nós Genti 2, Abril de 1912, 90 ss.), descreve a situação em que se encontraram os músicos que se consideram não como tradicionalistas, mas sim como "pessoas do mundo e com influência desse próprio mundo" e que sentiram a necessidade de criar um palco próprio por não serem considerados pela política cultural oficial.

Em 1984, durante uma apresentação na Galeria Nho Djunga, esses jovens decidiram mostrar aos políticos as novas tendências da música mundial, escolhendo para isso um bar na Baía das Gatas, onde pessoas próximas ao poder se reuniam. Dessa iniciativa surgiu a idéia da organização de um festival, no qual todos os músicos pudessem apresentar-se, independentemente de estilos, de religião ou de tendências políticas, mostrando que a música de Cabo Verde não era só a morna e a coladeira.


O panorama que o autor traça dirige a atenção a um singular relacionamento do processo secularizador com a mudança política. Até 1975, as festas de maior expressividade em Cabo Verde eram aquelas religiosas, as de Romaria. Devido à orientação política do Govêrno, e devido aos estreitos elos do antigo regime com a Igreja, essas festas religiosas teriam passado a ser reprovadas e substituidas por festas políticas, não havendo liberdade; jovens que orientavam-se segundo tendências musicais internacionais teriam sido vistos como alienados politicamente.

Com o surgimento do Festival da Baía ter-se-ia iniciado uma nova fase, já que era um evento não político e aberto a todas as religiões. Muitos dos que haviam emigrado ali encontraram um motivo de retorno ao país para os dias do festival. O festival teria tido, assim, um sentido unificador. Adquiriu também uma projeção internacional através da participação de músicos de Cuba, Angola, de São Tomé e de Portugal.


Entretanto, segundo o seu depoimento, esse objetivo primeiro do festival perdeu-se em grande parte o seu significado cultural, ainda que constitua um evento de importância econômica, uma vez que é o maior evendo de Cabo Verde para além do Carnaval.

Segundo as suas palavras, os músicos progressistas de Cabo Verde reconhecem e valorizam a morna e, em particular, Cesária Évora. Após a sua morte, porém, seria "utópico pensar-se que continuarão a preservar a morna como a música tradicional de antigamente". Tendo nascido e recebido formação em outros contextos, também a música é a de todo o mundo globalizado. Para que a morna não caia no total esquecimento, sugere que seja criado o "Dia da Morna" e que o gênero passe a ser considerado como "património imaterial de Cabo Verde." (pág. 94) (a respeito: "Festival da Baía das Gatas: A grande aventura musical de São Vicente", op.cit. 88 ss.)

Ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Cesária Évora (1941-2011) e o periódo "pós-Cesária". Projeção mundial da morna e a atualização musical caboverdiana na era da globalização. De elos com a tradição da classe laborial no Club Náutico e o progressismo do Festival da Baía das Gatas". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 142/15 (2013:2). http://revista.brasil-europa.eu/142/Musica-Cabo-Verde.html