Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 142/18 (2013:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Dr. H. Hülskath (Dir. Adm.) e Conselho Científico

Organização de estudos de processos culturais em relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa  -
e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501



Doc. N° 2990


Publicações em revista

Manuel de Jesus Tavares. Aspectos Evolutivos da Música Cabo-Verdiana
Praia: Centro Cultural Português/Instituto Camões/Associação de Escritores Cabo-Verdianos, s/d (2006),180 págs, ilustr., transcrições

 
A publicação foi agraciada com o Prêmio Sena Barcelos 2005. Esse Prêmio foi instituido através de Protocolo assinado naquele ano pelo Centro Cultural Português/Instituto Camões e a Associação de Escritores Cabo Verdianos. A iniciativa tem como objetivos não apenas promover o emprêgo do português como idioma de pesquisa e a reflexão sôbre temas referentes à comunidade dos países de lingua portuguesa como - e esse fato deve ser salientado no presente caso - o de incentivar novos escritores cabo-verdianos.

O livro é dividido em seis capítulos: "Introdução", "A descoberta e o povoamento das ilhas", "O aspecto cultural na vertente musical", "Os principais géneros musicais", "Considerações finais", "Composições elucidativas". Seguem-se bibliografia e três anexos: "Algumas personagens/grupos musicais", uma lista de instrumentistas (de violão, violino, gaita, cimboa) e de grupos musicais cabo-verdianos.

Nas suas palavras de agradecimento, o autor cita, entre outros, Casimiro Moreno Tavares, maestro da Banda Militar da Praia, regente de orquestra militar pelo Conservatório de Moscou, que tomou a si a realização das transcrições musicais que, de fato, valorizam fundamentalmente a publicação, tornando-a indispensável para os estudos musicais referentes ao Cabo Verde.

O autor, nascido na Ilha do Maio, obteve a sua formação primária em Pedra Badejo, concelho de Santa Cruz, e a secundária na Cidade da Praia. Realizou os seus estudos superiores na FLIP, onde licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas. Também frequentou Curso de Administraçao e Curso de Formadores em Administração Pública Local para os PALOP. Como diplomata, atuou como técnico superior da Direção-Geral da Administração local e na Direção-Geral da Cooperação Internacional, e, entre outros cargos, foi Chefe de Divisão dos Recursos Humanos da Presidência do Conselho de Ministros, diretor do Palácio do Governo, diretor de Gabinete do Presidente da Câmara Municipal de Santa Cruz e diretor de Protocolo do Primeiro Ministro.

Como músico, o autor toca violão, violino, cavaquinho e piano, tendo-se voltado também para questões musicais e publicado artigos em jornais, também sob o pseudônimo D. Tavares-Djudju Tavares. A sua publicação demonstra o seu excepcional interesse pela música e pela vida musical atual, assim como alto grau de informação a respeito de músicos e grupos musicais do Arquipélago e mesmo de caboverdianos no Exterior.

O autor, porém, não tem formação especificamente musicológica e científico-cultural e, apesar dos esforços que se manifestam na sua bibliografia, não teve acesso à literatura específica mais recente nas diferentes áreas disciplinares que aborda. Como se evidencia nas idéias e posições que apresenta, não está informado da situação dos debates que vêm sendo desenvolvidos nas últimas décadas nos meios especializados tanto na Musicologia de orientação histórica - e na Etnomusicologia - como nos Estudos Culturais e de Metodologia da História.

Os problemas da publicação residem, assim, na sua fundamentação teórica geral e se manifestam não apenas na imprecisão terminológica, por exemplo no emprego de conceitos como gênero e estilo, mas sim também de forma mais abrangente nas próprias concepções de natureza evolutiva, conhecidas de um passado já remoto da história do pensamento voltado à música e de autores hoje apenas considerados como de interesse histórico. Essa insuficiência teórica de base e de visões evolutivas tem consequências abrangentes, prejudicando o tratamento adequado dos dados e suas interpretações.

O autor manifesta-se consciente das delimitações do trabalho, iniciando até mesmo a sua introdução afirmando que o livro não representa qualquer novidade, apenas acrescentando algo mais ao que já foi dito. Essa afirmação é por demais modesta, pois a publicação oferece grande número de dados coligidos, transcrições e textos que a tornam significativa para o prosseguimento dos estudos.

O ponto de partida das reflexões é inquestionável nas suas linhas gerais, pois o autor salienta que a música não se limita ao "ato de tocar, cantar e dançar", e o seu estudo significa "proceder a uma incursão no universo do povo e nele procurar encontrar a idiossincrasia da sua cultura que, no fundo, nada mais são do que características da sua própria identidade". Também inquestionável é o reconhecimento de que a música cabo-verdiana passou por transformações no decorrer dos tempos que influiram na sua estrutura e prática de execução. Os problemas teóricos iniciam-se quando essas transformações passam a ser consideradas a partir de perspectivas evolutivas à medida em que o autor afirma que os "numerosos estilos" tiveram diferentes destinos, uns conseguiram "alcançar aperfeiçoamento, outros ficaram pela estagnação e regressão e alguns seguiram mesmo o caminho do completo desaparecimento." Assim, o propósito do trabalho, delineado como o do estudo do percurso seguido rumo a um desenvolvimento e amadurecimento, desde "a busca genética dos ritmos que actualmente dão forma à organização musical de Cabo Verde", surge como expressão de uma visão de desenvolvimentos direcionados a partir de uma idéia valorativa de estágio alcançado no presente, o que se evidencia no uso de termos como aperfeiçoamento e amadurecimento.

Essa concepção reflete uma recepção de determinadas obras da história de uma literatura de divulgação musical, como pode ser registrada no ítem "O aspecto cultural na vertente musical" e que segue a um breve panorama da descoberta e povoamento das ilhas. Lembrando da complexidade do termo "música", as explanações baseiam-se em tradução em português de obra de cunho popular de Friedrich Herzfeld (1897-1967). Com base nessas posições hoje insustentáveis nos estudos musicológicos, sobretudo naqueles de orientação teórico-cultural, o "percurso seguido pela música ao longo dos séculos conheceu sempre uma perspectiva evolutiva", sendo o maior progresso alcançado entre o princípio do século XIX e a primeira década do XX, marcado pelas duas mais profundas revoluções da História da Música, a beethoviana e a schonberguiana (págs. 15-16).

As explanações do autor evidenciam os problemas derivados de visões histórico-culturais eurocêntricas de uma literatura de divulgação de conhecimentos do passado associadas a convicções e que partem de uma situação presente assumida como expressão de identidade cultural.

Assim, o autor considera que, embora o delineamento de uma "verdadeira música cabo-verdiana" tenha ocorrido na época mencionada do progresso da linguagem musical no século XIX e início do XX, a consideração de sua evolução deveria ter o cuidado de primeiramente considerar a formação de uma cultura musical e só depois o seu percurso rumo a seu desenvolvimento e evolução. (pág. 16)

Nessa visão, compreende-se que o autor, embora reconhecendo que a cultura africana tenha resistido sob muitos aspectos um processo de aculturação, saliente "a comparticipação de aspectos das correntes da civilização musical européia".  Ainda que tivessem sido os portugueses o povo que maior contribuição prestou à formação da cultura do cabo-verdiano, Portugal teria sido, êle próprio, sujeito ao predomínio da música da Europa Meridional, o que, de resto, também teria agido na formação da música brasileira. "À excepção do batimento dos pés, quase todos os utensílios que serviam e ainda servem de suporte à música cabo-verdiana vieram do exterior". (pág. 16)

Sob "Elementos marcantes na evolução da música cabo-verdiana", o autor trata segundo critérios heterogêneos de um "período eugeniano", de um "período beleziano", de um "período da mundialização da música de Cabo Verde" - considerando aqui os instrumentos elétricos na música cabo-verdiana e o período pré-independência de Cabo Verde -, assim como "a nova geração e o regresso às origens" e "a moderna música cabo-verdiana".

No capítulo IV, dedicado aos principais gêneros musicais, trata de onze ítens: Finaçon, Batuco, Reza, Tabanca, Choro, Lundum, Mazurca e Contradança, Morna, Funaná, Coladera e Taláia-Báxu. Já essa listagem de termos manifesta as dificuldades de harmonização de categorias sistemáticas derivadas da terminologia de estudos empíricos - em particular do Folclore -, com os esforços de consideração de desenvolvimentos históricos. As tentativas de diferenciação do autor, porém, partem da observação de que a música, que em princípio seria destinada a ser cantada, tocada e dançada, conheceria também expressões limitadas à dança, como o shottish (chótisse) (no Fogo "tambor"), braga maria, codrá, choro e kanizade na Ilha do Fogo, kolá em S. Vicente e São Nicolau. Entre as expressões recebidas do estrangeiro, o autor menciona a valsa, a polca, o bolero e as cantigas de roda. Para êle, a marcha, o samba e a mazurca seriam casos especiais, pois estariam assimiladas, incorporadas na cultura cabo-verdiana, fazendo parte do repertório da maioria dos músicos cabo-verdianos. A manilha, que o autor diz ser semelhante à morna, não teria conseguido sobreviver, e o mesmo teria ocorrido com a taca, um rítmo que o autor diz ser ao estilo do fandango, que teria sido importado do Brasil.

Nas suas considerações finais, manifestando mais uma vez a consciência em reconhecer as delimitações do seu trabalho, o autor salienta que a maioria das questões relativas à música cabo-verdiana não puderam ser abordadas. Reconhece que, embora a sua pesquisa tenha procurado considerar temas controversos,  muitos ficaram sem ser convenientemente esclarecidos. Uma das razões dos problemas das análises até agora realizadas residiria na forma pouco sistemática do universo musical caboverdiano. Um exemplo seria o de questionar se a coladera é um gênero musical ou se constitui um sub-gênero da morna, pergunta que também vale ao finaçon relativamente ao batuco. Outra situação controversa seria, segundo o autor, a da interligação entre estilos que apresentam afinidades entre si.

Por fim, salienta que o trabalho visa suscitar o espírito crítico que abrirá caminhos a refutações e novos argumentos. Nesse sentido, o autor lembra frase de Karl Popper, de que "a ciência se constrói pela via de refutação e não pela confirmação". O que deveria ser salientado, porém, é que essa expressão, dizendo respeito à ciência, não pode ser aplicada a esta publicação.

A relevância do livro reside no capítulo dedicado a "composições elucidativas". Oferece-se aqui grande número de exemplos musicais com as respectivas letras, comentadas e com transcrições musicais.

Como mencionado, também os anexos justificam o significado da obra, em especial o primeiro, que oferece uma lista de personagens da música de Cabo Verde. Considerados são aqui Eugénio da Paula Tavares, Francisco Xavier da Cruz (B. Léza), Maria Inácia Gomes Correia (Nácia Gómi), António da Silva Ramos (Antone Tchitche), Joaquim do Carmo Silva (Djack do Carmo), Gregório Vaz (Codé di Dona), Gregório José Gonçalves (Goy), Fernando Aguiar Quejas (Fernando Quejas), Abílio Augusto Monteiro Duarte (Abílio Duarte), Teodolindo Ledo Pontes (Minó di Mamá), Manuel de Jesus Lopes (Manel d'Novas), Epifânea de Freitas Silva Ramos Évora (Tututa), Francisco Nunes de Pina (Frank Mimita), Manuel da Paixão dos Santos Faustino (Manuel Faustino), Renato de Silos Cardoso, Carlos Alberto Silva Martins (Catchás), Paulino de Jesus dos Santos Vieira (Paulinho Vieira), Norberto dos Santos Tavares (Norberto Tavares), Emmanuel Lima (Manú Lima), Ramiro da Rosa Mendes, José Bernardo Dias Fernandes (Zezé di Nha Reinalda), Carlos Alberto Lopes Barbosa (Cacá Barbosa), Orlando Monteiro Barreto (Orlando Pantera), Cape Verdean Ultramarine Band, Voz de Cabo Verde, Os Tubarões, Kolá II, Ferro Gaita e Cordas do Sol.

A.A. Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
"Manuel de Jesus Tavares. Aspectos Evolutivos da Música-Cabo-Verdiana" (Resenha). Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 142/19 (2013:2). http://revista.brasil-europa.eu/142/Musica-Caboverdiana-Aspectos-Evolutivos.html