Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Fotos A.A.Bispo.
©Arquivo A.B.E













 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 142/8 (2013:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Dr. H. Hülskath (Dir. Adm.) e Conselho Científico

Organização de estudos de processos culturais em relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa  -
e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2979



O insucesso da ação dos Jesuítas em Cabo Verde e na Guiné
nos seus pressupostos e suas consequências culturais
em relações com a atividade da Companhia no Brasil

Em sequência a encontro na Embaixada da República de Cabo Verde em Berlim
Na passagem dos 25 anos do primeiro da série de eventos euro-brasileiros do I.S.M.P.S. e da A.B.E. pelos 500 anos de Descobrimentos portugueses

 
Perante os restos de muros de pedras que ainda hoje servem como testemunho da presença de missionários da Companhia de Jesus em Ribeira Grande na ilha de Santiago, aquele que se dedica a estudos de relações entre Cabo Verde e Brasil conscientiza-se de uma fundamental diferença na história cultural de ambos os países: a intensidade e o sucesso das missões dos Jesuítas no Brasil e o fraqueza e o insucesso de suas tentativas em Cabo Verde.
Esse contraste não pode ser considerado como irrelevante, pois não diz respeito apenas ao fracasso de uma entre as muitas ordens religiosas que se dedicaram à missão. As características peculiares da Companhia de Jesus, os seus procedimentos que em muitas regiões do mundo marcaram decisivamente processos culturais, o papel que
desempenhou no ensino e na difusão de conhecimentos através de suas escolas e seus colégios, indicam que esse insucesso na missão de Cabo Verde merece ser considerado com particular atenção na análise de traços diferenciadores da formação cultural do Brasil e do Cabo Verde.

Esse contraste na história da Companhia nessas duas esferas de suas atividades  traz também consequências para os próprios estudos histórico-culturais: faz falta no caso de Cabo Verde a  documentação criada pela correspondência dos Jesuítas em dimensões comparáveis àquela do Brasil e de outras partes do mundo e que representa importante fonte de informações para estudos de fatos, desenvolvimentos, procedimentos e expressões culturais.

Na insuficiência dessas referências documentais reside uma das razões das dificuldades para o desenvolvimento adequadamente fundamentado de estudos de processos culturais do passado do Cabo Verde, do ensino, da formação intelectual e mesmo de expressões culturais. As fontes poderiam oferecer indícios hoje quanto a diferenças culturais, uma vez que justificariam a menor intensidade de expressões tradicionais denotativas daação dos Jesuítas nessa esfera da África Equatorial e, por consequência dos pressupostos culturais dos africanos que, como escravos, foram trazidos ao Brasil.
Considerando-se essa situação documental, que dificulta estudos de processos culturais em contextos globais, mais precisamente entre a África e o Brasil, levanta-se a questão das razões pelas quais os Jesuítas
tiveram tão pouco sucesso em Cabo Verde em comparação com aquele alcançado no Brasil.

Essa representou uma das principais questões etudadas no âmbito dos trabalhos do "Ano Bartolomeu Dias" 1987/1988 desenvolvidos pelo ISMPS em arquivos e bibliotecas romanas para a abertura da série de eventos euro-brasileiros dedicados a 500 anos de fatos históricos relacionados com a História dos Descobrimentos realizados nas décadas que se seguiram.

As reflexões basearam-se sobretudo na obra já clássica sôbre a História da Sociedade de Jesus do Pe. Francisco Rodrigues S.J. ("Na Missão de Cabo Verde", História da Companhia de Jesus na Assistência de
Portugal III, A Província Portuguesa no Século XVII 1615-1700 II: Lutas na Metrópole - Apostolado nas Conquistas, Porto: Apostolado da Imprensa, 1944, 194 ss).

Razões climáticas e de insalubridade no insucesso de empresa

O autor inicia a sua explanação com palavras que preparam a descrição das dificuldades e do insucesso da Companhia de Jesus em Cabo Verde.

"Na inóspita e doentia região, insular e continental, de Cabo-Verde deram os missionários da Companhia, durante quási quarenta anos, prova de seu zêlo, sofrimento e paciência. Foi talvez esta missão africana a mais custosa de tôdas as que se confiaram à Província ignaciana de Portugal,
e sem dúvida a menos frutífera e gloriosa." (pág. 194)

Êle próprio Jesuíta, o Pe. Francisco Rodrigues procura salientar que a missão, iniciada em 1604, contara de princípio com muitos e excelentes religiosos, prometendo levar a resultados grandiosos. A maior parte desses missionários foi, porém, vítima da malignidade do clima, e os restantes caíram em desânimo, perderam motivação e forças, caindo a missão em decadência.

Somente dois sacerdotes ficaram vivos e esse número não pôde ser aumentado por muitos anos. Em 1618 viviam apenas três Jesuítas em Cabo Verde, número que permanecia inalterado em 1625. Três anos depois foram enviados de Portugal mais três religiosos, mas já em 1635 o Superior, Pe. António Dias, que para lá havia ido ainda jovem, em 1608,  noticiava que desde 1632 ali viviam apenas três padres. A presença de um número um pouco maior de missionários foi apenas temporária, entre ca. de 1629 e 1632. A Companhia abandonou a missão em 1642.

A razão do reduzido envio de missionários para o Cabo Verde residia segundo o autor nas dificuldades que a Província de Portugal da Companhia encontrava para administrar e prover com pessoal as vastas regiões de suas atividades no mundo, devendo escolher aquelas mais promissoras. Conhecia-se em Portugal as dificuldades maiores da missão da África equatorial, sobretudo pelas doenças que ali grassavam e, assim, não teria havido entusiasmo entre os religiosos para atuar em Cabo Verde, região que até mesmo abominavam.

Razões materiais: pobreza local e falta de pagamento de religiosos

O maior obstáculo, porém, era financeiro, o da pobreza de recursos locais e da falta de pagamento regular, o que parece demonstrar um menor interesse pelas ilhas.

Não se pode esquecer que a presença dos Jesuítas em Cabo Verde caiu em época da União Pessoal entre Portugal e Espanha, o que permitiria compreender uma falta de empenho de instâncias espanholas por um arquipélago tão marcado pela ação e administração de portugueses.

Essa situação ibérica, nas suas inserções políticas européias, levou também a que os inimigos da Espanha passassem a atacar também as possessões de Portugal, obrigando uma concentração de forças antes na defesa e na reconstrução do destruído.

A missão da Companhia decorreu assim em época particularmente difícil de decadência, de interrupção de um desenvolvimento histórico de passado já relativamente remoto e que se esperava ser promissor.

Nesse problema material residiria a principal explicação para o não aumento do número de missionários. As autoridades não pagavam de forma regular o que havia sido contratado para a manutenção dos religiosos e da missão e estes não podiam exercer a contento atividades que dessem lucro.

Nesse sentido, autoridades da Companhia chegavam a escrever cartas singularmente auto-conscientes ao rei com explícitas ameaças de suspender a atuação da Companhia em Cabo Verde caso a situação financeira não fosse solucionada.

De início, as pensões aos missionários havia sido paga, tendo sido os pagamentos recusados primeiramente pelo governador Francisco Martins de Cerqueira à época da sua administração (1611-1614), atitude prosseguida por Francisco de Moura, governador de 1618 a 1622 (op.cit. 208).

A falta de pagamentos explica-se não apenas pela inimizade para com os Jesuítas, mas também pelas condições econômicas críticas de Cabo Verde à época.

Problemas da imagem dos Jesuítas: direcionamento aos pobres e aumento de poderio

Nessa situação de penúria, os missionários viam-se levados a viver da venda de frutas que plantavam na sua quinta e de outras propriedades que adquiriram ou receberam de herança.

Na pobreza generalizada, em sociedade marcada por grande desnível e em época de instabilidade pode-se compreender que mesmo uma vida sentida como extremamente modesta por parte dos religiosos europeus era vista como luxuosa por parte dos habitantes e criticável pela sua discordância com os seus intentos de assistir sobretudo aos mais necessitados.

As referências coligidas pelo Pe. Francisco Rodrigues, segundo as quais não praticavam a caridade e nem visitavam doentes e presos, sugerem uma situação marcada por inveja e suposições de uma atitude hipócrita dos padres da Companhia.

Repercussões da desconfiança no ensino - dificuldades na construção do Colégio

Uma das principais expressões das dificuldades encontradas pelos Jesuítas em Cabo Verde disse respeito à construção do Casa Professa, do Colégio e de outra casa em Cacheu.

As autoridades governamentais estipulavam condições para a fundação da Residência principal da Companhia na Ilha de Santiago que eram sentidas como indignas pela Companhia. O Govêrno mantinha sobretudo a sua exigência de que os Jesuítas não podiam adquirir propriedades, o que não era aceito pelos religiosos. Essa exigência resultava possivelmente da desconfiança que os Jesuítas procuravam o aumento de poder e influência através do enriquecimento apesar de toda uma retórica dirigida aos menos favorecidos, aos marginalizados da sociedade. Esta era a denúncia constantemente feita pelos caboverdianos, até mesmo em cartas às autoridades da Metrópole, o que o Pe. Francisco Rodrigues S.J. procura mostrar como infundada.

A fundação da Casa ou Colégio de Santiago de Cabo Verde, da qual restam ruínas, foi também principal motivo de conflitos e discussões entre a Companhia e as autoridades reais. O plano de criação em Ribeira Grande da casa central para as missões do arquipélago e da Guiné não teve sucesso. Após demorados trâmites que não levaram a fatos, retomaram-se os esforços ao redor de 1620. Pensava-se também em estabelecer uma residência em Cacheu, dividindo-se o número de missionários.

Em 1626, mantinham-se porém as divergências entre a Administração real e a Companhia - marcadas sobretudo pela exigência de que os Jesuítas não deviam adquirir bens de raíz e por uma desconfiança que fazia com que se pedisse prestação de contas - , culminando com a ameaça de autoridades governamentais de colocar a tarefa de conversão de africanos a outras ordens. A mesma tensão mantinha-se ao redor de 1629.

Em 1639, o Vice-Provincial António Mascarenhas, intimado a dar as razões pela qual a Companhia não enviava religiosos às ilhas, respondeu que os pagamentos atrasados impedia a ida de missionários, pois não tinham como se sustentar; caso contrário, o rei poderia entregar a missão a outros religiosos. (pág. 206)

Deve-se considerar, na interpretação dessa situação, a discordância do Pe. Francisco Rodrigues relativamente às explanações de António Joaquim Dias sobre "As Missões católicas na evolução político-social da Guiné Portuguesa" (Biblos XIX, Revista da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 167-228, op.cit. 207-208, notas).

O autor discorda que tivesse havido um plano da Companhia oposto ao do rei Filipe sôbre o estabelecimento de missionárias nas ilhas e na terra firme; o rei queria colégio na ilha com ação missionária na Guiné, os Jesuítas preferiam libertar-se do colégio e estabelecer-se exclusivamente no continente.

Para o autor, os missionários em Portugal teriam aceitado o que se propunha a respeito da fundação na ilha, as más condições da terra e a experiência lhes havia ensinado, porém, que seria mais aconselhável um estabelecimento em terra firme. Uma preferência pela fixação de residência na Guiné e não na ilha de Santiago não teria vindo da Congregação de S. Roque, mas seria proveniente da experiência dos religiosos em Cabo Verde. (loc.cit.208)

Consequências da situação no Cabo Verde para a Guiné e suas consequências

Devido à falta de recursos e, consequentemente de religiosos, as ações missionárias não tinham continuidade na Guiné, o que parece ter representado o principal anelo para os Jesuítas. Não se prosseguia, assim, o trabalho de um Baltasar Barreira e do seu sucessor Manuel Alvares, falecido este em 1617. Os padres da Companhia concentraram, assim, a sua ação na ilha de Santiago.

Numa orientação que partia, nos seus fundamentos, de um ideal dirigido ao esplendor do culto divino, à forma, e à eficâcia real do sacral para a ordem da sociedade, a ação dos Jesuítas voltadas antes ao ensino da doutrina aos meninos dos africanos e seus descendentes, marcadas antes por modéstia de atitudes e não por expressões de representação e consciência da dignidade de ministérios sagrados parecia ineficaz.

Compreende-se, assim, que caboverdeanos reclamassem dos padres da Companhia, dando preferência àqueles de outras ordens. Essa situação, mencionada pelo Pe. Francisco Rodrigues S.J., parece poder ser explicada por motivos culturais, por uma compreensão da vida religiosa e do sentido do culto que era distinta sob muitos aspectos daquela dos Jesuítas.

As consequências dessa situação não podem ser suficientemente avaliadas, inclusive para o Brasil. Ela faz supor que os africanos que provinham da Guiné e que eram enviados ao Brasil não tinham recebido formação suficiente segundo os procedimentos dos Jesuítas, não tinham sido ensinados na doutrina, encontravam-se assim insuficientemente indoutrinados, não sabiam provavelmente de cór orações que os religiosos faziam em geral constantemente repetir, ainda que em língua desconhecida.

Integração de africanos em cultura religiosa de expressões tradicionais européias

O contato dos africanos com a população cristã em Cabo Verde levava a uma integração por assim dizer espontânea em cultura religiosa de outras características, transmitidas pela tradição e remontantes aos primórdios da cristianização do arquipélago, a época totalmente diversa quanto às suas inserções no contexto global da história da Igreja. Tem-se notícia, assim, que em 1596 o chefe dos Caió, com ca. de 300 do seu povo vieram às ilhas para receber o batismo. Ali receberam, das autoridades, um manto da Ordem de Cristo, assim como coroas de prata. Os neófitos tomaram parte na procissão de Corpus Christi configurada como aquelas de Portugal, ou seja, aberta com a grande imagem de São Jorge e com muitos grupos de danças e folias, com Pellas e Serpe, com música de trombetas e charamelas. (A.A.Bispo, Grundlagen christlicher Musikkultur in der außereuropäischen Welt der Neuzeit: Der Raum des früheren portugiesischen Patronatsrechts II, Musices Aptatio 1987(88, Roma 1989, 751)

Compreende-se, assim, que a maior manifestação de simpatia pelos Jesuítas em Ribeira Grande de Santiago tenha-se dado justamente em duas situações de festa, a das solenidades para Inácio de Loyola (1491-1556), em 1613, quando a véspera e a missa do dia de festa foram celebradas com "a melhor música" da terra, e aquelas pela beatificação de São Francisco Xavier (1506-1552). (op. cit.742)

Como em outras partes do mundo, o conhecimento do respectivo Breve pontifício, em 1619, deu origens a grandes solenidades, e os caboverdianos tiveram então a possibilidade de excepcionalmente realizar manifestações de regozijo e celebrar atos de culto de maior esplendor. As autoridades governamentais e eclesiásticas, assim como todo o Cabido e a população concorreram à casa dos religiosos. Houve repiques de sinos e, na missa solene, leu-se o Breve pontifício, seguido de uma salva de artilharia e à sua resposta pelos Forte e por todos os muitos navios do porto.

A situação em Ribeira Grande de Santiago segundo as fontes estudadas pelo Pe. Francisco Rodrigues teria sido, assim, não apenas caracterizada por graves tensões na sociedade e ressentimentos contra os Jesuítas, mas sim também por discrepâncias e defasagens no encontro de culturas religiosas.

Insucesso devido à falta de formação intelectual - religiosos iletrados

Também o intento de influenciar a sociedade a partir da formação de novos quadros dirigentes a partir do ensino no sentido da Companhia nas suas escolas e colégios não pôde ser realizado a contento.

Para isso, os padres pareciam por demais iletrados aos críticos caboverdianos, o que, por outro lado, sugere um grau já elevado de formação intelectual e mesmo erudição por parte de personalidades locais, o que se explicaria como resultado de processos desencadeados em fase mais antiga da vida religiosa local, marcados por outras concepções e critérios, remontantes aos primórdios da Cristianização.

Em 1626, os próprios vereadores da Câmara escreveram ao rei afirmando que os Jesuítas não apenas não se ocupavam com pobres e doentes, nem visitavam pobres no hospital ou presos na cadeia, mas que também não eram letrados. Não pregavam, não confessavam e nem realizavam as tarefas a êles confiadas pelo rei.

Como também referido pelo Pe. Francisco Rodrigues, um dos principais críticos da falta de formação intelectual dos Jesuítas foi Francisco da Cunha Cerqueira. Os religiosos, procurados apenas por pessoas da mais baixa categoria social, não tinham, segundo êle, nenhuma utilidade, solicitando as autoridades que enviassem padres letrados que pregassem e mais entendessem de assuntos relacionados com as almas. Interessavam-se segundo o denunciador apenas na compra de terrenos e casas; já possuiam todo o bairro de S. Pedro, hortas e fazendas, e logo toda a ilha seria deles possuída. Negociavam com produtos de Portugal de contrabando e o seu interesse na Guiné eram apenas para participar nos seus negócios. (op. cit. 213)

Explicação do insucesso pelos Jesuítas: moral sexual de caboverdianos

Um dos documentos mais expressivos dessa situação comentados pelo autor é aquele do Pe. Sebastião Gomes que, após mais de mais de vinte anos em Cabo Verde, chegava à conclusão que naquela terra a Companhia apenas se desacreditava. Via as razões dessa falta de condições  numa natureza má dos habitantes e que, com um clima que dificultava a vida virtuosa, levava a uma situação na qual justamente as pessoas menos disciplinadas na moral e na condução da vida seriam as mais estimadas.

Segundo o Jesuíta, as críticas e denúncias vinham sobretudo de pessoas que levavam modos de vida pecaminosos e que não queriam ser apontadas e admoestadas pelos padres nas suas pregações e ações de rua. Muitos não frequentavam a igreja, indo às missas apenas quando o Governador estava presente.

Após a partida dos missionários, houve pedidos ingentes de Ribeira Grande para a retomada da missão e mesmo empenho do rei D. João IV (1603-1656). A Companhia, porém, manteve-se inamovível com base na experiência passada.

Atividades doutrinárias e de admoestação do Pe. A. Vieira em viagem ao Brasil

Nessa situação deu-se a estadia em Cabo Verde do Pe. António Vieira (1608-1697) e seus três acompanhantes. Achando-se em viagem ao Maranhão, a sua nave foi obrigada por tempestade e corsários a aportar em Ribeira Grande, em 31 de Dezembro de 1652. No dia 1 de Janeiro, pregou a pedido dos Prebendados da Sé sôbre o batismo da Penitência e, à tarde, ensinou publicamente a doutrina.

Durante quatro dias prosseguiram intensamente com o ensino doutrinário e com as confissões, na igreja e em casas particulares.

Segundo as suas palavras, consideradas pelo P. Francisco Rodrigues, os que mais se edificaram foram os capitulares da Sé e que seriam muito ricos e gozavam de grande autoridade. No último dia da sua estada, tornou a exortar a todos, em particular aos capitulares. Os habitantes pediram ingentemente que ficassem ou que, pelo menos, ali deixassem alguns missionários antes da partida para o Maranhão (op.cit. 232-233)

Razões músico-culturais do insucesso. Lembrando P. Fernandes Sardinha (ca. 1495-1556)

Antes dessa tentativa frustrada de fixação em Cabo Verde e de desenvolvimento da missão no continente adjunto, religiosos da Companhia já tinham passado por Ribeira Grande de Santiago.

O nome que une mais explicitamente a história eclesiástica do Cabo Verde ao Brasil é o de D. Pedro Fernandes Sardinha, o primeiro bispo de Salvador (1551). A sua imagem histórica é marcada por severidade de concepções e rigidez disciplinar, explicáveis por um lado pelas preocupações auto-reformadoras, restauradoras de ordem da época, imbuída de ideais de dignificação, e pela militância decorrente de sua formação jesuíta. (A. A. Bispo, op.cit. 648 ss.)

Pedro Fernandes Sardinha demonstra a extraordinariamente rápida ascensão na estrutura eclesiástica de missionários-soldados da Companhia de Jesus ainda de tão breve história, uma vez que apenas em 1540 havia sido instituída por bula papal. Sardinha havia estudado em Paris e tinha como mentor Inácio de Loyola (1491-1556), o que também explicaria a persistência, sob o manto de modéstia peregrina, de espírito aristocrático de cavalaria, colocada a serviço do Papa.

Antes de passar pelo Cabo Verde, D. P. Fernandes Sardinha havia sido desde 1545 Vigário Geral em Goa, onde desde 1545 destacara-se pela sua ação disciplinadora, manifestada também em medidas destinadas à coibição de práticas musicais que considerava como abusivas.

Essa experiência na India, onde a atividade missionária anterior e a ação de músicos haviam levado a uma valorização do canto na formação cristã e no culto teria consequências para as suas atividades no Brasil.

A sua animosidade para com a prática musical deve ser compreendida porém não como reação a situações realmente abusivas, mas sim como expressão das concepções e regulamentações internas da Companhia que excluiam a prática do canto das ofícios. Essa norma, que possibilitava aos religiosos tempo livre para o exercício da militância, diferenciava a Sociedade de Jesus relativamente às ordens religiosas mais antigas e passou a constituir um distintivo ciosamente defendido, marcando de forma singular as preocupações da Companhia nessa fase da sua história.

Essa distância relativamente à prática do canto dos ofícios, levada a últimas consequências no ardor da defesa da prerrogativa alcançada quanto às obrigações de canto de coro, criou a imagem do "Jesuíta que não canta", do missionário militante que procurava por todo lado introduzir o silêncio dos colégios européus, entre outros o de Coimbra.

Os problemas resultantes dessa ausência da prática de canto de coro dos Jesuítas resultaram da generalização de uma atitude de reserva para com a música e que trouxe sobretudo graves consequências.

Essa posição da Companhia implicava também numa desvalorização da música quanto a concepções de sacralidade como elemento integrante da liturgia, do cantar como ação sacra, de uma concepção que relacionava intimamente a palavra cantada com a oração e que marcava há séculos a vida contemplativa das outras ordens.

Se D. Pedro Fernandes Sardinha encontrara em Goa uma intensa prática do canto introduzida e cultivada sobretudo pelos Franciscanos, também deveria tê-la encontrado, ainda que em menor escala, no Cabo Verde.

No Brasil, porém, os problemas com que se defrontou foram muito mais graves do que aqueles experimentados na Índia e na África. Ali constatou que os próprios Jesuítas faziam uso de elementos musicais, instrumentos e mesmo gestos e danças de indígenas na sua ação missionária. Compreende-se, assim, a indignação de D. Fernandes Sardinha perante a realidade brasileira, criada a partir de exigências culturais, e que entrou na história sobretudo devido à polêmica com o Pe. Manoel da Nóbrega (1517-1570).

Não seria adequado ver na ação dos Jesuítas no Brasil uma valorização da música e da dança, o que não corresponderia às normas então tidas como fundamentais da Sociedade de Jesus. Tratou-se antes de uma expressão de pragmatismo, de um uso de elementos musicais, instrumentos e gestos como meios para o alcance de fins, ou seja, de sua instrumentalização e, assim, mais uma manifestação de uma atitude desvalorizadora da música na sua concepção mais ampla de ação sacra como havia sido há séculos cultivado por outras ordens.

A indignação de D. Fernandes Sardinha compreende-se aqui sobretudo a partir de uma dinâmica dos desenvolvimentos desencadeados e que levavam a uma cultura religioso-festiva que contrariava ainda mais radicalmente a atmosfera de silêncio vista como modelar do que a vida contemplativa marcada pelo canto das horas da antiga tradição das ordens religiosas. A gravidade dessa situação pode ser avaliada pelo fato de D. P. Fernandes Sardinha ter procurado ir a Portugal para tratar do assunto.

Pode-se supor que, se a sua viagem não tivesse sido impedida pelo naufrágio e pelo fato ter sido devorado pelos índios, severas medidas de globais consequências poderiam ter sido tomadas, modificando também processos de formação cultural do Brasil. Os fatos, porém, levaram a que o pragmatismo adaptativo registrado primeiramente no Brasil passasse ao contrário caracterizar as atividades dos Jesuítas, que, paradoxalmente, contrariando as suas históricas determinações, adquiriram a imagem de religiosos particularmente abertos e promotores da cultura musical e expressões afins. (A.A.Bispo, loc.cit.)

Assim como na Índia, os anos caracterizados pelo silêncio parecem terem representado apenas um interregno também em Cabo Verde. Logo após a presença de D. P. Fernandes, o Conselho do Cabo Verde solicitou a D. João III a nomeação do Cantor João Figueira da Sé a Vigário Geral. Em 1564, Cantor e Capelão era um frade: Fr. Jorge de Penalva.

Catequese cantada nas ruas e no interior em missões junto a menos privilegiados

Apesar da insuficiência das referências documentais, pode-se supor que a música tenha desempenhado um papel na ação dos religiosos da Companhia em Cabo Verde sobretudo como veículo de atração de crianças, na transmissão de orações e de seu aprendizado através de repetições. Sabe-se que nas naves que passavam pelo Cabo Verde, os religiosos da Companhia praticavam com os marujos orações cantadas e ladainhas.

Também em Cabo Verde o canto de orações e ladainhas devia fazer parte de uma "catequese de rua" como praticada em outras regiões do mundo.

Faltando o exercício musical da prática coral dos ofícios, e considerando o reduzido número de religiosos, a música sacra apenas teria desempenhado um papel mais relevante nas missas e em ocasiões especiais. Tem-se referência, assim, que "muitas boas vozes" participaram da missa e responso por ocasião da morte de um missionário, em 1607. Esses cantores teriam vindo talvez da Sé, possivelmente profissionais, o que poderia ser visto como testemunho de um considerável nível da prática sacro-musical em Ribeira Grande e que explicaria uma antipatia perante os padres "que não cantavam" da Companhia.

Ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "O insucesso da ação dos Jesuítas em Cabo Verde e na Guiné nos seus pressupostos e suas consequências culturais em relações com a atividade da Companhia no Brasil". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 142/8 (2013:2). http://revista.brasil-europa.eu/142/Ribeira-Grande-Jesuitas.html