Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Fotos A.A.Bispo.
©Arquivo A.B.E.







 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 142/5 (2013:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Dr. H. Hülskath (Dir. Adm.) e Conselho Científico

Organização de estudos de processos culturais em relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa  -
e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2976




Ribeira Grande - de valores imateriais na pobreza do material
Questões de concepção de patrimônio cultural e arquitetônico
em contextos históricos transatlânticos
marcados pelos problemas escravidão e degradação ambiental

Em sequência a encontro na Embaixada da República de Cabo Verde em Berlim
Na passagem dos 25 anos do primeiro da série de eventos euro-brasileiros do I.S.M.P.S. e da A.B.E. pelos 500 anos de Descobrimentos portugueses

 

A "Cidade Velha", a ca. de 15 quilômetros de Praia, capital do Cabo Verde, a antiga Ribeira Grande de Santiago, capital até 1769, é por muitas razões localidade de primordial significado para os estudos culturais do mundo de língua portuguesa e, em dimensões ainda mais amplas, para os estudos de processos culturais do Atlântico.


Aquela que foi capital do Cabo Verde até 1769 é por muitos decantada como a primeira urbe edificada por europeus - abaixo do Equador, assumindo assim significado de extraordinária relevância para uma história da arquitetura e do urbanismo de orientação cultural.

Como um marco pioneiro no processo de expansão européia no hemisfério sul, adquire significado para os estudos tropicais em geral, permitindo, a partir da sua contextualização histórico-geográfica, a análise de fundamentos de processos então postos em vigência.
Esse significado, reconhecido nos últimos anos, manifesta-se no fato do Comitê do Patrimônio Cultural da UNESCO tê-la inscrito na lista do patrimônio mundial, consagrando o seu valor universal excepcional como bem cultural a ser protegido em benefício da Humanidade. Em 2008, apresentou-se à UNESCO um dossier para a candidatura de
Ribeira Grande a Patrimônio Mundial, um trabalho de anos, coordenado desde 2000 pelo arquiteto Álvaro Siza.

A visita promovida pela A.B.E. à antiga Ribeira Grande de Santiago teve como objetivo retomar reflexões que vêm sendo encetadas sob a perspectiva dos estudos de processos culturais no contexto Mediterrâneo/Atlântico que marcam os trabalhos de 2013.(Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Estudos-e-Esclarecimento.html ) sob a perspectiva do debate sôbre concepções culturais e patrimoniais desenvolvido em outros contextos. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/134/Romenia-Brasil.html)

Como vem sendo discutido, convencionais distinções entre "cultura material" e "cultura espiritual" em áreas de estudos culturais refletem-se em correspondentes concepções entre patrimônio material e espiritual, este compreendendo por exemplo música, dança, literatura, aquele, entre outros bens, aqueles que se referem à arquitetura.

Essas distinções, que fundamentam políticas de proteção a bens, tendo, assim, consideráveis implicações e consequências, vêm sendo questionadas sob diferentes aspectos em reflexões que, por último, levam a problemas básicos de compreensão do termo cultura e de concepções do material e imaterial, do material e espiritual, do perceptível pelos sentidos e da visão do invisível.

Ribeira Grande traz à consciência de forma particularmente expressiva a atualidade e o significado dessa discussão sob a perspectiva de contextos que superam delimitações geográficas.

Um valor patrimonial arquitetônico-urbanístico que não é "material"


A inserção de Ribeira Grande em rol das "7 maravilhas do mundo de origem portuguesa" não pode ser compreendida à primeira vista, pois como "maravilha" dificilmente pode ser percebida por um observador que apenas considere aquilo que constata com os seus sentidos. Também para aquele instruído a respeito do seu significado histórico, o termo "maravilha" surge como inapropriado.

Ribeira Grande desafia não apenas posições convencionais que enquadram a arquitetura na categoria de cultura e patrimônio cultural material. Ela traz à consciência também a necessidade de distinções mais sensíveis do que se entende por patrimônio imaterial, muitas vezes indiferenciadamente designado como espiritual. O significado de Ribeira Grande dificilmente pode ser compreendido nesse sentido de patrimônio espiritual.

A cidade arruinada é antes um marco memorial, um testemunho e documento histórico de sentidos antes negativos, um memorial que traz à consciência o seu papel em processos que podem estar ainda em vigência e que não podem ser considerados como expressão de cultura ou civilização, pois dizem respeito ao tráfico de escravos, a consequências destrutivas em regiões extra-européias de conflitos europeus e à degradação do meio ambiente. A sua inscrição na lista que consagra o valor universal excepcional de bens culturais ou naturais com o fim de sua proteção ao benefício da Humanidade é compreensível e justificável nesse sentido de memorial e de sinal de necessária introspecção crítico-cultural, contrição e advertência.

Aproximando-se do seu centro por terra, o visitante, dos altos marcados pelas ruínas da antiga Sé Catedral, descortina uma baía com um pequeno e modesto povoado. Nele entrando, surpreende-se pelo diminuto número de construções mais antigas e pelos traços apenas residuais de ruínas de edifícios de importância no passado. Marco - triste marco - do significado histórico da localidade e de manifesto interesse histórico-artístico é o pelourinho no largo próximo à praia, de 1520.

Se no século XVI tratava-se de uma povoação de ca. de 500 construções solidamente edificadas, de pedra, hoje grande parte de suas casas são modestas em dimensões, técnicas e materiais construtivos. Se no passado possuiu muitas igrejas, a maior parte delas desapareceu, entre outras a de Nossa Senhora da Conceição, a mais antiga, a de São Pedro, a de Monte Alverne, a de Santa Luzia, a importante da Misericórdia com o seu Hospital, do qual apenas resta relitos de pedras da sua torre de sino. Também em estado absolutamente arruinado se encontram os prédios da Companhia de Jesus. As ruínas da sua Sé Catedral, iniciada em 1555, permitem apenas uma visão do seu traçado e de alguns de seus elementos construtivos. (Veja http://revista.brasil-europa.eu/142/Ribeira-Grande-Catedral.html)

Apenas duas igrejas apresentam-se em estado de boa conservação, tendo sido recuperadas: a da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, de 1495, e a de São Francisco, restaurada com o apoio do Govêrno da Espanha.

Nessa quase inexistência de edifícios históricos, sobressai-se no alto da montanha, o Forte Real de São Filipe, de 1590, que lembra as tentativas de defesa da cidade contra os ataques de piratas da época da União Pessoal entre Portugal e a Espanha. Essa vasta construção evidencia o seu significado numa história da arquitetura militar portuguesa e, como maior de um considerável número de locais fortificados, traz à memória as dimensões dessa necessidade de proteção.


Apenas a consideração de fatos históricos pode trazer à consciência o significado de Ribeira Grande no passado. Com a sua Câmara Municipal criada em 1497, sede episcopal de vasta Diocese da África setentrional, e centro de govêrno e administração colonial de ampla esfera africana, alcançou considerável desenvolvimento em meados do século XVI.

No seu porto atracavam naves que iam e vinham de São Tomé, do Brasil, mas também de regiões da América espanhola, do Perú ou do Caribe. A razão desse significado da cidade portuária residia sobretudo no tráfico de escravos e que a tornaram lucrativo centro, ali residindo comerciantes enriquecidos ao lado de grande número de africanos cativos que, na década de 80 do século XVI, atingia ca. de 13.700 pessoas. Já essa função de Ribeira Grande demonstra que ela não pode e não deve ser apagada nem silenciada.

O estado arruinado em que se encontram as suas antigas edificações é um testemunho de processos políticos e político-culturais em contextos globais que atingiram o espaço atlântico. As destruições, devidas em grande parte a ataques de piratas e corsários, inseriram-se em conflitos europeus de natureza religiosa e política, em particular aqueles de países ibéricos com os não-latinos e a França.


Aproximações à percepção de sentidos a partir de denominações e de datas

Uma questão que merece ser esclarecida pelas consequências que traz diz respeito à designação da ilha e ao dia do seu descobrimento.  Segundo Joaquim Veríssimo Serrão, (Portugal en El Mundo,: Un itinerario de dimensión universal, Madrid: MAPFRE 1992, 82), com referência a Damião Peres (História dos Descobrimentos Portugueses, 140-141), a denominação de Santiago indicaria ter sido ela descoberta no dia 25 de julho, festa do Apóstolo S. Tiago.

"Puede haber ocurrido que Santiago fuese bautizada el 25 de julio y en fecha anterior las islas de San Filipe (Fogo) y de las Maias (Maio). En quanto a San Cristóvao (Boavista), tal vez fuese descubierta el 10 de julio, no existiendo datos sobre la isla Lana (Sal). Para el conjunto del archipiélago faltaban, sin embargo, las cinco islas del grupo occidental, cuyo descubridor fue Diogo Afonso, escudero del infante don Henrique. La navegación se efectuó a finales de 1461, fondeando en São Nicolau el dia 6 y en Santa Luzia el 13 de diciembre, y se completó el hallazgo el 17 y el 22 de enero con la llegada, respectivamente, a Santo António (Santo Antão) y a São Vicente."

Essa ordem cronológica da reconstrução das respectivas ilhas segundo as suas designações segundo festas do calendário religioso aponta, assim, uma incoerência relativamente a Santiago, o que levou os historiadores a supor um batismo posterior da ilha, contrariando a ordem natural das descobertas.

Essa dificuldade parece poder ser explicada a partir de um mal-entendido. Supõe-se ser S. Tiago aquele festejado a 25 de julho, esquecendo-se que também a êle é dedicado o dia 1 de Maio, data que em tradição já documentada no século XV rememora a consagração da Basílica dos 12 Apóstolos em Roma.

A memória dos dois apóstolos marca os primeiros dias de maio, assim como também o da festa da Invenção ou do Descobrimento de Santa Cruz por Santa Helena, comemorada no dia 3 de maio, o que possibilita também um deslocamento da festa dos dois apóstolos para este último dia. A festa de Santa Cruz foi de grande significado no ciclo religioso da época das Descobertas, o que se manifesta na força das suas expressões em várias regiões, também no Brasil e no Cabo Verde. Essas festas tornaram-se, assim, através dos séculos, até mesmo expressões tradicionais características de ilhas.

A designação das ilhas Santiago, São Felipe (Fogo) e Maio insere-se em todo coerente que não exige suposições de posteriores batismos para explicar a lógica das designações e o caminho das descobertas.

Esse fato é corroborado pelas palavras do texto de Valentim Fernandes, já há muito amplamente difundidas em revista de divulgação por ocasião do IV Congresso Internacional de Turismo Africano (Descriçam da Costa de Africa..., 1506-1510, in "Há quatrocentos anos...§, Panorama II/5 3 6, 1952, s/pág.):

"Boa Vista é a mais chegada ilha do cabo Verde, do qual todas estas alcançarom seu nome. E terá em compridam ou longura quinze léguas; e é rasa, sem arvoredos, despovorada de gente. As águas som salobras. (...) A ilha de Maio jaz ao sul e quarta da sueste da ilha de Boa Vista, e é assi chamada por ser primeiramente achada no primeiro dia de maio. É ilha pequena de seis léguas, carece de águas e, se há alguas, som salobras. (...)  // A ilha de Santiago jaz da ilha de Maio al oeste, e é assi chamada por ser achada no dia de Sant'Iago, primeiro dia de maio. (...). A ilha de Fogo jaz al oeste e quarta de sudoeste da ilha de Santiago doze léguas, e se chama de Fogo porque em meio dela há ua serra mui alta, mais que de nenhua outra ilha destas, na qual serra sempre arde fogo que parece a olhos vistos, e em certos tempos do ano ferve; (...) Esta ilha se chama de Sam Filipe por ser achada com as outras duas, de Maio e Santiago, no primeiro dia de maio".

Essas palavras falam assim explicitamente que as três ilhas, Maio, Santiago e S. Felipe ou Fogo foram achadas no dia 1 de maio, sendo Maio a primeira. Essa sua designação indica que todo o contexto festivo de fundamentação teológica diz respeito às festas do mês de maio, marcado tradicionalmente sobretudo no mundo ibérico por diferentes expressões de antigas origens.

Esse contexto merece, pelo seu significado, ser considerado com mais cuidado. Assim como não se pode esquecer que o Apóstolo S. Tiago não era apenas festejado no dia 25 de julho, mas também no dia 1 de maio, também deve-se considerar que o nome também vale para o "Irmão de Jesus", o Justo (Mk 6,3; Mt 13, 55), o que deu margens a problemas de identificação relativamente a S. Tiago Menor e S. Tiago Maior.

É questão de discussões mais aprofundadas na análise de processos culturais da época das Descobertas se a posição judeu-cristã de Tiago o Justo, que o coloca na proximidade daqueles que pretendiam também que àqueles convertidos do mundo grego-romano fossem aplicadas leis da Tora, em particular da circuncisão, tivesse levado a uma veneração especial em situações tão marcadas pela presença de conversos ou cristãos-novos como no caso da costa africana.

A veneração conjunta de Tiago e Felipe não se manifesta apenas na designação das ilhas, mas sim também na própria povoação de Ribeira Brava. O forte que mais tarde se construiu nos seus altos, guardando a baía, traz o nome de S. Felipe.

A devoção a esse apóstolo explicar-se-ia sobretudo pela tradição segundo a qual teria atuado entre gregos e entre bárbaros, sofrendo o martírio entre povos do Mar Negro de imagem marcada pela barbárie. A veneração dos dois santos em Cabo Verde adquire assim significado para estudos referentes a concepções, atitudes e procedimentos dos cristãos europeus relativamente a cristãos-novos e a não-cristãos, com a "gentilidade", no caso africanos da costa. Ambos os santos surgem como imagens paradigmáticas referenciais que abrem novas perspectivas para análises de processos que marcaram através dos séculos as ilhas.

O campo de tensões representado pelos judeus aos olhos dos cristãos marcava de forma particularmente intensa as preocupações da sociedade ibérica em fins da Idade Média a ponto de fundamentar um processo que levaria à expulsão dos judeus algumas décadas após a descoberta das ilhas caboverdianas.

Uma de suas principais dimensões dizia respeito à escravidão de africanos e ao papel mediador desempenhado pelos comerciantes judeus no "resgate" entre povos de terras da costa africana.

A atenção assim dirigida a partir da consideração do sistema referencial de imagens Felipe/Tiago faz com que se levante uma questão que tem sido tratada em outros contextos das terras descobertas pelos portugueses - como no caso do Brasil - mas que pouco tem sido considerada relativamente à África, em especial ao Cabo Verde: a de desenvolvimentos que teriam ocorrido antes do descobrimento "oficial" das ilhas e que representariam pressupostos para posteriores ocorrências.

Questões de uma história anterior ao próprio início oficial da história

Pelo fato de tratar-se aqui de uma época anterior àquela documentada pelas fontes, reflexões relativas a essa ante-história devem partir retroativamente de indícios em registros posteriores, esse procedimento é marcado por dificuldades e riscos quanto a interpretações, não pode, porém, ser dispensado para análises mais sensíveis de processos culturais.

No caso do Cabo Verde, a existência de uma história anterior a seu próprio início oficial já foi aceita pelos historiadores, como pode-se constatar no texto de Joaquim Veríssimo Serrão.

"Se acepta hoy que la isla de Santiago fue avistada en 1445 por el nauta Dinis Dias, natural de Lagos, que formaba parte de la expedición de Lanzarote quien, ese mismo año, desembarcó en la desembocadura del río Senegal. De regreso al Algarve habría hecho un largo desvio por el océano y dado noticia de la 'ínxula auténtica' que aparece dibujada en el mapa de André Bianco, de 1448" (op.cit. 81 com referência a A. Fontoura da Costa, Cartas das Ilhas de Cabo Verde, de Valentim Fernandes, Lisboa 1939, 7-20).

A referência ao empreendimento que atingiu o Senegal traz à consciência a necessidade de considerar-se o alcance da região verde, subsahariana pelos europeus em contexto mais amplo tanto geográfico como da linguagem visual.

O avistamento da ilha em 1445 deu-se em ano que os portugueses estabeleceram um posto de comércio em Arguim na Guiné, um empreendimento que teve os seus pressupostos, exigiu preparativos e ações planejadas. Em 1444, viajara, com Gomes Pires e Antão Gonçalves, ao rio de Oro.

Na expedição de 1445, do lado oposto da ilha de Arguim, Diogo Afonso, com Antão Gonçalves e Garcia Homem, chegaram a um promontório onde fizeram muitos escravos e que designaram como do resgate. Desde o início da sua história, portanto, a região relaciona-se com a escravidão, sendo os cativos vendidos em Portugal.

Em 1462, uma ilha a noroeste das Canárias e da Madeira é doada pelo rei a seu irmão, o Infante D. Fernando. Nesse documento, cita sete ilhas encontradas por Diogo Afonso (Brava, São Nicolau, São Vicente, Santo Antão, ilhotes Branco e Raso)  atravessando o Cabo Verde. De 1463 a 1473, Diogo Afonso foi capitão de Cabo Verde. A êle seguiu-se Rodrigo Afonso.

É compreensível que o trato nessas regiões afastadas passasse a ser conduzido sobretudo por aqueles que, pelas circunstâncias e pelos pressupostos culturais, sempre a caminho, salientavam-se nas transações comerciais que exigiam viagens: judeus cristianizados ou cristãos de ascendência judaica.

O papel desempenhado pelos cristãos-novos na história da costa ocidental africana pode ser documentado em diferentes contextos e neles registra-se o significado das ilhas à frente das respectivas regiões da terra firme. As ilhas defronte ao cabo Verde no continente - e que tomaram o seu nome - foram marcadas pela presença e atuação de cristãos-novos.

Uma atenção dirigida ao papel exercido por judeo-cristãos em processos postos em vigência nos primórdios da história caboverdiana traz à consciência as tensões de transformação cultural e de identidade inerentes a situações de conversão do "Velho" ao "Novo", da antiga à nova lei. Um dos aspectos mais evidentes desse conflito diz respeito à circuncisão ou a circuncisos junto a não-circuncisos na comunidade cristã com múltiplas implicações e consequências derivadas da marca.

Um processo de degradação do meio ambiente

A descrição da Costa da África de Valentim Fernandes documenta a quantidade de cabras nas ilhas caboverdianas, ali criadas e que viviam em grande número no início do século XVI.

"Boa Vista é a mais chegada ilha do cabo Verde, do qual todas estas alcançarom seu nome. E (...) despovorada de gente.(...) Há nesta ilha grande criaçam de cabras.// A ilha de Sal jaz doze léguas ao norte da ilha de Boa Vista, e é assi chamada por ua grande salina ou marinha que está no meio dela, donde há tanta avondança de sal que todos os navios que chegassem poderiam carregar. Este sal faz-se de si mesmo por certa água do mar que entra. Arvoredos poucos. Esta ilha nam tem água nenhua e as cabras que aqui andam bebem a água do mar. //A ilha de Maio jaz ao sul e quarta de sueste da ilha de Boa Vista (...) É ilha pequena de seis léguas, carece de águas e, se há alguas, som salobras. É povorada de cabras e nom de gente, e é rasa, sem arvoredos. //(....) A ilha de Fogo jaz al oeste e quarta de suoeste da ilha de Santiago doze léguas (...)//Esta ilha se chama de Sam Filipe (...). É povoada de gente. Aqui nom há casas de pedra e cal nem de madeira, salvo de pedra ensonsa. Há nesta ilha grande criaçam de cabras. (...)// A ilha Brava jaz al oesnoroeste da ilha do Fogo, e é assi chamada por ser mui fragosa. (...) Tem grande criaçam de cabras. Despovorada de gente. //(...) A ilha de Sam Nicolau jaz ao norte da ilha Brava (...). É povorada de cabras e nom de gente.// A ilha de Santa Luzia jaz al oeste das sobreditas ilhas cinco léguas, e é ilha pequena. (...) É povoada de cabras e nom de gente. // A ilha de Sam Vicente jaz al oeste da ilha de Santa Luzia cinco léguas. (...) É povorada de cabras e nom de gente.// A ilha de Sant'Antam jaz al oeste da ilha de Sam Vicente três léguas. (...) É povorada de cabras e nom de gente." (loc.cit.)

Essa grande quantidade de cabras que viviam mesmo em ilhas despovoadas sugerem que esses animais tinham sido ali soltos, procriando-se em liberdade. Essa proliferação de cabras explica em parte a devastação da cobertura vegetal das ilhas, causando ou intensificando problemas ambientais que se manifestam na aridez do solo, erosões e desertificações.

Essa proliferação de cabras como resultado de um procedimento de criação desses animais e que teve como resultado a destruição gradativa da cobertura vegetal também ocorreu nas ilhas Canárias, onde até mesmo uma das ilhas foi designada como Capraria (El Hierro).

O quadro de infertilidade e aridez que oferece hoje uma ilha como Santiago demonstra a continuidade de um processo dilapidador ambiental remontante a longínquo passado das primeiras décadas do assentamento e exploração das ilhas, onde a natureza pródiga de algumas de suas regiões foi gradualmente destruída por desenvolvimentos derivados da ação humana.

A essa gradual destruição da cobertura vegetal devido à criação de cabras somou-se a expansão da cultura do algodão que, pela sua intensidade, parece ter sido importante fator da crescente desertificação.

Sendo esse processo destruidor gradual, não se teve consciência de suas consequências, uma vez que em vales juntos às muitas ribeiras de água a ilha mostrava-se ainda pródiga.

Um quadro das condições ambientais do início do século XVI pode ser obtido em Valentim Fernandes referente à ilha de Santiago, onde a profusão de águas é salientada, o que até mesmo possibilitava a irrigação de algodoais para o aumento da produção.

A fertilidade da terra e as condições climáticas permitiam o cultivo de todo tipo de frutas conhecidas em Portugal.

"Terá vinte léguas de grandura e é povorada de muita gente. E tem duas capitanias e boõs portos do mar e muitas ribeiras de águas doces e boas. Em esta ilha nace muito algodom e os algodões que som regados dam duas novidades no ano, ua em dezembro e janeiro, outra em maio e junho; e as outras que nom som regadas dam ua novidade no ano. Há três meses de inverno - junho, julho e agosto - e este inverno nom se chama por frialdade, senom pelas chuivas. Dá todas as fruitas de Portugal que se nela prantam - figos, uvas, melões, açúcares - e todas outras fruitas há por todo o ano. Nom há trigo nem cevada; dá milho e arroz como em Guiné. Ela tem grandes criações de animálias e gados." (loc.cit.)

Não apenas árvores frutíferas trazidas de Portugal produziam em Ribeira Grande, mas também ali se aclimataram plantas provenientes de outras regiões do mundo. Menções que ali já cresciam bananeiras faz com que estabeleçam paralelos com a profusão desse cultivo nas Canárias, promovido sobretudo pelos Franciscanos e que dali as introduziram nas suas missões na América espanhola. No âmbito dos contatos atlânticos da esfera portuguesa, a atenção deve ser dirigida à Madeira, da qual teria vindo a cana de açúcar já nas primeiras décadas do assentamento. O açúcar produzido em Santiago chegaria a ser vendido em Portugal e da cana desenvolveu-se a produção de bebidas alcoólicas no Cabo Verde. Provavelmente de Moçambique vieram do Oriente coqueiros que, através do Cabo Verde, se estenderam à África continental e ao Brasil. Ribeira Grande, assim, teria sido local de irradiação de bananas e de coqueiros ao Brasil. Em caminho contrário, teria vindo provavelmente do Nordeste do Brasil a purgueira.

É essa Ribeira Grande ainda fértil - mas já inserida em processo de destruição do meio ambiente em andamento nas ilhas - que conheceu Vasco da Gama que por ali passou por ocasião de sua viagem em direção à India, em 1497, ou, segundo a tradição, Cristóvão Colombo na sua terceira viagem ao continente americano, em 1498.

De ilha saudável e de cura a ilha doentia: Tartarugas de Ribeira Grande

A imagem de ilhas felizes, de natureza pródiga e ventos amenos e clima saudável, mantida através dos séculos e que passou a contrastar de forma crescente com a realidade, pode ser documentada já no início do século XVI em Valentim Fernandes, que narra terem sido procuradas por leprosos para a cura que usavam para isso das tartarugas que ali havia em grande quantidade.

"Estas ilhas eram de primeiro tam sadias que quantos gafos ali vinham saravam: mas agora som tam doentias que a gente sã adoece." (op.cit.)

Essa menção faz supor que Ribeira Grande tornou-se um local de matança e retirada de carne de tartarugas, da qual restavam as suas carapacas.

O nome de Ribeira Grande da ilha de Santiago também pode ser compreendido apenas considerando-se um estado anterior de profusão de águas doces que afluiam ao mar, hoje já não mais constatável devido à degradação ambiental através dos séculos.

O visitante da antiga capital de Santiago, que espera encontrar ali uma correnteza de dimensões que justifiquem a designação e mesmo a escolha do local pela sua posição privilegiada de águas, surpreende-se ao encontrar um leito sêco e árido de rio. É através desse leito pedregoso que pode caminhar até antigas igrejas ou ruínas. Partir da situação atual, porém, impediria compreender a história do local e o seu significado.


Nessas condições naturais marcadas por abundância de águas da Ribeira Grande compreende-se até mesmo a força do culto mariano manifestada sobretudo no fato de que a primeira igreja ali construída tenha sido dedicada a Nossa Senhora da Conceição. As expressões tradições festivas das festas da Imaculada Conceição em várias regiões do mundo - também no Brasil - demonstram o significado das águas e do símbolo do bojo da tartaruga como caixa de ressonância de instrumento de cordas de remota Antiguidade.

O bojo tornado instrumento foi na tradição medieval de significado simbólico-antropológico relacionado com Maria, a "lira do Espírito Santo".

Ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo

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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Ribeira Grande de Santiago - de valores imateriais na pobreza do material. Questões de concepção de patrimônio cultural e arquitetônico em contextos históricos transatlânticos marcados pelos problemas da escravidão e degradação ambiental". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 142/5 (2013:2). http://revista.brasil-europa.eu/142/Ribeira-Grande.html