Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Fotos A.A.Bispo.
©Arquivo A.B.E

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 142/7 (2013:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Dr. H. Hülskath (Dir. Adm.) e Conselho Científico

Organização de estudos de processos culturais em relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa  -
e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2978





Sé Catedral de Ribeira Grande - pobreza da matéria e nobilidade de forma
Ruínas de uma concepção teológico-cultural orientada segundo o esplendor do culto

Em sequência a encontro na Embaixada da República de Cabo Verde em Berlim
Na passagem dos 25 anos do primeiro da série de eventos euro-brasileiros do I.S.M.P.S. e da A.B.E. pelos 500 anos de Descobrimentos portugueses

 

Encontra-se em estado de ruínas um edifício que poderia ser nas suas dimensões e significado eclesiástico o maior e mais representativo monumento arquitetônico do arquipélago do Cabo Verde e mesmo da esfera atlântica no seu todo: a Sé Catedral de Ribeira Grande, atual "Cidade Velha", próxima da Cidade de Praia, na ilha de Santiago, cidade que a sucedeu como capital do Cabo Verde.


Essas ruínas da Sé Catedral, ao lado do Paço Episcopal, encontram-se em posição topográfica elevada com relação à baía, tendo sido assim projetada para marcar de forma sobranceira a configuração urbana. Acima dela, o forte domina mais ao alto e de longe toda a paisagem. Do seu antigo portal e da área defronte à fachada já não mais existente, com o cruzeiro, do qual resta apenas a base, pode-se descortinar um amplo panorama da cidade, do porto, da praia e do mar. Sem a Sé no alto dessa colina, dificulta-se a leitura do espaço no qual se encrava a cidade.


As suas ruínas são alcançadas hoje por aqueles que chegam vindos da Cidade de Praia, quando, no bairro de São Sebastião, atingem a colina na qual os restos do edifício se localizam. Alcançam assim a catedral por detrás, defrontando-se com as paredes arruinadas do seu coro. Trata-se, assim, de uma percepção do edifício diferente daquela dos que se aproximavam pelo mar ou dos habitantes que tinham que a ela subir, alcançando-a por caminhos íngremes e, por fim, por grande escadaria.


Pobreza material e nobreza de forma

Da Sé apenas pode-se hoje ver restos de poucos muros de maior porte, salientando-se aqueles ao redor do coro. Neles constata-se técnicas construtivas empregadas, podendo-se reconhecer sinais de interrupções e prosseguimentos, reformas e reconstruções. Pedras irregulares, de diferentes tamanhos, algumas de consideráveis dimensões, provindas da ilha, preenchem os espaços da estrutura regular criada por pedras de cantaria, vindas de Portugal. A  disposição em forma alternada quanto à orientação dos lados dos paralelepípedos nos cantos e ângulos garantia a solidez e a segurança da construção.

Contrafortes, colunas e molduras de janelas e portas, construídos com pedras cortadas de forma regular, apresentam elementos trabalhados com perícia artesanal, observável sobretudo nos batentes das portas principais, arquitraves, volutas, frisos e pedestais.

O interior, hoje enorme área livre e aberta, impressiona pelas grandes dimensões da área construída e pelo considerável espaço destinado ao coro, o que faz supor ter sido projetado para abrigar altar correspondente à grandeza da arquitetura e a grande numero de sacerdotes.

A diferença do tamanho das pedras e da massa empregada para os vãos a partir de determinada altura parece corresponder ao fato da obra ter sido interrompida por muitas décadas, do século XVI ao XVIII. Para o seu prosseguimento, utilizaram-se pedras de cantaria já existentes, algumas delas muito mais antigas, o que parece poder ser lido no uso de pedras angulares configuradas mais artisticamente com reticulado de cubos.

Obra secular inacabada, retomada em escala adaptada e arruinada

A Sé Catedral de Ribeira Grande é um dos muitos exemplos de catedrais que tiveram a sua construção interrompida, permanecendo torsos através de séculos e que se tornaram emblemas de um projeto ou desígnio representado por um modêlo ideal não cumprido.

Várias delas foram prosseguidas nos séculos XVII e XVIII, com adaptações estilísticas segundo a linguagem arquitetônica e as possibilidades da sua época, em alguns casos foram essas construções substituídas no século XIX por obras monumentais que procuraram reconstruir historicamente concepções originais ou supostamente originais. Entre os grandes exemplos dessas catedrais reconstruidas no Historismo e que se tornaram monumentos emblemáticos de cidades podem ser citadas a catedral de Colonia ou a de Trondheim (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/139/Trondheim-Catedral.html). A Sé Catedral de Ribeira Grande não experimentou essa última fase reconstrutiva.

Por encontrar-se em construção, o Cabido da Sé manteve-se instalado em condições provisórias na igreja da Misericórdia até às últimas décadas do século XVII. Nessa época ter-se-iam intensificado as intenções de terminar a catedral. Reconheceu-se, porém, que o projeto original, estabelecido já nos fundamentos e nos muros construídos, mostrava-se sobredimensionado relativamente às necessidades e às possibilidades financeiras da cidade. O que se havia esperado no passado relativamente ao desenvolvimento de Ribeira Grande não se concretizara, uma vez que a cidade tinha sido também alvo de ataques, saques e destruições por décadas. 

Pensou-se, assim, em construir apenas o espaço que bastasse às funções religiosas; uma construção na nave e uma capela lateral então edificada corresponderam antes a essas necessidades do que a reconstrução da grande nave segundo a planta. As pedras ali se encontravam foram utilizadas, assim como materiais provenientes de outros edifícios. Para a decoração da capela, utilizaram-se azulejos de épocas mais recentes, supondo-se ter havido uma composição figurativa emoldurada com motivos florais em azul e branco de fins do século XVII.

A sua construção terminou em 1705. Poucos anos depois, em 1712, no contexto da Guerra de Sucessão Espanhola, foi pilhada por corsários sob o comando de Jacques Cassard (1679-1749), flibusteiro que, a serviço da França, atacou e destruiu várias cidades em ilhas do mundo colonial inglês e holandês no Caribe.

Segundo uma gravura do século XIX, a igreja possuiu uma configuração externa similar a muitas igrejas encontradas no mundo colonial português. Tendo as suas paredes cobertas de alvenaria, apresentava uma fachada discreta, despojada de ornamentação mais rica, marcada pela simetria criada pelas suas duas torres de sinos. Acima de um único portal essa simetria era acentuada por duas janelas, provavelmente correspondentes ao coro interno, tendo ao centro, mais elevada, uma rosácea. Criou-se, assim, uma tríade que pode ser lida como simbolizando a Trindade. No transepto, constata-se uma construção simples mas alta, de duas águas e clarabóia lateral, que parece ter sido o espaço utilizado para o culto, com entrada lateral.

É surpreendente a destruição da igreja em menos de um século. Em fotografia de 1929, já a fachada não existe e apenas restam ruínas de paredes. O observador ganha a impressão de ter havido não apenas ruína resultante de abandono, mas trabalho sistemático de demolição. Lembra-se de fatos similares na Europa e em outras regiões, quando igrejas coloniais foram demolidas à época restaurativa do Catolicismo de fins do século XIX e início do XX, dando lugar a construções neo-góticas. No caso de Ribeira Grande, porém, a demolição ou destruição não deu lugar a outra construção, sendo as pedras utilizadas como material de construção para o levantamento de muros para o cercamento de área e da estrada, assim como para casas particulares.

A Sé Catedral de Ribeira Grande representa assim um exemplo expressivo de não-realização de um projeto com características de grandiosidade, surgindo como um sinal da temporariedade da obra humana.


Projeto de valorização da Sé como patrimônio e centro histórico-arqueológico e cultural

Uma proposta de recuperação do arquiteto João Bento de Almeida, publicada no caderno da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses em 1990 ("A Sé da Ribeira Grande, Proposta de Recuperação", Oceanos 5, Novembro 1990, 88 ss.), parte justamente da carga histórica da própria ruína.

O seu projeto pretende, na medida das possibilidades, identificar o que poderia ser levantado da cantaria e reconstituir, em linhas gerais, apenas o volume e a silhueta da igreja através de uma estrutura em concreto. Com isso, não procurando uma reconstrução, questionável pela falta de documentos e pelo estado avançado das ruínas, a sua proposta visa primordialmente recriar os contornos de um espaço, possibilitando novamente a visão de um volume capaz de reconstituir a fisionomia urbana nas suas relações com a topografia.

A proposta, porém, vai mais longe, prevendo a utilização do espaço para fins culturais. Para isso, a nave central e a área do altar-mór devem segundo ela receber uma cobertura de vidro. As naves laterais poderiam ser então utilizadas para a exposição de restos de cantaria e esculturas, a nave central e o transepto para atividades culturais. O espaço do altar-mór tornar-se-ia o núcleo histórico da cidade.

Os trabalhos arqueológicos previstos compreendiam a remoção de ca. 300 cantarias do interior da Sé, a sua inventariação e classificação, assim como a escavação do interior para a recuperação da planta original e da sua organização espacial. Também previa-se o descobrimento de sepulturas, em particular do bispo João Parvi (+1546), trasladado para a do Frei Vitorino Portuense (+1705), sob o qual a Sé foi concluida.

Os trabalhos deveriam desterrar externamente a capela-mor, com a recuperação do primitivo soco e da volumetria, possibilitando o reconhecimento de alicerces e soleiras de porta de duas salas laterais à capela-mór. Paralelamente, deviam ser procurados, registrados e fotografados elementos retirados da antiga Sé pelos habitantes e empregados em construções, muros e marcos. Para isso, contou-se com a compreensão da população. Esses intuitos explicam que o observador, hoje, encontra o espaço interno da antiga Sé livre e, ao lado, cantarias e outros elementos dispostos de forma que sugere trabalhos histórico-arqueológicos sistemáticos.

O projeto compreende-se como aberto, pois as pesquisas arqueológicas que deveriam ser ainda desenvolvidas poderiam trazer novas contribuições à compreensão do edifício, exigindo então modificações.

Em 2004, no contexto de um movimento de restauração de monumentos, e com a cooperação portuguesa, materiais foram removidos e os muros parcialmente reconstruídos, o que explica em parte as diferenças que hoje se constatam nas paredes.


O significado da Sé de Ribeira Grande para o estudo de processos culturais

O destino da Sé de Ribeira Grande, marcada pelo não cumprimento de um projeto inicial que surge em visão retrospectiva como sobredimensionado, por demais grandioso para as condições locais, levanta a questão dos motivos que determinaram a sua concepção do templo e a função para êle prevista em contexto global da administração eclesiástica do Padroado Português.

Essa grandeza prevista para a Sé não parece poder ser explicada apenas pelas expectativas de desenvolvimento econômico e populacional da urbe e que teriam sido frustradas pelos ataques, saques e outras tragédias. Ela deve ser analisada antes como expressão de uma determinada fase de concepções político-eclesiásticas e culturais de fundamentação teológica referentes ao papel a ser desempenhado pelo culto nas regiões extra-européias. É na análise dessas concepções que reside o principal significado do monumento memorial representado pelas ruínas da Sé Catedral de Ribeira Grande.

Esse significado foi considerado nos encontros realizados em Roma, em 1987, na ocasião de trabalhos de pesquisas de documentos históricos relativos à história missionária no espaço português realizados na biblioteca da antiga Propaganda Fide. (A.A.Bispo, Grundlagen christlicher Musikkultur in der außereuropäischen Welt der Neuzeit: Der Raum des früheren portugiesischen Patronatsrechts, Musices Aptatio 1987-1988, Roma 1989)

Nessa ocasião, salientou-se que o significado da Sé de Ribeira Grande apenas pode ser avaliado considerando-se a sua inserção como primeira sede de bispado da África ocidental na rêde de dimensões mundiais da organização eclesiástica.

Essa estruturação da ação da Igreja no espaço extra-europeu inscreve-se em época marcada pela personalidade e pela política de D. João III (1502-1557), cujo cognome de "rei piedoso" indica o clima de religiosidade que marcou o seu reinado e que deve ser considerado no contexto geral da história eclesiástica e político-cultural européia.

A excelência do culto como programa teológico-cultural

Bases canônicas para o prosseguimento da ação cristianizadora sob D. João III° forneceram as bulas Eximiae devotionis de Adriano VI (1522-1523), de 19 de março de 1523, através da qual o rei obtia o cargo vitalício de administrador do grão-mestrado da Milícia de Cristo. De grande significado foi a suspensão da exigência de que as rendas da Ordem deveria ser postas a serviço da luta contra os mouros, de modo que passaram a poder ser usadas para o financiamento de projetos reais. Favorável aos empreendimentos na África foi também a bula Nuper dilectum filium, do mesmo ano, pois regulamentou o emprêgo das rendas das dioceses de Évora e Lisboa, assim como do Priorado Lafões. (op.cit. pág. 584)

Já nos primeiros anos de seu reinado, João III voltou a sua atenção aos africanos, em particular à situação no forte de São Jorge da Mina. Em 1529, ordenou ao capitão da Mina que este deveria usar de todos os modos possíveis e adequados para favorecer a conversão dos africanos e de todos aqueles que viessem à cidade. Os filhos dos africanos que já viviam na cidade deviam receber ensino no sentido de servir na igreja, rezando e cantando. O vigário e o mestre-escola deviam receber uma gratificação segundo o número de alunos, assim como o capitão por cabeça de todo aquele que se convertesse. Criavam-se, assim incentivos para que os dirigentes das esferas eclesiástica e civil se empenhassem na conversão dos africanos e que se formassem suficiente número de coroinhas e outros auxiliares para celebrações de maior aparato.

O objetivo era o de formar novas gerações na cultura cristã através do ensino e do costume na prática de um culto marcado pelo esplendor dos ritos e das formas de expressão.

Significativamente, um capítulo dessa ordenação dizia respeito especificamente ao cuidado que devia ser dado aos ornatos e outros objetos de culto, assim como aos livros. Tudo o que fosse necessário para a ordem e a dignidade do culto devia ser posto à disposição pela "Casa Da Guiné" em Lisboa. A intenção dessas medidas era o da promoção da "perfeição" do culto, para isso não se devendo medir esforços.

Desmembramento da Diocese de Funchal - criações de sufragâneos

Em 1532, o rei, através de Martinho de Portugal, filho do Bispo de Évora, Decanus Capellae Regiae, desenvolveu negociações junto á Santa Sé no sentido de ereção de dioceses nas ilhas atlânticas e nos assentamentos africanos. Assim, por solicitação de D. João III, a diocese de Santiago da Ribeira Grande foi instituída pelo papa Clemente VII (Giulio de Medici, 1478-1534) através da bula Pro excellenti.

Funchal tornava-se sede de uma Arquidiocese com os bispados sufragâneos de São Miguel nos Açores e Santiago do Cabo Verde, compreendendo uma parte da Guinea que se estendia do rio Gambia até o Cabo das Palmas e rio Santo André.

Para o financiamento desses empreendimentos, a nova Arquidiocese obtinha o convento cistersiense de São Pedro de Aguiar na diocese Lamego.

Um outro bispado sufragâneo criado foi o de São Tomé, abrangendo as ilhas de Fernando Pó, Santa Helena, Santo Antão (Príncipe), Ano Bom e a região de São Jorge da Mina até o Cabo da Boa Esperança. Esse bispado deveria ser financiado através da incorporação do convento São João de Tarouca.

Concomitantemente, criava-se o bispado sufragâneo de Goa, que abrangia a região do Cabo da Boa Esperança até a India e China e todas as regiões que ainda viriam a ser descobertas.

O rei português adquiriu o direito de apresentação e padroado; Martinho de Portugal tornou-se Arcebispo de Funchal e Primas do mundo insular. A ereção dos novos bispados levou, em 1536, à suspensão das anteriores prerrogativas administrativas de Funchal nos respectivos sufragâneos e à restauração do Priorado de Tomar.

A construção da catedral iniciou-se apenas em 1556 sob o terceiro bispo de Cabo Verde, Frei Francisco da Cruz, tendo sido este precedido pelos bispos Braz Nelo OFM (1533-1538), João Parvi (1538-1546) e Francisco de La Cruz O.S.A. (1533-1574).


Leitura da linguagem simbólica: Dioecesis Sancti Iacobi Capitis Viridis

Dos poucos elementos decorativos restantes, salienta-se uma representação de armas episcopais. Nêle se reconhece a imagem de um touro com por uma ave sobre o seu dorso no seu campo inferior e, acima, espadas cruzadas com uma concha ao meio. Esse brasão episcopal revela um programa que pode ser lido e interpretado, lembrando-se aqui do símbolo da concha no repertório de imagens marianas e de seu uso como atributo no culto a Santiago de Compostela, o apóstolo do Ocidente. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Compostela.html)

Indo mais além na interpretação da linguagem de imagens, poder-se-ia nela ler referências aos elementos naturais, terra, água, ar e fogo e suas respectivas correspondências com os símbolos dos quatro Evangelistas.

Perfeição da forma como expressão de uma orientação à glorificação divina

Perante o estado ruinoso da catedral de Ribeira Grande, aquele que hoje a visita tem dificuldade em projetar-se mentalmente no passado, condição para considerar adequadamente o significado que teve em contextos globais e que de muito superou as dimensões insulares e mesmo aquelas do arquipélago.

As medidas da época surgem nesse sentido como expressão de intentos corretivos e auto-reformadores, de uma política e estrategia resultantes de preocupações de coibir desenvolvimentos sentidos como abusos, de estabelecer ordem sentida como abalada, de recatolizar a sociedade.

A intensidade dessas tendências de recuperação de dignidade e da perfeição do culto pode ser compreendidas em particular na situação da sociedade portuguesa, quando Lisboa, enriquecida pelo comércio marítimo, experimentava anos de brilho da vida social e cultural secular.

Essa necessidade era não apenas um resultado da situação cultural do cosmopolitismo e da riqueza da capital portuguesa, mas sim também da Igreja na Europa em geral em época marcada pelo início da Reformação. Sob Clemente VII, a crise política entre as potências européias alcançaram um ápice com o Sacco di Roma (1527). A apreciação desse período da história eclesiástica, que em geral salienta uma decadência que se manifestaria também na Côrte pontifícia e na vida da Igreja em geral, corre o risco de não considerar adequadamente as concepções da época. Não a exteriorização ou mundanização, mas uma atenção dirigida à excelência da forma, ao objetivo do culto em correspondência a uma liturgia celestial pode antes explicar uma tendência ao esplendor, à magnificência.

Uma atenção particular merece o fato de ter o Cabido da Sé de Ribeira Grande exercido provisoriamente as suas atividades por longo espaço de tempo na Igreja da Misericórdia. Essa igreja, da qual apenas se conservam restos de uma parede de torre arruinada, desempenhou assim por longo espaço de tempo um papel relevante no culto e na administração eclesiástica do Cabo Verde, o que vem de encontro ao papel desempenhado pelas Misericórdias em Portugal e em outras regiões do Padroado. Como principal local de culto deve ter este correspondido às concepções marianas respectivas e às suas implicações quanto ao manto protetor sobre os dirigentes das várias esferas da sociedade, da sua ordem (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Conceicao-Velha-de-Lisboa.html). Essa igreja, assim, teria sido um local de culto antes de esferas mais privilegiadas da sociedade, sobretudo europeus, distinguindo-se assim da Igreja de Nossa Senhora do Rosário das camadas mais simples da população, africanos e seus descendentes.

A construção de um amplo e representativo templo para a Diocese teria sido assim resultado não primordialmente de uma exigência perante o significado da Sé episcopal no gigantesco espaço africano, mas sim de uma determinada concepção de culto e cultura.

Estreitas relações entre culto, cultura e música sacra

O projeto da Sé Catedral de Cabo Verde insere-se nos seus fundamentos no movimento católico de auto-reforma nas suas dimensões globais e que teria sido marcado, primeiramente, pelo intuito de aperfeiçoamento do culto e do seu engrandecimento em correspondência a uma concepção integral que via o ato litúrgico em correspondência a uma ação celestial ou cósmica. Já nas primeiras décadas da sua história eclesiástica, o Cabo Verde inseriu-se assim num desenvolvimento auto-reformador da Igreja que levaria ao Concílio de Triento. Experimentaria, a seguir, as transformações de concepções e procedimentos.

Essa inserção do Cabo Verde nessas correntes restaurativas é corroborada pelo fato de já cantar-se em Santiago "segundo o costume romano" em 1542, uma década após a criação da Diocese.

Essa menção indica que os atos litúrgicos eram celebrados com Canto Gregoriano. Para a sua prática havia a necessidade de livros, o que explica que já nesse ano pedia-se o envio de Portugal de um "Oficial Grande de Santal e Domingal". Procurava-se, assim, praticar o canto dos ofícios nos dias santos e de guarda.

O Canto Gregoriano era, dessa forma, não apenas cantado nas missas, mas sim também nos ofícios das horas, o que pressupunha portanto a existência de coro de clérigos de conhecimentos musicais e do repertório. Uma das características dessa política de culto e cultura dessa época foi justamente a do fomento da prática de canto coral, da oração cantada em comum, o que manifesta uma concepção de estreitos elos entre a música e a oração, a idéia do canto como ato de culto em si. Seria esse fomento da prática de coro, de uma vida religiosa marcada pela ordenação severa do tempo através do canto das horas que seria modificada a seguir pela ação da Companhia de Jesus, que procurou e foi liberada da obrigação de canto dos Ofícios.

Assim como a ereção da Sé de Ribeira Grande inserira-se no movimento que antecedeu ao Concílio Tridentino, também nela procurou-se seguir as suas instruções. Para isso, tornava-se necessário formar-se uma nova geração de sacerdotes, levando à criação, sob D. Sebastião, de um seminário no Cabo Verde, em 1570, e outro em São Tomé, em 1571.

Ainda que o edifício da nova catedral se encontrasse em obras, sabe-se que continuou-se a dar atenção à prática musical na Sé em Ribeira Brava mesmo à época da União Pessoal entre Portugal e Espanha.

Tentativas de intensificação da vida contemplativa e ataques de corsários

O Rei Felipe II da Espanha (Felipe I de Portugal) procurou intensificar a missão africana pedindo em 1582 aos carmelitas descalços que nela atuassem. Para ela foram nomeados cinco religiosos, que pereceram em naufrágio.

Uma segunda expedição foi capturada por corsários protestantes, sendo os seus participantes abandonados numa das ilhas caboverdianas, da qual retornaram a Portugal. Esse fato testemunha a ação dos inimigos da Espanha nos mares e intensificação da ameaça que representavam ao Cabo Verde. Ao mesmo tempo, demonstra as inserções dessas ações de corsários no mundo insular atlântico no campo de tensões político-religiosas da Europa. Essas ações foram compreendidas como a de ataques de Protestantes contra o Catolicismo representado na África sobretudo por Ribeira Grande como centro da Diocese.

Em 1610, a Sé de Cabo Verde possuia órgão, sinos e coro de meninos. As atividades musicais do seu organista eram das mais valorizadas na África, ainda que menos do que na India e no Brasil. Assim, em 1613, o organista do Cabo Verde, percebendo 20000 rs, era tão bem pago como aquele de São Tomé, recebia porém muito menos do que os organistas das sés de Goa e da Bahia (50000 rs em 1610).

A catedral de Cabo Verde mantinha nesse ano um coral e quatro coros de meninos, de modo que havia a possibilidade de execução em alternatim do Canto Gregoriano, assim como de Canto Gregoriano e obras polifônicas. Provavelmente, essa prática referia-se sobretudo ao canto das antífonas dos salmos e dos hinos. É provável, portanto, que também durante a missa o órgão intercalasse com o coro na execução de obras polifônicas, por exemplo no Kyrie. (A.A.Bispo, op.cit. 745)

Tudo indica que a prática coral alcançara, no início do século XVII um alto nível qualitativo. Assim, numa notícia a respeito das solenidades realizadas por ocasião da morte de um missionário, no ano de 1607, salienta-se que "muito boas vozes" participaram da "missa e responso". O "responso", em geral denominação do ofício de responsórios, do ofício das horas, ou seja, da matutina ou da oração coral realizada à noite ou de manhã antes das Laudes, refere-se aqui provavelmente ao canto entoado a seguir das Vésperas. Nesse ofício, após a entoação do Invitatorium e do Hino, cantavam-se salmos com as respectivas antífonas. A prática alternada, responsorial ou antifonal, era, assim, comum no Cabo Verde.

A decadência econômica e os ataques de piratas não deixaram de ter conseqüências para a vida musical nas igrejas do Cabo Verde. Assim, o conselho de Ribeira Grande constatou, em 1619, que "todos os missaes e livros de canto chaõ, e canto de orgaõ, estaõ rotos e lhes falta muitas folhas". A Capela do Santíssimo da Praia precisava de novos sinos e tanto a Catedral como todas as outras igrejas já não tinham campainhas de missa. (A.A.Bis, op.cit. 752)

Ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Sé Catedral de Ribeira Grande - pobreza da matéria e nobilidade de forma
Ruínas de uma concepção teológico-cultural orientada segundo o esplendor do culto". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 142/7 (2013:2). http://revista.brasil-europa.eu/142/Ribeira-Grande-Catedral.html