Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 144/14 (2013:4)
Professor Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
- Academia Brasil-Europa  -
e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3018




A França como modêlo e como mediadora de relações musicais na Turquia e no Brasil:
Cemal Reşit Rey (1904-1985), Yekta Teksel (*1912) e João de Souza Lima (1898-1982)

Relações turco-européias em processos histórico-musicais globais em referenciação brasileira II


Turquia no Ano Brasil/Alemanha 2013 da A.B.E. (III)

 
Antalya.Foto A.A.Bispo©

O cultivo da distinção no trato social, solicitude e cortesia para com os estrangeiros surpreende certamente não poucos dos brasileiros que em grande número visitam atualmente a Turquia (Veja http://revista.brasil-europa.eu/144/Turquia-Alemanha-Brasil.html).

Sentido por vezes como exagerado nas suas expressões, a atitude assim observada é entendida por muitos como simples veículo aliciador de clientes a serviço do comércio por parte de uma cultura marcada secularmente pelos seus bazares.

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O contato mais próximo de brasileiros que hoje realizam excursões com os habitantes do país tem lugar significativamente em sessões organizadas para a venda de tapetes, artesanato, artigos de cerâmica, de jóias ou de moda de couro.

Mesmo que os vendedores assinalem que todo o empenho no recebimento e trato dos visitantes não tem o sentido exclusivo de venda de produtos, mas que esse é consequência antes secundária do estabelecimento de elos humanos de simpatia e confiança, essa extraordinária polidez é em geral interpretada como expressão de sutil estrategia de vendas. Essa suposição, porém, pode representar um mal-entendido na comunicação intercultural e uma injustiça na apreciação da cultura do país, impedindo relações mais estreitas.

Mudança de comportamento para com estrangeiros no séc. XIX

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Um texto de autor desconhecido, enviado por um viajante inglês da Turquia a um órgão centro-europeu em língua alemã em meados da década de 30 do século XIX  desperta a atenção a uma crucial mudança de atitudes para com os estrangeiros como consequência da longa crise experimentada pelo Império Otomano e que teve o seu marco principal nas reformas europeizantes ordenadas pelo sultão. ("Türkische Reformen", Das wohlfeilste Panorama des Universums 9, 1836, Praga: Gottlieb Haase, pág. 66-67) (Veja http://revista.brasil-europa.eu/144/Musica-na-Europeizacao-da-Turquia.html)

Estas reformas, primeiramente militares, passaram a influenciar de forma abrangente toda a sociedade. Segundo o viajante, os turcos, orientando-se segundo modêlos europeus que tentavam copiar e assimilar, passaram a respeitar e admirar os estrangeiros, recebendo-os com expressões de extraordinária cortesia e que contrastavam com a imagem anterior de um povo grave e orgulhoso.

Esse depoimento de viajante que já estivera no Império Otomano antes das reformas europeizantes e que, portanto, podia comparar situações, sugere que estas reformas resultantes de exigências pragmáticas foram acompanhadas de esforços de círculos mais elevados da sociedade de se mostrarem à altura dos principais centros europeus quanto a formas de expressão e modos de convívio social.

A instabilidade da situação de uma sociedade marcada pelas tradições e normas islâmicas e pelo anelo de demonstrar que dominava formas de cultivo em sociedade na sua auto-afirmação perante estrangeiros explicaria assim tendências a exageros em manifestações de refinamento de expressões, modos e trato.

O cultivo extremado da distinção seria nesse sentido resultado de um processo abrangente de transformação cultural europeizante e este de exigências políticas derivadas de um desenvolvimento crítico político e econômico.

Se a música na tradição italiana de bandas foi fundamental na europeização militar turca, na formação de instrumentistas de banda e orquestra e no ensino musical em geral, também desempenhou papel relevante na procura de satisfação de desejos de distinção social e cultural segundo normas européias de círculos palacianos e burgueses. Essa função coube sobretudo ao ensino e à difusão da música para piano, à música de salão e de câmara cultivada no harém e em círculos sociais mais elevados da sociedade.

Regimentos militares foram reorganizados segundo princípios franceses, a presença de comerciantes franceses no Bósporo intensificou-se e, sobretudo, o próprio sultão Abdülmecid (1823-1861), sendo pianista e tendo estudado na França, marcou um período de crescente influência francesa na vida musical palaciana e da burguesia. Na sua época deu-se a visita de Franz Liszt (1811-1886), em 1847.

Os antigos elos da Turquia com a França, abalados com as guerras napoleônicas no Egito, foram reintensivados nesse período que, na Europa, foi marcado pela Restauração, pelo Romantismo, Historismo, pelo interesse por tradições populares e por uma cultura de remotas origens visto como nelas conservada.

A tradição musical turca na vida cultural marcada pela França: Rauf Yekta Bey (1871-1955)

A ocidentalização da vida turca, promovida pela abolição de antigas instituições, trajes, costumes e usos, e na qual a música foi importante veículo, foi acompanhada por um sentido de perda de uma fisionomia cultural característica por parte de europeus imbuídos do fascínio pelo Oriente e pela nostalgia de um passado sacrificado ao progresso na própria Turquia.

Essa sensação resultante da experiência das transformações culturais - e em correspondência às correntes européias de estudos de tradições culturais em desaparecimento - explica o despertar de uma preocupação de intelectuais turcos pela própria cultura musical.

O principal representante dessa atenção à cultura musical tradicional turca foi Rauf Yekta Bey que, concomitantemente, manifesta na sua vida e obra a orientação segundo a cultura francesa e a inserção da sua obra em contextos internacionais referenciados pela França.

Tendo obtido a sua proficiência em francês em estudos na Escola Superior de Línguas em Istambul e dominando a linguagem musical e a teoria ocidental, Rauf Yekta Bey esteve em condições de adaptar a notação ocidental às necessidades da grafia de sutilezas tonais na transcrição musical, criando um sistema de notação que foi usado por décadas no Conservatório de Istambul. A formação teórica de Rauf Yekta Bey segundo modêlos ocidentais explica também a sua particular atenção a intervalos, modos e rítmos e o que insere em determinada fase da história da Musicologia Comparada.

O estudo da cultura musical turca no âmbito do desenvolvimento de uma musicologia de orientação teórico-cultural desde a década de 70 no Brasil exigiu desde o início a consideração de suas inserções na tradição mística, cujo principal centro encontra-se em Konya. Rauf Yekta Bey não apenas dedicou-se ao idioma e à cultura persa, como também participava de práticas da ordem Mevlevi. O Sufismo, porém, no qual a música e a dança desempenham fundamental papel, possui dimensões políticas em grande parte conflitantes com os desenvolvimentos desencadeados pelas reformas, complexo campo de tensões que necessita ser considerado em estudos mais diferenciados.

Rauf Yekta Bey contribuiu de forma relevante à difusão da música turca na França e em países orientados culturalmente por Paris através de texto escrito em francês, em 1913, e publicado em 1922 na renomada Enciclopédia Lavignac. ("La Musique turque", Encyclopedie de la musique et dictionnaire du Conservatoire, primeira parte, Paris, 1922).

Músicos turcos na França: Cemal Reşit Rey (Djemal Rechid)

Entre os muitos músicos e artistas das várias nações que se aperfeiçoaram em Paris, participando do desenvolvimento e das transformações da vida musical francesa e recebendo impulsos para a sua própria obra inclui-se Cemal Reşit Rey.

Tendo estudado piano com Marguerite Long (1874-1966) nos anos anteriores à Guerra, inseriu-se numa esfera artístico-cultural e em rêde de contatos humanos e profissionais que foi de grande significado para o Brasil. Diferentemente de seus colegas brasileiros, porém, pertencia a um país que, durante a Primeira Guerra lutou com as potências centro-européias e, assim, em oposição à França e aliados, entre êles também o Brasil. Abandonando Paris nesses anos, passou a estudar no Conservatório de Genebra.

O estreito elo de Cemal Reşit Rey com a cultura francesa manifesta-se na sua obra, onde registram-se canções com textos de autores franceses, p.e. Infidélité, com palavras de Pierre-Jules-Théophile Gautier (1811-1872) na série Trois mélodies.

Djemal Rechid aperfeiçoou-se em composição com Raoul Laparra (1876-1943), compositor que demonstrava nas suas obras um interesse especial pela música espanhola, também da música popular e de zarzuelas. É possível, assim, que o interesse de Cemal Reşit Rey pelo estudo da música popular turca, da opereta e do teatro musical tenha sido motivado pelo seu professor.

Os anos vinte foram para a Turquia marcados por acontecimentos que determinariam desenvolvimentos posteriores e nos quais a música e músicos desempenharam importante papel. Apesar das profundas diferenças entre a Turquia e o Brasil, pela sua cultura e pelo fato de um país ter sido derrotado, outro participante da vitória na Primeira Guerra, pode-se constatar desenvolvimentos paralelos explicáveis pela inserção de ambos os países em contextos internacionais e, sobretudo, através da irradiação de Paris como centro determinador de tendências e impulsos.

A  revolução de Mustafa Kemal (Atatürk) (1881-1938), fundador da República da Turquia e seu primeiro presidente, foi o marco decisivo da nova fase das relações da Turquia com o Ocidente. O fim do Sultanato, o advento do Estado laico e sobretudo a suspensão das irmandades místicas e do seu centro em Konya, principal esteio da cultura musical tradicional nas suas inserções em universo integral de concepções de seculares tradições criaram fatos que foram determinantes da  criação musical, do ensino e da pesquisa. 

Os intuitos laicizantes explicam a intensificação do desenvolvimento do ensino musical nas escolas segundo modêlos europeus e a formação de professores capacitados segundo a nova orientação político-cultural.

Nessas condições, pode-se traçar paralelos com desenvolvimentos ocorridos no Brasil. Também na Turquia foi a década de vinte marcada pela atividade de compositores que, formados segundo critérios europeus e acompanhando desenvolvimentos do pensamento e das artes na França, passaram a procurar nas tradições musicais populares elementos para uma linguagem musical de cunho nacional. Nesse intento salientaram-se, além de Cemal Reşit Rey, Ferid Alnar, Ulvi Cemal Erkin, Ahmet Adnan Saygun e Necil Kâzim Akses, compositores que são conhecidos como componentes de um "Grupo dos Cinco Turco", designação que indica um paralelo quanto à função político-cultural - não estética - com o mais antigo "Grupo dos Cinco" russo.

Assim, em época marcada por transformações ainda mais radicais do que aquelas do século XIX, desenvolveram-se coletas de canções populares, pesquisas que passaram a fornecer elementos para uma criação musical de cunho nacional. Também Cemal Reşit Rey realizou uma coleta de canções populares em diversas regiões da Anatólia, obra que foi publicada também com texto em francês, em 1927 (Anaḍolu ḫalq šarqıları: Qōniya, Qaramān ... toplānılān, Ed. Ewqāf Maṭb. Em edição ocidental, publicou, entre outras obras, em dois idiomas, 12 Chants D'Anatolie, para voz média e piano (Heugel & Cie).

João de Souza Lima em Istambul no contexto político-cultural do Estado laico

É nesse contexto político-cultural da República laica estabelecida por Atatürk que deve ser considerada a atuação do pianista paulista João de Souza Lima em Istambul.

Esse episódio de sua carreira européia, que é relatado  em tom entusiástico na sua Autobiografia, representa o mais conhecido exemplo da presença de um músico brasileiro na Turquia. (Souza Lima, Moto perpetuo: a visão poética da vida através da música: autobiografia do maestro Souza Lima, São Paulo: IBRASA 1982, 127-129).

A orientação francesa da vida musical ocidental em Istambul e os seus elos com o movimento musical em Paris são pressupostos para a compreensão do convite que recebeu e das condições especiais de seu recebimento no país.(http://www.revista.brasil-europa.eu/121/Souza_Lima.html)

Souza Lima pode ser considerado como um dos mais destacados músicos brasileiros marcados pela cultura francesa do período posterior à Guerra. Se a influência francesa na vida cultural e musical do Brasil foi crescente no decorrer do século XIX, se a presença de músicos brasileiros que se aperfeiçoaram na França e ali atuaram foi intensa pela passagem do século, Souza Lima vivenciou o ambiente artístico de Paris à época do seu extraordinário dinamismo de um país que saiu vitorioso da Guerra e que se impunha com nova intensidade no panorama internacional.

Tendo obtido em 1919 bolsa de estudos para o Conservatório de Paris, estudou e.o. com Marguerite Long, que chegou a substituir, em 1926. Os seus estreitos elos como discípulo, admirador e amigo de Marguerite Long torna compreensível a proximidade entre o músico brasileiro e o seu colega turco, mais jovem de idade, mas de contatos mais antigos com a sua mentora.

Tudo indica ter sido Marguerite Long aquela que recomendou direta ou indiretamente o pianista brasileiro a Cemal Reşit Rey quando este já ocupava o cargo de professor no Conservatório de Istambul. Souza Lima, porém, não foi convidado como pianista, mas sim para reger um concerto sinfônico, um fato que mereceria ser considerado com maior atenção.

Yekta Teksel, cônsul honorário do Brasil e estudioso de assuntos brasileiros

Um dos nomes mencionados por Souza Lima na sua autobiografia é o de Yekta Teksel, jovem advogado e economista, personalidade de influência política e bancários e que atuou por décadas como cônsul honorário do Brasil em Istambul, sendo dispensado apenas em 1977 (Diário Oficial da União 29/07/1977, pág. 32 - Seção 19). Tornar-se ia após a Guerra membro do parlamento pelo Partido Democrático de oposição, afastando-se do Parlamento em 1960.

As circunstâncias da recepção do pianista brasileiro no aeroporto - sendo liberado de formalidades e de controles policiais e alfandegários - sugerem a influência política daqueles que o convidaram, supondo-se aqui a ação conjunta de Cemal Reşit Rey e de Yekta Teksel.

Segundo Souza Lima, esse cônsul-honorário, sem nunca ter visitado o Brasil, demonstrava ser muito bem informado a respeito da cultura brasileira. Esse interesse pelo Brasil de Yekta Teksel deve ser considerado no contexto mais abrangente do entusiasmo pela música americana e sulamericana na Turquia de Atatürk, um desenvolvimento que correspondia também àquele em Paris do período que se seguiu à Guerra. Jazz e tango encontraram em Istambul apreciadores e aficcionados, marcando o desenvolvimento da música popular de cunho ocidental na Turquia e iniciando um interesse pelo tango que se mantém intensamente no presente.

O nome de Yekta Teksel encontra-se como pianista entre os músicos componentes de uma orquestra de estudantes fundada em 1927 sob a direção do violinista Hasan Müfit e cuja própria designação Izcaz fazia alusão ao Jazz. Além dedois violinos e três violoncelos, o conjunto instrumental incluia acordeão, dois banjos, violão, piano e davul.

Encontro de culturas marcadas pelo cultivo das relações sociais e da distinção

O entusiasmo que se manifesta na descrição da estadia em Istambul da autobiografia de Souza Lima pode ser explicado pelo encontro de artistas e intelectuais profundamente marcados na sua formação cultural e na sua socialização pela cultura francesa. O domínio do idioma comum favorecia a comunicação, mas sobretudo a atenção dada ao cultivo no trato e aos diferentes indicativos de educação e distinção fêz com que Souza Lima encontrasse na Turquia de forma inesperada um ambiente que correspondia àquele que conhecia de Paris e que procuraria criar e manter em São Paulo.

"A solicitude do compositor Djemal Rechid para conosco nos sensibilizou totalmente; ofereceu-nos um magnífico almoço em sua residência, assim como o cônsul do Brasil nos proporcionou uma recepção, à noite, também na sua residência, onde tivemos a ocasião de conhecer e estar em contato com a fina flor da cidade, pessoas de posição, professores da universidade, o que nos causou surpresa ao entrarmos em convívio com gente de cultura e de finíssima educação". (op.cit. 129)

(...)

"A temporada em Istambul foi coroada do maior êxito em todos os pontos de vista. Recebidos com todas as honras, em todas as ocasiões, em reuniões familiares, em recepções, frequentando festas, levados para conhecer todos os recantos da cidade, passeios pelo Bósforo, culminando tudo com a regência do concerto sinfônico. Com a orquestra local fiz muitos interessantes ensaios; seus componentes foram todos muito atentos e cordiais às minhas observações. A apresentação foi magnífica e recebida com o máximo entusiasmo por um numerosíssimo público que lotava a sala." (ibidem)

De ciclo de estudos sob a orientação de
Antonio Alexandre Bispo



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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "A França como modêlo e como mediadora de relações musicais na Turquia e no Brasil: Cemal Reşit Rey (1904-1985), Yekta Teksel (*1912) e João de Souza Lima (1898-1982)".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 144/14 (2013:4). http://revista.brasil-europa.eu/144/Cultura-francesa-na-Turquia-e-Souza-Lima.html