Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Konya.Foto A.A.Bispo©


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Fotos A.A.Bispo.
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 144/7 (2013:4)
Professor Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
- Academia Brasil-Europa  -
e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3011




Konya como centro da mística islâmica e Ikonyon dos Atos dos Apóstolos
S. Paulo e S. Barnabas, Mercúrio e Júpiter
em processos cristianizadores em contextos culturais judaicos e helênicos da Ásia Menor

Fundamentos antigos de concepções do Sufismo
considerados a partir da tradição religioso-cultural brasileira I


Turquia no Ano Brasil/Alemanha 2013 da A.B.E. (III)

 

Os brasileiros que hoje em grande número visitam a Turquia, dirigindo-se sobretudo à Capadócia motivados por popular telenovela (Veja http://revista.brasil-europa.eu/144/Turquia-Alemanha-Brasil.html), participam de excursões que, em geral, incluem uma visita à cidade de Konya.


Nesta cidade, uma das maiores do país e sede de importante universidade, tomam conhecimento que se encontram num dos centros religiosos do Islão e mesmo do fundamentalismo religioso e de correntes político-religiosas na Turquia, onde mais do que em outras cidades quase que não se vêem mulheres com cabeça descoberta nas ruas.


A visita a Konya inclui a do Museu Mevlâna, onde pode-se visitar o mausoléu do fundador da Ordem Mevlevi, conhecida como os derviches que dançam, o seu centro (Dergah), os aposentos dos membros da irmandade, assim como objetos e relíquias expostos.


Aqueles visitantes mais familiarizados com correntes esotéricas e do sufismo, onde o nome de Mevlâna ou Rumi é amplamente conhecido, compenetram-se do fato de se encontrarem no local de irradiação e de veneração de de Jalal (Dschalal) ad-Din Muhammad Rumi, o fundador da Ordem Mevlevi.


O observador conscientiza-se que o museu ali instalado, criado por decreto em 1926 e inaugurado em 1927, procurou substituir um centro religioso de extraordinária relevância do antigo império osmano no contexto dos grandes esforços de laicização e modernização ocidentalizante da Turquia.


Konya.Foto A.A.Bispo©

O museu traz à memória o papel da tradição místico-religiosa á época osmana, atuante em influentes meios da sociedade e da intelectualidade e as medidas até mesmo radicais tomadas no sentido de superação desse passado no Estado laico. Constata, porém, que essa tradição mantém-se viva, até mesmo experimentando crescente intensificação.


A entrada à área museal dá-se pelo jardim adjacente. Desse jardim obtém-se a visão mais abrangente da arquitetura do edifício principal, que assim se levanta, com o seu cone coberto de faience turquesa como em meio a roseiras.


Para alcançar a porta que leva ao museu, o visitante deve atravessar esse jardim que, tal como um "horto concluso" conhecido de mosteiros medievais, surge como integrado no conjunto quanto a espaços e sentidos. (Veja artigo nesta edição)


Konya.Foto A.A.Bispo©
O visitante constata que a sua impressão não é arbitrária, pois o jardim encontra-se na sua história estreitamente vinculado àquela do edifício e da ordem, até mesmo precedendo-a e preparando-a. Já existente, o jardim pertencia ao sultão Seljuk que convidou a Mevlâna para vir a Konya - 'Al'A al-Din Kayqubad - e que o ofereceu, em 1231, como local de sepultamento de Baha'ud-Din Walad, o pai do fundador da ordem. O próprio Mevlâna foi ali sepultado ao lado de seu pai em 1273.


A história indica assim os estreitos elos de sentidos entre as imagens do jardim, da rosa e da sepultura daqueles que prepararam e fundaram a ordem, sugerindo assim um florescimento que pressupõe a morte para o mundo. Foi assim sôbre sepulturas que se levantou o mausoléu (Kubbe-i-Hadra) já à época do sucessor de Mevlâna, Hüsamettin Çelebi, terminado em 1274, obra magna do arquiteto Behrettin Tebrizli. O fato da construção ter sido possibilitada pela espôsa do Emir Suleyman Pervana e pelo Emir Alameddin Kayseri indicam mais uma vez o apoio do movimento religioso por círculos mais elevados da sociedade na época, dele próximos por uma sintonia de concepções.


Atravessando a porta principal do museu (Devisan Kapisi), o visitante penetra em pátio pavimentado de mármore, também um jardim fechado, tendo ao centro uma fonte coberta para a lavagem de pés  (ṣadirvan), construída por Yavuz Sultan Selim e, ao fundo, a varanda que protege a fachada com as entradas ao mausoléu.
Konya.Foto A.A.Bispo©


À esquerda e à direita da entrada encontram-se aposentos que hoje são destinados a exposições que apresentam objetos históricos e artísticos da irmandade e elucidam temáticamente vários aspectos da vida religiosa dos adeptos.


Essas câmaras constituiam em grande parte originalmente as 17 celas dos dervishes, construídas à época de Murad III. À direita, ao fundo, vê-se construção de maiores dimensões que servia de cozinha para a comunidade dos dervishes (Matbah). O visitante constatará, após visitar o mausoléu, que os grandes espaços da cozinha também serviam de educação aos dervishes, que ali aprendiam a prática ritual, meditativa ou mística: Sema. Ao lado do edifício do mausoléu, também à direita daquele que o defronta, levanta-se o túmulo de Hurrem Pasha, construído sob Süleyman, o Magnífico.


Reconscientização da tradição islâmica e o historismo ocidental do século XIX


Já aqui o observador constata que o conjunto arquitetônico apresenta sinais de diferentes épocas, o que testemunha a continuidade da ordem, de suas concepções e práticas através dos séculos. Surpreende-se, sobretudo, ao registrar que muito da ornamentação remonta a meados do século XIX, manifestando uma reconscientização de tradições de remotas proveniências de meados daquele século até a Primeira Guerra Mundial.


O visitante constata uma similaridade com situações que conhece de contextos cristãos da época do Romantismo e do Historismo revalorizadores da Idade Média, compenetrando-se que se encontra aqui em monumento marcado pela idealização do passado e de sua revitalização com conotações romântico-sentimentais.


O confronto com os diferentes estilos que se combinam e interagem em edifício de secular história traz à consciência que este não deve ser lido como obra terminada e inalterada de uma Idade Média oriental, mas sim de um testemunho de uma tradição de espiritualidade inserida em processos histórico-culturais abrangentes e que relacionam o Oriente e o Ocidente..


Vem à mente do observador a fascinação pelo Orientalismo na arquitetura e na arte européia do Romantismo, a sua recepção no próprio Oriente em singular "reorientalização do Oriente" de época marcada pelo Colonialismo levantando, porém, a questão se esse fenômeno não teria sido até hoje por demais superficialmente considerado sob o signo de um exotismo estético, sem o adequado estudo de suas dimensões mais profundas que se expressam no mausoléu de Mevlâna.


O observador ocidental compenetra-se que para além das manifestas expressões do Orientalismo artístico-arquitetônico houve no Ocidente a recepção de correntes de pensamento do passado oriental não apenas na filosofia como também e sobretudo em círculos e movimentos esotéricos, com consequências até o presente.


O mausoléu de Mevlâna traz à consciência a necessidade de uma consideração mais ampla dessa "história velada", não apenas como um fenômeno cultural europeu, mas no âmbito do estudo de processos culturais em dimensões globais. Somente essa perspectiva ampla pode permitir o reconhecimento de elos entre desenvolvimentos culturais em diversos contextos, de influências recíprocas e de suas implicações e consequências, pressuposto para a consideração diferenciada do passado e de uma atualidade marcada por complexas tensões, contradições e paradoxias.


Assim como conhece do Orientalismo ocidental do século XIX, com as suas referências historistas à época dos Descobrimentos e, assim, de elos do Historismo com a história as Américas, o visitante ocidental, surpreende-se, ao entrar no edifício do mausoléu através do Portal da Tumba (Türbe Kapisi), ao deparar-se a data 1492 de um texto persa do mullah Abdurrahman Cami em espaço marcado por duas portas ornamentadas com motivos Seljuk. Passando à sala Tilavet (Tilavet Odasi), é recebido com arte caligráfica osmana de diferentes estilos e épocas e que indicam que, após o encontro com a lei do texto persa da sala anterior, dava-se a recitação e o canto do Corão, continuamente praticados até a transformação do edifício em museu no século XX.


Dessa sala de recitação e canto passa-se ao mausoléu propriamente dito através de uma porta de prata da passagem do século XVI ao XVII, obra criada pelo filho de Mehmed III. Se já não observara anteriormente, o visitante toma aqui consciência de não se encontrar apenas num museu, mas em espaço que continua a manter o seu sentido religioso. Em grande número, fiéis em atitude de respeito e veneração visitam os seis sarcófagos com os restos de três dos dervishes (Horasan erler) que acompanharam Mevlâna e sua família de Belkh e, à direita, sobre uma plataforma, os cenotáfios de descendentes da família Mevlâna e de alguns altos membros da ordem.


O centro da atenção dos visitantes - e sobretudo dos fiéis na sua peregrinação - é o sarcófago de Mevlâna localizado sob a cúpula verde (KJibab'ulaktab), do século XII, sendo que a atitude de respeito que demonstra a permanência do sentido religioso do museu é estritamente mantida e controlada pelos responsáveis pela sua segurança.


Também aqui constata-se o extraordinário significado da revitalização da Ordem em fins do século XIX, uma vez que o sarcófago, assim como outras tumbas e objetos, são recobertos com brocados ornamentados a ouro com versos do Corão doados pelo sultão Badul Hamid II, em 1894.


Ao lado da tumba de Mevlâna encontram-se outras que são objeto de veneração, sobretudo aquelas do seu pai e a do seu filho.



Para o visitante interessado em questões relacionadas com a música e a dança, a área do edifício que maior atenção desperta é aquela da sala do ritual (Semahane), a expressão que mais marca a cultura da Ordem e que é a mais conhecida no Ocidente. O fato de localizar-se ao lado da sepultura do seu fundador indica os estreitos elos entre a prática dançante dos derviches e a cultura mortuária com as suas implícitas concepções figuradas da morte. Construída à época de Süleyman, o Magnífico, essa sala tem como espaço adjacente uma pequena mesquita (Masjid).


É nesses espaços que o visitante encontra a destinação museal mais explícita do edifício. Em vitrines, neles encontram-se expostos instrumentos musicais utilizados na dança ritual, tais como os instrumentos de corda kemence e keman, assim como o rebab, o címbalo halile, os instrumentos de percussão daire e kudúm, e sobretudo a flauta ney tocada pelo próprio Mevlâna. Expostos encontram-se também antigos códices com regras de oração Kirşehir, assim como vestimentas dos dervisches. Entre os objetos mais valiosos do museu encontra-se uma coleção de poesia lírica de 1366 e dois livros de poemas (Masnavis) escritos por Mevlâna (1278 e 1371).


Na área da mesquita, que tem ao centro o relicário com um fio da barba do Profeta, vitrines laterais expõem preciosos exemplares de Corão manuscritos de diferentes épocas e profusamente ilustrados.



Descobrimento de uma cultura velada por parte de visitantes ocidentais


As rápidas impressões ganhas  por  brasileiros em breves visitas a Konya trazem à luz uma face em geral pouco conhecida da cultura islâmica e para muitos a revelação de uma corrente fascinante no papel concedido à música e à dança na prática mística e que contradiz imagens atuais do mundo muçulmano.


Que esse local é mais do que um centro de informações histórico-culturais e de  museu com relitos de um passado encerrado, isso torna-se cada vez mais evidente no decorrer da visita. A grande quantidade de fiéis que se dirigem em atitude de veneração ao mausoléu do fundador da ordem, de sarcófagos de membros da sua família e da ordem ou à contemplação de um fio da barba do Profeta e a sua atitude respeitosa para com os objetos expostos, demonstradora de avidez de conhecimentos, testemunham não só a crescente força da religião no país oficialmente laico como também o interesse pela tradição meditativa ou mística da Ordem.


O grande número de fiéis que hoje percorrem os espaços do edifício com o sentido de venerar o fundador da Ordem e os seus antigos membros testemunham a permanência do conteúdo religioso do local apesar da sua transformação em museu. A crescente procura do mausoléu por fiéis pode ser vista como indicativo de uma intensificação da religião na sociedade e nas instituições do Estado laico, causa da preocupação de círculos de intelectuais, artistas e universitários.


O visitante ocidental pode ser tomado assim por sentimentos contraditórios, antepondo-se àquele da admiração por um patrimônio religioso-cultural de antiga tradição e profundos sentidos aquele de compreensão pela preocupação perante riscos decorrentes de uma intensificação religiosa na sociedade para valores de liberdade e direitos civís alcançados com tantos esforços e que constituem base para uma maior integração da Turquia na Europa.


Percepções e sensações contraditórias do observador ocidental em Konya


Perante esse complexo de sentidos e implicações contraditórias, o observador compenetra-se da necessidade de reflexões mais aprofundadas tanto com referência à tradição em si como às próprias imagens e posicionamentos.


Por um lado constata que o local é um centro de peregrinação de muçulmanos piedosos, daqueles que passam a redescobrir a religião como fator condutor de vida e importante núcleo de irradiação de tendências fundamentalistas, anti-modernistas e anti-laicizantes.


Por outro lado, registra-se que o local é procurado por adeptos e entusiastas do Sufismo e de correntes esotéricas de todas as partes do mundo e que vêem na tradição da Ordem uma possibilidade única de diálogo interreligioso, de aproximação e interação de diferentes religiões, compreendendo a tradição espiritual da experiência de uma união mística com o UM como superior ou mais abrangente do que as religiões nas suas diferentes referenciações históricas.


A potencialidade de religiosidade extremada representada pela Ordem é documentada historicamente, uma vez que a sua abolição e a repressão de seu papel em círculos influentes da sociedade foram vistas como necessárias para a transformação revolucionária da Turquia sob Atatürk. Essa característica radicalmente islâmica da tradição fundamenta-se na absoluta sujeição à vontade divina exigida de princípio pela doutrina e à Lei como primeiro passo na prática ritual da dança e que é relacionada com a morte para o mundo e o morrer por si antes de ser morto.


O fato da doutrina e da prática salientar antes o papel do amor e do amante perante o Amado, assim como o do amor ao próximo e à tolerância, contribuiu, no passado, que essa sujeição primordial à lei não fosse adequadamente considerada pelos entusiastas ocidentais do século XIX, levando a uma visão idealizada da Ordem e da sua prática de dança, criando uma imagem de uma corrente islâmica marcada por conceitos e normas menos severas, à qual a prática da dança, da géstica e o uso de instrumentos musicais contribuiram.


Justamente esse emprêgo da música, da dança e géstica é criticada por eruditos muçulmanos por não corresponder a prescrições do Corão, o que levou à repressão da prática em vários países, o que parece ser o caso no Irão e no Afganistão.


Tem-se, assim, a situação triplamente incoerente de ser a tradição por alguns criticada como demasiadamente rígida pelo predomínio concedido à lei, por outros criticada criticada como heterodoxa, não-islâmica ou relito pré-islâmico a ser combatido por não corresponder à palavra escrita, e por fim, sobretudo pelos ocidentais, adeptos do Sufismo e correntes esotéricas, por ser supostamente uma expressão de religiosidade tolerante, apta à intercomunicação religiosa, herdeira e promissora de desenvolvimentos liberais do Islão.



Necessidade de diferenciações sob a perspectiva dos estudos eurobrasileiros


É essa última interpretação que merece maior atenção e exige maior cuidado diferenciador sob a perspectiva dos estudos eurobrasileiros. O Brasil recebeu correntes teosóficas, antroposóficas e outras tendências de natureza esotérica que foram influenciadas em diferentes contextos e sob diversos aspectos pela cultura oriental, em particular do antigo mundo árabe e persa. Esses movimentos, surgidos à época do entusiasmo idealizante do século XIX, viram no patrimônio de conhecimentos do Oriente uma oportunidade para a renovação profunda do Ocidente a partir dos seus fundamentos.


Essa recepção idealizada da cultura oriental explica o fato desses movimentos apresentarem-se em auto-consciência renovadora, associados a tendências políticas  consideradas como progressistas.


Essa recepção foi marcada por intuitos de superação de um mundo considerado decadente do século XIX, não deixou porém de ser inserida em processos culturais desencadeados à época do Historismo romântico.


Considerando-se que várias dessas correntes foram transplantadas para o Brasil, ampliando-se no seu raio de ação através das décadas e ainda vigentes no presente, levanta-se a questão da necessária diferenciação do seu vir-a-ser na Europa para que mal-entendidos derivados de interpretações idealizadas não se mantenham.


Os riscos da manutenção de entendimento inadequado das expressões vêm à consciência no exemplo da tradição dos dervisches dançantes e, em generalização, da dança ou do girar na prática meditativa á procura da união mística.


A atenção dirigida inapropriadamente à importância dada à música, ao movimento e aos gestos pode dar origem a uma compreensão dessas práticas antes como expressões lúdicas, que surgem como exemplarmente diferentes de uma acepção de culto formal e institucionalizado.


O estudo da prática dos dervische abre os olhos, porém, ao fato de que o girar pode pressupor como primeiro passo a submissão absoluta à lei, com todas as suas consequências para a compreensão do mundo e do homem, assim como á da sua organização no Estado laico e aos direitos humanos.


Há, assim, um grande perigo de mal-entendidos na interpretação de expressões religioso-culturais dessa natureza que ultrapassam, nas suas consequências, a esfera mais específica das áreas disciplinares voltadas a seu estudo.


Necessidade de estudos de fundamentos antigos de práticas místicas


O tratamento das questões que aqui se levantam dirige a atenção ao significado do estudos do antigo Gnosticismo e de correntes neo-gnósticas na análise de processos culturais.


A crítica de oponentes islâmicos à tradição dos dervisches reside justamente no fato de nela verem a persistência de práticas e concepções pré-islâmicas, conhecidas de fragmentos do antigo Gnosticismo.


Mesmo admitindo esses pressupostos pré-islâmicos, os seus defensores argumentam que foi justamente a sua islamização que permitiu a compleição de antigas tradições, e essa disse respeito justamente na adoção da lei como primeiro passo no ato ascensional.


Esse argumento apenas pode ser compreendido supondo-se que, em princípio, ela já existia na prática do girar de antiga tradição do Gnosticismo, apenas tendo passado a ser referenciada segundo as normas do Direito muçulmano.


Esse reconhecimento indica a potencialidade de resignificações de um dos elementos de um edifício de concepções através de diferentes referenciações do princípio da submissão á lei.


O objetivo de análises culturais a partir de um ponto de vista distanciado seria o de reconhecer os fundamentos da compreensão de lei no edifício de concepções, relativando assim as suas referenciações segundo diferentes tradições religiosas. Esse intento leva à consideração das bases filosófico-naturais de leis na visão do mundo e do homem nas suas relações com os elementos, os ciclos do ano e com as constelações.


Atenção dirigida à antiga Ikonion citada nos Atos dos Apóstolos (14,1-5; 21)


No quadro assim esboçado, o interesse do visitante de Konya dirige-se à fase de origem da Ordem e os seus pressupostos.


A região foi conquistada pelos Seldschukos nos século XI e XII, fundando o grupo dos Rum-Seldschukos um sultanato na Anatólia cuja capital tornou-se a antiga cidade de Ikonion.


Segundo a tradição histórica, esses conquistadores teriam levado a um florescimento do território, introduzindo ou aperfeiçoando as técnicas de plantação de árvores frutíferas e de verduras, para o qual construiram sistemas de de irrigação. Esse desenvolvimento levou a uma intensificação do comércio, readquirindo a cidade o seu antigo significado de posto de intercâmbio de mercadorias entre o Egito, a Mesopotâmia, o Ocidente e a Rússia. Aos Rum-Seldschukos seguiram-se os Karamanidas no início do século XIV, que ali predomiaram até a vitória dos osmanos em 1442, uma soberania que manteve-se até fins da Primeira Guerra Mundial.


Sob o seu antigo nome Ikonion, Konya é mencionada de forma relativamente pormenorizada nos Atos dos Apóstolos, que oferecem um testemunho do papel relevante desempenhado pela cidade na história da cristianização da antiga cultura.


Tratando da pregação do Evangelho em Iconio, Listra e Derbe, menciona-se no texto bíblico o sucesso e a perseguição do apóstolo e o retorno a Antioquia. Nele relata-se que em Iconio Paulo e Barnabas entraram juntos na sinagoga dos judeus e falaram de tal modo que uma grande multidão, não só de judeus, mas de gregos creram. Detiveram-se por muito tempo, falando acerca do Senhor, dando também testemunhos através de sinais e prodígios. Os judeus incrédulos, porém incitarem e irritaram os ânimos dos gentios. Deu-se, assim, uma divisão na população da cidade, uns pelos judeus, outros pelos apóstolos, o que levou a um motim tanto dos judeus como dos não-judeus. Tomando conhecimento dos riscos, fugiram para Listra e Derbe, cidades da Licaonia, e para a província circunvizinha para nelas pregarem o Evangelho. As cidades então pertencentes à Província Licaonia remontavam no período grego à Frígia. O território, ao redor do ano 25 DC passou a pertencer em parte à Galácia, Capadócia e as regiões Pisidia ou Pamfília.


Foi na cidade de Listra que uma cura praticada por Paulo levou a que o povo, em lingua licaônica, neles vissem deuses que ter-se-iam feito semelhantes aos homens. E chamavam Júpiter a Barnabas, e Mercúrio a Paulo, porque este era o que falava, chegando até mesmo o sacerdote de Júpiter trazido para a entrada da porta touros e grinaldas queria o povo em sua honra sacrificassem. (Atos 14, 12-18). Judeus de Iconio (e de Antioquia), convenceram a multidão apedrejaram a Paulo e o arrastaram para fora da cidade. (Atos 14, 19). Após ter anunciado o evangelho em Derbe, Paulo e Barnabas retornaram a Listra, Iconio e Antioquia.


O fato de não-judeus de cultura helênica terem visto em Paulo e Barnabas encarnações de Hermes/Mercúrio e Zeus/Jupiter vêm merecendo especial atenção de processos cristianizadores da antiga cultura. Essa menção dos Atos serviu até mesmo como moto condutor na análise de fundamentos da cultura cristã e de sua expansão no mundo. (A.A.Bispo, Grundlagen Christlicher Musikkultur in der Aussereuropäischen Welt der Neuzeit: Der Raum des früheren portugiesischen Patronatsrechts I, Musices Aptatio 1987/88, Roma/Colonia 1989)


Essa identificação é até mesmo justificada no texto bíblico, uma vez que a interpretação de Paulo segundo o paradigma de Hermes/Mercúrio é explicada pelo fato de ser êle aquele que usava da palavra, uma das características - entre muitas outras - das concepções e imagens com êle associadas com essa divindade sempre em movimento, andando pelos caminhos.


A interpretação de Barnabas como Zeus/Júpiter merece porém especial atenção, uma vez que aqui se trata da divindade máxima da cultura religiosa helênica, associada com o fogo celestial. Esse papel primordial de Zeus/Jupiter na tradição helênica não corresponde àquele que, na tradição cristã, cabe a Barnabas em relação a Paulo, que surge antes como um preparador da ação do apóstolo. Essa discrepância sugere que, ainda que interpretados segundo modêlos de divindades gregas, os habitantes de cultura helênica da Ásia Menor teriam constatado um deslocamento de pêsos no edifício de concepções e imagens a favor de Hermes/Mercúrio na pregação desses apóstolos judeus.


Essa menção dos Atos pode assim dirigir a atenção a um momento chave no processo de transformação cultural cristianizadora: o da orientação segundo o Logos - ou o Hermes/Mercúrio da cultura grega - em lugar do homem imbuído do fogo espiritual de Zeus/Júpiter, o que teria sido menos difícil aos judeus do que aos gregos.



De ciclo de estudos sob a orientação de
Antonio Alexandre Bispo




Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Konya como centro da mística islâmica e Ikonyon dos Atos dos Apóstolos. S. Paulo e S. Barnabas, Mercúrio e Júpiter em processos cristianizadores em contextos culturais judaicos e helênicos da Ásia Menor".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 144/7 (2013:4). http://revista.brasil-europa.eu/144/Konya-e-Ikonyon.html