Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________

Foto A.A.Bispo©


Foto A.A.Bispo©


Foto A.A.Bispo©


Foto A.A.Bispo©


Foto A.A.Bispo©


Fotos A.A.Bispo.
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 144/16 (2013:4)
Professor Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia e Conselho Científico
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
- Academia Brasil-Europa  -
e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3020




Turcos no mundo de língua alemã e alemães na Turquia
após a Reforma de Mustafa Kemal Atatürk (1881-1938) nas suas relações com o Brasil
Necil Kâzim Akses (1908-1999)
e as "8 Peças Infantís sobre Melodias Turcas" de Martin Braunwieser (1901-1991)

Relações turco-européias em processos histórico-musicais globais em referenciação brasileira IV


Turquia no Ano Brasil/Alemanha 2013 da A.B.E. (III)

 
Arquivo A.B.E.
O fato de um compositor brasileiro de origem austríaca ter composto em S. Paulo uma série de peças turcas infantís sobre melodias turcas para piano a quatro mãos - também com título em alemão - passou por décadas despercebido de pesquisadores musicais ou desconsiderado como tendo apenas significado de insólita curiosidade. (8 Peças Infantis sobre Melodias Turcas/8 Stuecke Fuer Kinder nach Tuerkischen Weisen/Huit Pièces Enfantines sur des Melodies Turques, São Paulo: L.G. Miranda 138)

A sua redescoberta e revalorização deram-se no decorrer dos trabalhos realizados desde meados da década de 70 de residentes brasileiros na Alemanha que, encontrando-se sob muitos aspectos em similar situação com migrantes de outros países, procuraram caminhos para aproximações culturais e entendimentos.

A composição foi executada em concertos e comentada no decorrer dos trabalhos do ISMPS e da ABE. A sua análise e consideração mais profunda deram-se em seminários de Etnomusicologia desenvolvidos com a participação ou sob a direção do editor desta revista.

Em monografia escrita em homenagem aos 90 anos de Martin Braunwieser, a composição pôde ser considerada no contexto geral da sua vida e sua obra, dando-se particular atenção a seus pressupostos culturais. (A.A.Bispo, Martin Braunwieser: Spiritualität, Neue Sachlichkeit, Klassischer Humanismus und die Musiktraditionen des Orients und Okzidents in Pädagogik und Künstlerischem Schaffen - Ein Beitrag zum Österreichischen und Deutschen Einfluß auf die Musik Brasiliens des 20. Jahrhunderts, Köln: Luthe 1991)

Estes se encontram no interesse pela cultura oriental no círculo do Mozarteum de fins da Primeira Guerra e em círculos teosóficos e antroposóficos, assim como no fato do compositor ter atuado na Grécia e ter-se dedicado a estudos da música turca.

Foto A.A.Bispo©

Uma particular atenção foi dada a um de seus mentores, o compositor Felix Petyrek (1892-1951), professor do Mozarteum e diretor da instituição de Atenas onde atuaram o compositor e a sua mulher, a pianista Tatiana Braunwieser.

Foto A.A.Bispo©
A atualidade de muitas das questões que se levantam ao considerar-se essas peças de Braunwieser foi salientada em conferência/concerto realizada no Centro Cultural São Paulo no âmbito de colóquio de estudos interculturais pelos 450 anos de fundação de São Paulo.

Nessa ocasião, lembrou-se da necessidade de estudos culturais mais profundos de antinomias fundamentadas na própria tradição cultural para o esclarecimento de tensões entre países muçulmanos e aqueles de tradição cristã que tanto marcam o presente.

A distância relativadora do passado e a visão lúdica da criação e do ensino musical

O nome de Petyrek abre perspectivas para a análise da obra de Braunwieser, chamando a atenção a um aspecto pouco considerado: o da tendência ao Grotesco e o do espírito de paródia na criação artística. Esses conceitos e seu significado para a música do século XX puderam ser tratados em conferência realizada no Mozarteum de Salzburg, em 1991.

Essa característica da obra de Petyrek tem sido considerada em geral sob o aspecto da virtuosidade com que o compositor trabalhou com diferentes estilos, o que indica uma distância relativadora perante formas de expressões históricas e, assim, um aspecto relevante da modernidade de sua linguagem.

Essa tendência relativadora é, porém, mais ampla do que aquela que trata de expressões histórico-musicais ocidentais com a liberdade possibilitada por uma distância que revela uma superação do historicismo do século XIX e que inclui momentos de ironia e sarcasmo, assim como manifestações de uma atitude lúdica ambivalente entre o sério e o jocoso.

O Grotesco, como conhecido de expressões do passado medieval, renascentista e analisado na linguagem visual de folguedos e danças da tradição popular, sobretudo daquela viva no Brasil, é mais do que uma expressão estética de determinadas épocas da história das artes, sendo fundamentado em visão do mundo e do homem de remotas origens.

Consequentemente, a discussão do Grotesco que vem determinando os estudos culturais eurobrasileiros leva à análise de mecanismos intrínsecos do sistema de concepções e imagens do edifício cultural. Tem-se salientado, assim, em diferentes ocasiões desde a década de 70, que é a tensão entre o Velho e o Novo, intrínseca ao edifício da visão do mundo geocêntrica e antropocêntrica, e que tem a sua expressão viva sobretudo na tradição cristã, que justifica o Grotesco e as suas expressões em diferentes contextos épocas.


A visão do Velho segundo o Novo e a atenção voltada à criança e ao jovem

Trata-se aqui de uma questão de perspectivação do homem e da realidade a partir de um ponto de observação do Novo, o que faz que o superado, o Velho, tenha as suas características e formas de expressão vistas à distância daquele que o superou e que não deve recair, surgindo como ridículas e ridicularizantes, motivo de riso, ironia e sarcasmo apesar de toda a sua prepotência ou expressões ameaçadoras.

É uma linguagem visual, assim, que implica em concepções de liberdade, do homem livre relativamente àquele sujeito ou subjugado a forças resultantes de uma orientação à matéria - na tradição cristã, ao homem carnal, não espiritual.

É essa tensão entre o Velho e o Novo como fundamento de expressões do Grotesco na cultura, mais evidentes na linguagem visual de tradições populares que levou à análise mais aprofundada de diferentes expressões culturais ibéricas e brasileiras, como aquelas relativas ao Velho e à Velha nas suas diferentes formas de expressão, entre outras na assim-chamada Dança de S. Gonçalo, como tratado pioneiramente no Simpósio Internacional de Música Sacra e Cultura Brasileira realizado em São Paulo, em 1981.

Visão à distância relativadora a partir de posicionamento oriental

O estudo da obra de Petyrek - e de Braunwieser - , indica, porém, que a discussão a respeito do Grotesco e de uma atitude lúdica de distanciamento perante o Velho necessita ser conduzida de forma mais ampla do que aquela que se impõe no estudo de tradições culturais do repertório de folguedos do ciclo do ano de festas cristão.

Não inserindo-se ou mesmo afastando-se dessa tradição, aspectos denotadoras de uma atitude marcada pelo distanciamento em obras referenciadas segundo a cultura oriental não podem ser elucidadas como sendo expressões de uma visão que inclui as suas expressões culturais na categoria do Velho como nas representações p.e. de mouros e turcos em folguedos cristãos.

O posicionamento espiritualista - teosófico e antroposófico - dos compositores indica antes assimilações ou tentativas de inserções em edifícios culturais que também são marcados por mecanismos similares.

A tarefa das análises deveria ser, assim, a de analisar similaridades e diferenças nos diferentes contextos como pressuposto  para o estudo dos processos culturais em que os compositores se inseriram.

Necil Kâzim Akses e elos da Turquia com a Europa Central de língua alemã

No contexto da atual atenção dedicada à Turquia no âmbito das relações Alemanha/Brasil do corrente ano, cumpre trazer à tona outras reflexões que a composição de Martin Braunwieser motiva.

A atenção é aqui dirigida aos grandes centros musicais do mundo de língua alemã para compositores turcos na primeira metade do século XX e que possibilitou contatos e aproximações com músicos que estudaram e atuaram nas respectivas instituições e que, no caso de Tatiana Kipmann e Martin Braunwieser, trouxeram as experiências ali ganhas para o Brasil.

Os elos musicais entre a Alemanha e a Turquia tinham sido estreitos na época anterior à Primeira Guerra, bastando lembrar que o professor de música da Escola Alemã de Constantinopla, Paul Lange (1857-1919), tornou-se mestre-capela dos sultões. (Veja http://revista.brasil-europa.eu/144/Hans-Lange-e-Guiomar-Novaes.html) No período posterior à Guerra, marcada pela derrota da Áustria, Alemanha e do Império Osmano, seguindo-se às reformas de Atatürk, esses elos assumiram novas características.

Os vínculos entre a Turquia e os grandes centros musicais da Europa Central de língua alemã manifestam-se na vida e na atuação do compositor Necil Kâzim Akses. Este músico é considerado como um dos integrantes do "Grupo dos Cinco" turco, ou seja, da geração dos primeiros compositores profissionais da Turquia que procuraram coadunar a tradição musical turca com o desenvolvimento estético-técnico da música ocidental do século XX. Como a designação indica na sua sugestão ao anterior "Grupo dos Cinco" russo, referencia-se a uma concepção de música nacional - com os meios de expressão da época - e que deve ser considerada sob o pano de fundo das concepções da Turquia como estado reformado por Atatürk.

A biografia de Necil Kâzim Akses indica que a sua formação ainda foi marcada por uma situação cultural determinada pela predominância alemã no ensino e na vida musical européia do Império Osmano e cujas consequências se fizeram sentir mesmo após a expulsão de austríacos e alemães com a derrota na Primeira Guerra.

O seu pai era diretor do serviço de comunicação do Ministério da Guerra e a sua mãe professora de literatura e diretora do Liceu Kandilli, a segunda escola para meninas na Turquia, que contou também com a ação de uma administradora vinda da Alemanha (1916-1918).

Necil Kâzim Akses iniciou o aprendizado de violino com sete anos e teve a sua formação na escola de meninos de Istambul. Ao mesmo tempo, estudou no Conservatório da Cidade de Istambul em Darülhan, tendo como professor de Harmonia Cemal Reşit Rey (1904-1985), tendo tido também aulas particulares de violoncelo.

Após terminar os estudos superiores, dirigiu-se com seus próprios recursos à Academia de Música e Arte Dramática de Viena, onde estudou violoncelo e, sobretudo, composição com Joseph Marx (1882-1962).

Relações político-culturais sob Atatürk no ensino e na criação musical

Este seu professor, nomeado diretor da Academia em 1922 e reitor da Escola Superior de Música de 1924 a 1927, seria uma das principais pontes entre os países centro-europeus de língua alemã e a Turquia à época de Atatürk. Este contratou-o em 1932, como primeiro conselheiro no desenvolvimento renovador do Conservatório Musical de Ancara e na reorganizacão do ensino musical na Turquia.

A atuação de Marx preparou a orientação do ambiente musical e do ensino na capital da Turquia para a posterior ida de importantes músicos alemães que saíram da Alemanha nazista em meados da década de 30.

Tendo vindo com recursos próprios à Europa Central, Necil Kâzim Akses pôde dar continuidade a seus estudos com uma bolsa do govêrno turco em Viena, estudando também composição no Conservatório de Praga com Josef Suk (1882-1962) e música microtonal com Alois Haba (1893-1973).

Após o término de estudos, retornou em 1934 à Turquia, passando a lecionar na Escola de Formação de Professores de Música em Ancara, tornando-se representante da direção da escola.

Assim como inseriu-se no campo de atuação do seu professor Joseph Marx, também inseriu-se naquele dos compositores alemães que encontraram na capital da Turquia um novo campo
de atuação à distancia da Alemanha nacionalsocialista. Assim, em 1935, tornou-se assistente de Paul Hindemith (1895-1963), convidado pelo Ministério de Educação da Turquia para a direção o Conservatório de Ancara, e, a seguir, professor de composição nessa instituição. Nesse ano, juntamente com Bela Bartok (1881-1945), Adnan Saygun e Ulvi Cemal Erkin (1906-1972) participou de pesquisas folclóricas em Adana. A pedido de Atatürk, Necil Kâzim Akses compôs logo após o seu retorno à Turquia a ópera Bayönder.

Paralelos e relações entre o desenvolvimento turco e o brasileiro

Martin Braunwieser conheceu e estudo a obra de Necil Kâzim Akses. Possuiu e analisou as cinco peças turcas para piano do compositor, publicadas em 1930 (Fünf Türkische Klavierstücke/Cinq Pièces Turques Pour Piano, Universal 9625) à época em êle próprio compôs as suas peças infantís turcas para piano a quatro mãos. Também estas foram, como as do compositor turco, publicadas com título em alemão e em francês.

Os elos de Martin Braunwieser com a música turca eram, porém, mais antigos, tendo sua a sua principal fonte de estudos da música oriental em melodias publicadas em Istambul pela passagem do século, em particular Péchrév de Lahir Bousélik.

Martin Braunwieser não apenas conhecia a obra de Necil Kâzim Akses, mas sim também de todo o contexto político-cultural em que se inseria e do qual também participou na sua formação centro-européia e na sua atuação na Grécia. Não podia, assim, deixar de constatar singulares paralelos entre desenvolvimentos no Brasil e na Turquia nos anos vinte e trinta e que se manifestavam em intuitos reformadores de repertórios e do ensino musical, por êle vivenciados no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo e que via em paralelos àqueles do Conservatório de Ancara sob Atatürk.

Sobretudo os esforços de pesquisa e valorização de tradições populares - que culminaria em São Paulo com a Missão de Pesquisas Folclóricas ao Nordeste - surgia para êle necessariamente à luz de um movimento mais amplo de conscientização pelas tradições populares que se manifestava nas atividades de pesquisas e nos intuitos criadores da Turquia como Estado laico.

De ciclo de estudos sob a orientação de
Antonio Alexandre Bispo



Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Turcos no mundo de língua alemã e alemães na Turquia após a Reforma de Mustafa Kemal Atatürk (1881-1938). Necil Kâzim Akses (1908-1999) e as "Melodias Turcas" de Martin Braunwieser (1901-1991)".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 144/16 (2013:4). http://revista.brasil-europa.eu/144/Melodias-Turcas-de-Braunwieser.html