Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Antalya.Foto A.A.Bispo©


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Fotos A.A.Bispo.
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 144/13 (2013:4)
Professor Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
- Academia Brasil-Europa  -
e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3017




Música de banda e ópera italiana na europeização da Turquia no século XIX
em paralelos com o Brasil - Giuseppe Donizetti Paşa (1788-1856)

Relações turco-européias em processos histórico-musicais globais em referenciação brasileira II


Comemorações do Bicentenário de Giuseppe Verdi (1813-1901) no Festival de Aspendos. Turquia no Ano Brasil/Alemanha 2013 da A.B.E. (III)

 

Aqueles mais interessados em música entre os muitos brasileiros que atualmente fazem excursões à Turquia (Veja http://revista.brasil-europa.eu/144/Turquia-Alemanha-Brasil.html) podem surpreender-se ao constatar a intensidade da vida musical de cunho ocidental nas principais cidades do país.

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Com orquestras, grupos estatais de ópera e ballet, com programas e artistas convidados do Exterior, o movimento artístico-musical ocidental na Turquia apresenta-se com características similares àquele de grandes centros da vida musical internacional.

Alguns dos eventos musicais adquirem projeção que ultrapassam as fronteiras do país, concedendo à Turquia destacada presença no panorama mundial. Transformaram-se em uma das razões de procura do país por turistas com interesses musicais e culturais, em atrações de cidades e regiões do litoral frequentadas por grande número de estrangeiros e que adquiriram feições cosmopolitas.

Este é o caso do internacionalmente renomado Festival de Ópera e Ballet que desde 1994 realiza-se no antigo teatro de Aspendos, não distante da cidade de Antalya, um dos centros urbanos de maior desenvolvimento e, ao mesmo tempo, mais ocidentalizados do país.

O antigo anfiteatro romano, de dois mil anos, situado em posição paisagística privilegiada, com vista ao Mediterrâneo, é um dos principais monumentos da arquitetura de teatros pela sua extraordinária acústica.

Em 2013, a vigésima edição do Festival de Ópera e Ballet de Aspendos, integrando-se nas programações internacionais dedicadas ao bicentenário de Giuseppe Verdi (1813-1901), destacou-se pela presença de um artista latinoamericano como regente, a do tenor argentino José Cura.

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Ainda que renome internacional como cantor, José Cura atuou nessa função como músico de ampla formação - entre os seus professores conta-se Carlos Castro (1943-2010) - e com experiência em regência adquirida desde 1983 como regente assistente do coro universitário da Escola de Artes da Universidade de Rosário. A sua preeminência em ano do Bicentenário de Verdi justifica-se pelo fato de, dedicando-se à arte lírica, transferiu-se para a Itália em 1991, apresentando-se já em 1992 em Verona.

A sua carreira internacional levou-o a várias centros musicais das Américas e da Europa, salientando-se a sua participação no Festival Baalbeck no Líbano, em 2000, evento que, como os festivas europeus em antigos anfiteatros, realiza-se numa das áreas arqueológicas de maior significado histórico-cultural e simbólico do Oriente, podendo ser, assim, comparado no seu sentido cultural com o de Aspendos.

Líbano era a terra dos antepassados de José Cura: Chalita el-Khoury (*1874) e sua bisavó, Theresa bou-Saada (*1881), respectivamente das aldeias de Knet e Zghorta, emigraram para a Argentina em 1900, onde latinizaram o nome Khoury para Cura.

O programa do Festival de Ópera e Ballet de Aspendos foi aberto com um concerto do Coro e Orquestra da Ópera e Ballet estatal de Antalya, seguindo-se uma première mundial de título "Aspendos: o amor de séculos". Ponto alto da programação do ano Verdi apresentou-se Aida pelo Teatro Nacional de Brno, República Tcheca, e a Orquestra da Ópera e Ballet Estatal de Ankara, sendo esta companhia da capital turca responsável pela produção do Rigoletto. A programação, feita para vir de encontro às preferências de público mais amplo, incluiu, como ponto alto sob a perspectiva do Ballet, a apresentação do "Lago dos Cisnes" de Tschaikowsky (1840-1893) pela Ópera e Ballet Estatal de Istambul.

Correspondendo à presença latina do regente como principal personalidade artística do evento, o Festival encerrou-se significativamente com a apresentação de Carmen de Georges Bizet (1838-1875) em realização a Ópera e Ballet Estatal de Mersin.

Mais do que marcar a presença ibérica no antigo teatro de Aspendos, essa obra traz à consciência a recepção da Espanha - e do mundo hispanoamericano (Veja ) - na França do século XIX e o significado dos estreitos elos da vida musical ocidental turca com a França. O mundo cultural ítalo, ibérico e iberoamericano apresenta-se nessa vida musical pelo caminho indireto a partir de sua recepção francesa.

O Festival de Ópera e Ballet de Aspendos contribui de forma relevante à imagem da Turquia como um país-ponte entre o Oriente e o Ocidente e que justifica os seus anelos políticos de integração na Europa.

Realizando- se no anfiteatro romano de Aspendos, estabelece também uma ponte entre épocas históricas, trazendo à consciência a antiguidade de relações culturais, da presença e força da cultura greco-romana do passado e do pertencimento da Ásia Menor à esfera do Mediterrâneo e ao Império Romano. Múltiplas associações que trazem à consciência continuidades apesar de todas as diferenças adquirem dimensões político-culturais, pois contribuem aos intuitos turcos de pertencimento à Europa, fundamentando-os.

Essa situação atual chama a atenção à necessidade de se considerar o desenvolvimento da vida musical ocidental na Turquia nos seus elos com a história política do país nas suas relações com o Ocidente.

Banda de música e ópera italiana na europeização da música turca no século XIX

Como principal marco em processo de "europeização" da vida artística turca é sempre lembrado o fato de Giuseppe Donizetti (Donizetti Paşa, 1788-1856), irmão mais velho de Gaetano Donizetti (1797-1848) ter sido encarregado, em 1828, pela música de Côrte de Mahmud II, sultão do Império Otomano (1785-1839) (e.o. Francesco Bellotto, "Giuseppe Donizetti", The New Grove Dictionary of Music and Musicians, London 2001; Emre Aracı, A Levantine life: Giuseppe Donizetti at the Ottoman court, The Musical Times 143, Hove 2002)

Esse flautista, compositor, maestro, professor e organizador foi considerado em cursos de música no encontro de culturas realizado nas universidades de Colonia (1998) e Bonn (2003) e é alvo de atenções em publicações mais recentes, salientando-se aqui obra editada pela Fundação Donizetti de Bergamo (Giuseppe Donizetti Pasha: Musical and Historical Trajectories between Italy and Turkey / Giuseppe Donizetti Pascià: Traiettorie musicali e storiche tra Italia e Turchia, ed. Federico Spinetti, Bergamo: Fondazione Donizetti, 2010).

O reconhecimento atual do significado de Giuseppe Donizetti para estudos históricos músico-culturais não diz respeito apenas às relações ítalo-turcas, mas é também de significado para sob diversos aspectos para todos os países que tiveram a sua vida musical marcada pela influência italiana no século XIX.

O Brasil destaca-se nesse panorama global da irradiação musical italiana, que marcou intensamente a história da ópera, do ensino e da criação musical. Comparar desenvolvimentos em contextos tão diversos contribui para o reconhecimento de bases comuns que elucidam situações atuais e ao diálogo intercultural de pesquisadores e músicos.

Se nos estudos histórico-musicais referentes ao Brasil a atenção é dirigida sobretudo à influência italiana na música sacra e na ópera em sequência aos estreitos elos de Portugal com o universo musical italiano, a consideração da Turquia exige em primeiro lugar a consideração da música de banda, trazendo à consciência uma esfera da vida musical insuficientemente estudada no Brasil. Com os seus outros pressupostos religioso-culturais, não podia ter havido uma recepção de obras e estabelecimento de instituições e práticas européias sem o ensino de instrumentos ocidentais, de rudimentos teóricos e de preparação do ouvido e da capacidade de apreciação perante uma cultura musical totalmente diversa.

O papel educativo da música instrumental, ainda que conhecido e já estudado em alguns de seus aspectos no Brasil, manifesta-se na Turquia em toda a sua relevância para processos de transformação cultural e de preparação para o estabelecimento de vida musical de orientação européia.

Se em países como o Brasil a atenção tem sido dirigida sobretudo ao papel fundamental desempenhado pelo ensino de instrumentos na prática missionária dos séculos XVI e XVI, em particular sob o aspecto performativo, no contexto cultural turco do século XIX o olhar deve ser voltado à música militar.

Se na história missionária da América e da África a música instrumental serviu de agente e veículo no processo integrativo na nova sociedade de indígenas e africanos que encontravam na prática do domínio técnico vocal e instrumental possibilidades auto-afirmativas que não poderiam ter na esfera intelectual ou filosófica pelo fato de não terem os necessários pressupostos culturais fundamentados na corrente histórica secular européia, na Turquia similar função desempenharam o ensino e a prática instrumental junto a muçulmanos que primeiramente através do domínio técnico de instrumentos puderam ser levados a integrarem-se em esfera músico-cultural e em desenvolvimentos artísticos totalmente diversos.

O processo de europeização cultural da Turquia através da música - e do estabelecimento de bases comuns que justificam hoje anelos de pertencimento à Europa - relaciona-se estreitamente com a história militar e insere-se, assim, em contextos políticos. A inserção do processo de europeização músico-cultural através de Giuseppe Donizetti nos desenvolvimentos políticos na sequência da reforma militar de Selim III (1762-1808) sob Mahmud II vem sendo, assim, objeto de particular atenção. (Veja capítulo IV de Maurizio Costanza, La Mezzaluna sul filo – La riforma ottomana di Mahmûd II, Veneza: Marcianum, 2010)

Essa época foi marcada por desenvolvimentos críticos no Império Otomano, evidenciados sobretudo pela perda de territórios e áreas de influência de consideráveis dimensões como aquela da Sérbia, da Grécia e o aumento de poder do governante do Egito. Compreende-se que, nessa situação, Muhamud II, no intento de garantir e fortalecer o seu poder e o do império otomano centralizado em Istambul, procurasse colocar as forças militares turcas à altura de responder às novas exigências internas e externas.

A modernização de estruturas militares segundo critérios internacionais significou a superação dos Janitscharen, tropas que, com os seus membros em geral conversos obrigatoriamente ao Islão e formados rigidamente em escola de derviches eram extremados combatentes de fundamentação religiosa e presos à tradição.

O fim dos Janitscharen teve dimensões musicais, uma vez que o seu corpo musical - Mehterhane - marcava paradas militares, movimentações de tropa e combates. Conhecida na Europa através das guerras contra os turcos, em particular na Polonia e na Áustria, marcou com as suas marchas a imagem da "música turca" na música instrumental do Ocidente, tanto na esfera artística quanto na militar.

Na Europa Central, retretas de bandas dominicais passaram até mesmo a ser conhecidas como sendo de "música turca". A "árvore" de sistros com a meia-lua continua a ser até o presente empregada em bandas de música, em particular no mundo de língua alemã e a recepção da música turca marcou o uso de instrumentos e a orquestração, por ex. no uso do grande bumbo, do triângulo, dos címbalos, do flautim e da requinta, estes possivelmente reproduzindo o som estridente do zurna, o oboé turco. Ainda que reciprocidade de influências mereceria ser mais aprofundadamente considerada, a abolição dos Janitscharen e da sua música representou um momento decisivo na inversão de processos receptivos: da música turca na Europa à música ocidental na Turquia.

Devido a seu extraordinário significado, a reforma do corpo musical militar do palácio - Mehterhane -segundo modêlos ocidentais necessitava ser confiada a um músico europeu de aptidões extraordinárias como instrumentista, professor de instrumentos, maestro, compositor e organizador. Nessa procura de uma personalidade adequada, diplomatas italianos recomendaram a Mahumed II o nome de Giuseppe Donizetti, então um dos mestres de banda que mais se sobressaíam no seu país. Após ter-se iniciado na flauta no meio familiar, teve aulas com o músico austríaco Johann Simon Mayr (1763-1845), atuante em Bergamo, compositor de ópera e de música sacra de projeção européia. A sua experiência como instrumentista e mestre de banda adquiriu Giuseppe Donizetti na intensa prática musical em várias regiões italianas, também nas ilhas de Elba e em Sardinha.

Para Constantinopla transferiu-se em 1828. Como flautista, vinha de encontro a um dos principais instrumentos da antiga tradição turca, portador no âmbito das ordens dos derviches de sentidos místicos de central significado (Veja ); a ocidentalização, nesse sentido, representava uma secularização profunda da vida musical. A banda do palácio foi reformada segundo modêlos daquelas que conhecia, e para isso introduziu novos instrumentos, como oboé e clarinetas. De fundamental significado foi a introdução da notação ocidental, que os músicos turcos passaram a ter que aprender.

A banda do palácio assim reformada passou a servir de modêlo para outras corporações no Império Otomano, tornando-se assim a música de banda agente de um processo ocidentalizador em amplas dimensões, uma vez que em várias regiões surgiram esses centros de formação de instrumentistas segundo critérios ocidentais. A reforma, necessariamente acompanhada pelo ensino de instrumentos e de rudimentos teóricos de músicos, ampliou-se com o estabelecimento de escolas de música ocidentais. A influência de Giuseppe Donizetti fêz-se valer na instituição do primeiro conservatório no Império Otomano segundo modelos ocidentais, em 1831, onde êle próprio passou a lecionar flauta, piano, harmonia e instrumentação. Traçando-se paralelos com o Brasil, pode-se registrar que também na Turquia houve - ainda que paradoxalmente - intuitos a que músicos assim formados segundo critérios ocidentais passassem a considerar nas suas obras de composição elementos da música tradicional do país.

O próximo grande passo na instituição da vida musical segundo modêlos europeus deu-se com a ampliação e reestruturação da banda palacial com a introdução de instrumentos de cordas, transformando-a em orquestra sinfônica. A ela remonta a atual orquestra presidencial turca em Ankara (Cumhurbaşkanlığı Senfoni Orkestrası).

Para além da formação de instrumentistas e da reforma ocidentalizante do conjunto instrumental, a ação de Giuseppe Donizetti fêz-se sentir no ensino e na difusão de repertório e práticas européias em círculos reservados da Côrte e influentes da sociedade. No harém, passou a executar música em grupos de câmara e pequenos conjuntos orquestrais, chegando a apresentar até mesmo óperas italianas de menores dimensões.

Sob Abdülmecid (1823-1861), o cultivo e o fomento da música ocidental acentuaram-se, em parte explicável pelo fato do próprio sultão ser pianista. Formado porém na França, tudo indica que iniciou-se sobretudo através do piano a influência francesa na vida musical turca de círculos sociais mais elevados da sociedade e da prática doméstica da música em famílias da burguesia urbana. Paralelamente, em parte como consequência de tratos com nações européias na procura de apoio nos conflitos internos com o Egito, intensificaram-se reformas do exército e do ensino.

Testemunho da existência de um público já formado para a apreciação de música européia e marco numa história da inserção da Turquia no contexto da vida musical internacional foi a visita de músicos europeus como Leopold de Meyer (1816-1883), Eugene Leon Vivier (1817-1900), Henri Vieuxtemps (1820-1881) e, sobretudo, Franz Liszt (1811-1886) que, em 1847, ali esteve durante cinco semanas. Liszt escreveu uma paráfrase de concerto oferecida ao sultão Abdülmecid e baseada no hino de Giuseppe Donizetti a êle dedicado (Grande Paraphrase de la marche de Giuseppe Donizetti composée pour Sa Majesté le sultan Abdul Medjid-Khan).

A europeização da Turquia e as expectativas de europeus relativas ao Oriente

A europeização da Turquia no século XIX apresenta aspectos ambivalentes, cuja consideração é pressuposto para a compreensão de situações atuais.

Assim como os turistas ocidentais hoje apreciam o conforto e qualidades de vida que lhe são familiares durante a sua estadia mas que, desejando encontrar um país oriental e exótico podem decepcionar-se com o fato de encontrar ambientes e costumes internacionais, tem-se registros que também as reformas do século XIX foram sentidas não apenas positivamente por viajantes europeus.

Comprende-se que, em século do Romantismo, marcado pelo fascínio pelo Oriente e pelo exótico em geral, a ocidentalização da Turquia fosse não apenas vista como progresso, mas também lamentada como perda de caracteristicas culturais próprias do país. Um exemplo dessas impressões ambivalentes oferece o testemunho de um viajante inglês em correspondência enviada ao redator da revista "Panorama do Universo", editada em alemão em Praga e publicada em 1836 ("Türkische Reformen", Das wohlfeilste Panorama des Universums 9, 1836, Praga: Gottlieb Haase, pág. 66-67).

De particular interesse nesse texto é o fato do viajante registrar uma mudança de atitudes perante o estrangeiro mesmo em aldeias mais afastadas, uma maior cordialidade e hospitalidade, que surgem como até mesmo como exageradas na sua descrição, interpretando-as como consequências da reforma.

Esse documento surge como particularmente significativo, pois sugere que a extraordinária simpatia, o cultivo de formas de tratamento, solicitude e mesmo doçura de trato que visitantes atuais registram no convívio humano na Turquia, em particular em visitas a lojas e centros de confecção de tapetes, de objetos de cerâmica ou de couro não seriam expressões de uma "mentalidade oriental", mas sim resultados de processos culturais desencadeados nos últimos séculos e estreitamente relacionados com a ocidentalização.

"Como já estive uma vez em viagens pela Turquia, temia ter novamente que renunciar a tudo que contribui à amenidade e ao conforto de um estrangeiro. Nisso, porém, enganei-me. Em geral, assim que me aproximava de uma aldeia, era recebido por um de seus principais, e os turcos que visitava levantavam-se de seus assentos para saudar-me, uma atitude que em tempos passados o seu orgulho não permitia. O seu orgulho foi quebrado pela infelicidade, e a antiga rudez de seus costumes deram lugar a um comportamento amigo e cortês. " (loc.cit.)

Para o viajante estrangeiro, a mudança de costumes manifestava-se nos seus aspectos negativos da forma mais evidente nos trajes. Correspondendo à perda de orgulho, o povo não dava mais atenção à aparência e ao porte como no passado, e isso tinha influência na imagem que transmitia a outras nações.

"O novo costume é tudo, menos elegante; nas províncias achei-o pobre e não asseado, aqui em Constantinopla é decente. Os turcos tinham antes um traje imposante que ainda mais aumentava a dignidade de seu comportamento grave e controlado; esse, o sultão aboliu, e ainda que se possa esperar uma reforma favorável de costumes com essa mudança, os turcos perdem pelo momento, pois, não sendo auxiliados por um costume ricamente ornamentado e magníficente, as deficiências naturais de sua forma surgem com mais saliência, e não podem mais esperar que sejam admirados como povo de bela aparência e forte." (loc.cit.)

Segundo a interpretação desse observador inglês, a profunda transformação cultural turca, que se manifestava na forma com que os estrangeiros passaram a ser tratados e que seria uma consequência das muitas derrotas e perdas do Império Otomano, e, resultado de uma profunda e abrangente crise, relacionou-se com uma mudança de imagem turca no Exterior. Esta fora marcada até então pelas experiências de guerras do passado, surgindo o turco como perigoso e brutal inimigo, porém paradoxalmente admirado pelo seu orgulho e aparência, dando lugar a outra marcada pelo turco extremamente cordial, solícito e de cultivo no trato social, ao mesmo tempo, porém, desdenhado pela sua inferioridade. Essa transformação cultural - e de imagens - que teria ocorrido no decorrer de um desenvolvimento crítico e que teria sido selada com as reformas da década de 20 do século XIX, é de relevância para os estudos culturais relativos ao Brasil, uma vez que a antiga imagem do turco é aquela que justificava e justifica a sua presença figurada em expressões culturais que representam lutas entre Cristãos e Mouros, ou seja, que presentifica um paradigma de conflito cultural de remota proveniência e fundamentação bíblica. (Veja )

Segundo o correspondente inglês, a mudança de uniformes militares teve consequências sobretudo para a moda, sobretudo de jovens, que passaram a seguir tendências estrangeiras das mais diversas. Esse cosmopolitismo levava a que perdessem características que antes os identificavam, sendo que uns podiam ser confundidos com jovens de outras nações européias pelas aparências, outros lembravam antes russos.  A nova atenção dada à moda levara também ao aumento do número de costureiros europeus ou provenientes da Armênia, ou seja, cristãos, e que se estabeleceram em Pera, o bairro europeu de Istambul, onde residiam comerciantes franceses e diplomatas.

"O novo costume não foi apenas adotado no meio militar; todos os jovens o usam, e quando se anda pelas ruas, pergunta-se se a pessoa que se vê é turco, grego ou um franco. Alguns usam casaco, calças brancas e calçados europeus. Outros jaquetas curtas, de corte estreito, e esses têm a aparência de cossacos. As classes mais elevadas usam também colares, e como começam a ser muito críticos relativamente ao corte da saia, os costureiros europeus e armênios em Pera têm muito o que fazer. Todas as classes, do sultão até o mendigo, usam um capuz vermelho com banda azul." (loc.cit.)

O escrito do viajante inglês oferece também um testemunho da nova banda de música palacial resultante sobretudo da atuação de Giuseppe Donizetti, descrevendo a sua participação no contexto de uma ida do sultão à oração na mesquita. A sua descrição chama a atenção ao contexto geral de reformas militares no qual a nova prática musical se inseriu. Segundo o seu depoimento, essas mudanças no exército seguiam modelos franceses, tendo-se dado atenção a que os membros da guarda fossem agora jovens de alta estatura e boa aparência. A banda, ainda que atuando em contexto religioso, executava à saída do sultão da mesquita após a oração melodias européias.

A impressão que o leitor atual ganha desse texto, assim, é a de uma concomitância de expressões de diferentes proveniências, de uma mistura que indica interações e instabilidades no processo de transformação cultural e que apenas podia surgir como estranha, incongruente ou mesmo cômica a olhos dos europeus, uma situação similar àquela que se conhece de relatos de viajantes estrangeiros no Brasil.

"Ontem vi o sultão ir a cavalo à mesquita. No seu caminho havia um acompanhamento de soldados, que à sua passagem apresentavam as armas. À frente eram conduzidos dez cavalos, todos com selas européias. Muitos generais e altos funcionários, em costume europeu e com estrelas de diamantes ao peito desceram de seus cavalos quando o sultão se aproximou da mesquita e dirigiram-se a êle. Só êle cavalgava. O seu traje consistia em calças cossacas brancas, botas pretas e esporas, uma jaqueta de husar estreita de veludo vermelho e uma manta militar azul-escuro, a que dão o nome de Surtout. Logo após segue uma companhia de sua nova guarda, que usam casacos curtos azuis e calças brancas, todos jovens excelentemente belos e altos que, quando o sultão desceu do cavalo, colocam-se em fila e apresentaram as armas. Quando saiu da mesquita, a música militar executou várias melodias européias. Eu vi todo um regimento em armas; possui três corpos e exercitam completamente a modo francês; marcham bem e possuem já uma aparência bem mais militar do que as pouco disciplinadas tropas persas. Mas não se pode esperar que logo façam tão grandes progressos, pois cada corpo possui apenas um mestre." (loc.cit.)

A transformação cultural ocidentalizante da Turquia fêz-se sentir sobretudo na atitude do povo perante as mulheres européias que visitavam ou viviam no país. Diferentemente do passado, podiam transitar sem maiores dificuldades fora do bairro europeu, sendo até mesmo alvo de atitudes de cortesia.

"As damas européias andam agora sem perigo e sem chamar a atenção pelos bazares de Constantinopla e não pouco me surpreendi ao ver um turco ser tão galante de pegar um lenço que uma dama da nossa sociedade tinha deixado cair. Não se é mais incomodado com olhares sinistros ou de desprezo; se a rua foi estreita e a passagem está bloqueada, o turco dá em regra passagem ao europeu, caso tenha este uma aparência razoável. Em breves palavras: os turcos tornaram-se agora copiadores e uma consequência disso é um certo sentimento de respeito para com aqueles cujos usos e costumes querem assimilar." (loc.cit.)

Para o observador, assim, também essa mudança de atitudes para com a mulher européia ou para com os europeus em geral seria resultado de uma transformação cultural determinada pela perda de orgulho, de auto-consciência ou de auto-estima, levando à orientação segundo modêlos estrangeiros e transformando os turcos em copiadores. Sob a perspectiva do leitor atual do texto desse viajante inglês, deve-se porém levantar a questão se não é justamente esse lamentar quanto à perda de uma originalidade ou autenticidade uma expressão da procura do exotismo por parte de europeus do século do Romantismo.

Nesse sentido, a valorização expressões tradicionais por parte de turcos em décadas posteriores representaria a internalização dessa visão européia e, assim, um novo passo no processo de transformação cultural. Tem-se notícias que o próprio Giuseppe Donizetti teria incentivado discípulos no sentido que usassem elementos de sua própria cultura em composições, o que surge como uma situação paradoxal, uma vez que foi êle principal agente da reforma ocidentalizante.

Traçando paralelos com desenvolvimentos no Brasil, o observador lembra-se que no emprêgo de melodias e ritmos da tradição popular em composições eruditas ou de salão salientaram-se de início músicos estrangeiros, de ascendência ou de formação européia.

A comparação de desenvolvimentos com um país tão distante como a Turquia pode aguçar assim a consciência de que os estudos relativos ao nacional e ao nacionalismo necessitam ser diferenciados, uma vez que, ao contrário de visões que salientam exclusivamente um despertar de consciência nacional de músicos relativamente à própria cultura, podem representar antes projeções ou recepções de posicionamentos europeus.


Contrastes entre a imagem do Oriente e a realidade social em olhar americano

O mais relevante documento que apresenta impressões da Turquia por parte de um viajante do Novo Mundo refere-se nada menos do que a visita ao país pelo General Ulysses S. Grant (1822-1885), ex-presidente dos EUA (J. F. Packard, Grant's Tour Around The World ..., San Francisco, Cal.:S. W. Dunn, 1880).


Esse relato traz de início à consciência o impacto causado ao viajante estrangeiro pelo contraste entre a imagem idealizada do Oriente e a realidade social da Turquia. Na impressionante paisagem de Istambul, o observador compenetrava-se estar no Oriente já nos seus primeiros passos pelas ruas, onde o costume era oriental e o idioma estranho, parecendo-lhe reinar uma atmosfera de amenidade luxuosa e tranqüila, diversa daquela das ativas populações das cidades da Europa Ocidental. Essa serenidade foi exemplificada com a visita a um café à beira do Bósporo, onde, sob plátanos e ao redor de uma fonte, turcos fumavam cachimbos de água, tomavam café ou inalavam haschish. A cena era emoldurada pelos minaretes e, sonoramente, pelas chamadas do muezzin.  (op.cit. 344-345)


Essa primeira visão de Istambul, porém, vista do esplendor do Bósporo, se correspondia àquela idealizada do Oriente, contrastava com aquela que oferecia o interior da cidade. As casas eram de madeira e em mau estado de conservação, favorecendo incêndios, sem iluminação à noite, com cães famintos, as ruas estreitas e pavimentadas com pedras irregulares. (ibidem)

Os muitos presentes recebidos do sultão serviram posteriormente a uma exposição no Memorial Hall, Fairmount Park, Philadelphia, um primeiro evento de maiores dimensões relativo à cultura turca no Novo Mundo. Incluiam numerosos manuscritos com iluminuras, álbuns e documentos com expressões de boas vindas de trabalhadores e corporações e cidades, alguns em estojos de ouro e prata, de alto valor artesanal. Um dos mais valiosos souvenirs era uma caixa ornamentada com relevos de madeira de árvore de Stratford-on-Avon, plantada por Shakespeare. (op.cit. 347)

A procura do Oriente exótico e o problema da escravidão

O relato da estadia do General Grant em Istambul assume particular interesse para os estudos culturais referentes à questão da escravidão. Para os visitantes estrangeiros, o mercado de escravos era um dos locais "mais interessantes" de Constantinopla. Nenhum estrangeiro podia nele entrar sem uma autorização de uma das embaixadas. O mercado era repleto de escravos africanos, da Núbia e da Abissínia, ou seja, de esferas de influência do Império Otomano, na sua maioria crianças, em geral nuas, não dando a aparência de serem infelizes ou desconsoladas. Ao redor do pátio havia compartimentos para escravos de "ordem mais elevada", sobretudo mulheres. Entre elas, viam-se apenas duas brancas, da Geórgia, destinadas a um harém mais rico. Os mercadores de escravos, sentados em tapetes, fumando, respondiam às ofertas, indiferentes às condições dos escravos. O modo com que tratavam e falavam dos escravos, como simples mercadorias, foi sentida como deprimente expressão de rebaixamento da condição humana. (loc. cit. 350)

"One of the most interesting places in Constantinople is the Slave-Market. To this no Frank is allowed to enter without an authorized janissary of one of the embassies. The visitor upon entering ist at once saluted with "Backshish! Backshish!" The area of the square was filled with groups of Nubian and Abyssian slaves, mostly children, and in a state of almost perfext nudity. They were crouched togehter in groups, but seemed to be by no means disconsolate at their lot. They were cheerful and full of merriment. Arount the court-yard, under the sheds, were compartments for the better order of slaves. These were chiefly African women. We saw only two white female slaves, and these were Georgians, destined for the harems of the rich. We were very solicitous to get a look at these Georgian beauties, but were only indulged with a glance through the bars of their cages. We saw only the brigh black eyes of these imprisoned ones; they were merry enough.

The slave-merchants were quietly reposing on carpets under the sheds, smoking, and answering with usual Turkish nonchalance the propositions of customers. Their stoical indifference to the condition of the slaves, and the manner in which they handled and spoke of them as mere merchandise, disgusted us, and we were glad to leave the place where humanity sinks to the level of the brute creation". (op. cit. 350)

Essa descrição do mercado de escravos de Istambul traz à consciência um aspecto da consciência e da imagem do problema da escravidão nos países ocidentais nem sempre suficientemente considerado. Mais do que a escravidão no Brasil, então na sua última década, o interesse e os sentimentos eram antes marcados pelo comércio de escravos na esfera muçulmana do império otomano, encontrando-se o seu mais conhecido mercado não distante, mas às margens da própria Europa, na antiga Constantinopla. A temática da escravidão, expressa também em obras de arte, relaciona-se assim com o orientalismo do século do Romantismo, sendo marcada assim de forma complexa por sentimentos contraditórios de fascínio pelo exótico e sentimentos humanitários.


De ciclo de estudos sob a orientação de
Antonio Alexandre Bispo



Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Música de banda e ópera italiana sob Giuseppe Donizetti Paşa (1788-1856) na europeização da Turquia em recepção centro-européia e em paralelos com o Brasil".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 144/13 (2013:4). http://revista.brasil-europa.eu/144/Musica-na-Europeizacao-da-Turquia.html