Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________

Foto A.A.Bispo©


Foto A.A.Bispo©


Foto A.A.Bispo©


Foto A.A.Bispo©


Foto A.A.Bispo©


Foto A.A.Bispo©


Foto A.A.Bispo©


Foto A.A.Bispo©


Foto A.A.Bispo©


Foto A.A.Bispo©


Fotos A.A.Bispo.
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 144/17 (2013:4)
Professor Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia e Conselho Científico
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
- Academia Brasil-Europa  -
e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3021




De militar em guerras balcânicas e inspetor de ferrovia em Constantinopla
a professor e pastor em colonias alemãs no Rio Grande do Sul
Experiências na luta pela sobrevivência de Hans von Hattorf (Bielefeld)
no seu significado para estudos internacionais de processos culturais em meios sociais desfavorecidos

Elos entre o Império Guilhermino e o Império Osmano sob a perspectiva dos estudos coloniais referentes ao Brasil I


Turquia no Ano Brasil/Alemanha 2013 da A.B.E. (III)

 

Na consideração da Turquia no âmbito das relações Alemanha/Brasil, as cidades alemãs com grande número de imigrantes merecem particular atenção.

Como discutido em visita ao Centro de Documentação da Migração - Arquivo de Migração (Domit), fundado em 1990 por iniciativa de migrantes turcos e que passou a se dedicar a também questões da história social, cultural e do quotidiano de migrantes de outras origens na Alemanha, inclusive de países de língua portuguesa (http://www.revista.brasil-europa.eu/101/Domit.htm), os estudos de processos culturais relacionados com migrações não podem restringir-se à atualidade e à época mais recente das migrações, mas devem também compreender a pesquisa de relações culturais entre as diversas nações no passado.

Somente assim os migrantes e seus descendentes das diferentes nações podem ganhar maior profundidade e visões mais amplas no tratamento da própria situação em que se encontram.

Bielefeld, cidade vestfálica de grande número de migrantes e passado laborial

Foto A.A.Bispo©
Entre as cidades alemãs com maior número de estrangeiros encontra-se Bielefeld, no Leste da Vestfália: quase a metade dessa população de passado migrante (12,5%) é constituida por turcos vindos como trabalhadores a partir da década de 60 do século XX. A cidade, marcada pelas suas indústrias e operariado, é a quinta na construção de máquinas na Alemanha.

Devido às destruições da Segunda Guerra, poucos edifícios representativos trazem à lembrança um período de florescimento econômico alcançado pelas atividades fabrís do passado e que conheceu épocas de graves crises e consequentes surtos de emigração ao continente americano.

Uma delas foi a do comércio de linho ao redor de 1830, que marcara até então a economia da cidade; produzido em trabalho artesanal por camponeses da região de Ravensberg, não pôde concorrer sob as novas condições criadas pelo desenvolvimento mecanizado da tecelagem na Grã-Bretanha e na Bélgica.

Uma nova fase da história laboral de Bielefeld iniciou-se na década de sessenta do século XIX com o desenvolvimento da produção de artigos de fumo, em particular da firma Gebr. Crüwell e, sobretudo, com o advento da ferrovia e, com ela, de fábricas, recuperando a cidade o seu significado como centro de tecelagem. Paralelamente, desenvolveu-se a produção de máquinas.

Bielefeld nos estudos relacionados com a Turquia e o Brasil

Essa cidade de passado e presente laborial da Vestfália desempenha um papel singularmente significativo nas considerações da Turquia no âmbito das relações Alemanha/Brasil.

Esse significado é sobretudo devido a Hans von Hattorf que, apesar de origem aristocrática, levou uma vida de viajante à procura de aventuras e que, frequentemente desempregado, atuou nas mais diversas profissões no Império Osmano e em colonias alemãs no Brasil na segunda metade do século XIX.

Von Hattorf
Bielefeld também surge como uma etapa na vida artística de Hans Lange (1884-1960), filho do mestre-capela alemão da Corte dos sultões osmanos Paul Lange (1857-1919). Ali atuou antes de partir para os Estados Unidos  onde desempenhou um papel de importância na carreira da pianista brasileira Guiomar Novaes (1895-19679) nos anos trinta do século XX. (Veja http://revista.brasil-europa.eu/144/Hans-Lange-e-Guiomar-Novaes.html)

Cabe aos trabalhos euro-brasileiros no âmbito de seus estudos voltados à emigração/imigração ter revelado de forma pioneira já há décadas a até então esquecida e rara obra de Hans von Hattorf, impressa na gráfica dos correios de Bielefeld. Essa obra é dedicada a seu cunhado Franz von Ditfurth (1840-1909), de tradicional família nobre, político, funcionário público e militar, uma das mais destacadas personalidades da história de Bielefeld. (Veja http://www.revista.akademie-brasil-europa.org/CM15-05.htm).

Reconsideração do livro de Hans von Hattorf nos estudos de cultura popular

Transcorridas mais de duas décadas, o livro de Hans von Hattorf merece ser relido não apenas pelo fato do autor ter vivido e trabalhado tanto no Império Osmano e no Brasil, passando também pela África.

Êle deve ser reconsiderado sob os novos questionamentos que se levantaram desde então com o desenvolvimento dos estudos de migrações e dos Cultural Studies, e sob as perspectivas que se abrem quando a atenção é dirigida à Turquia no contexto das relações entre a Alemanha e o Brasil.

Sob esses novos pressupostos e olhares, a superficialidade que nos anos 90 se notara na leitura do livro dá lugar ao reconhecimento do seu valor específico justamente pela atenção que dá à vida e à cultura do quotidiano em diversos contextos, em particular a esferas menos privilegiadas de populações. O autor menciona aspectos pouco considerados por outros autores relativos a roubos,  crimes de toda a ordem, prostituição, fraudes e violências, a dificuldades, inseguranças e aos perigos em meios sociais marcados pela sobrevivência em condições de necessidade e penúria.

Como menciona no prefácio da segunda edição do livro, escrito em Bielefeld em janeiro de 1895, Hans von Hattof nas suas viagens muito viu e muito sofreu, tendo experimentado essa luta pela sobrevivência em diferentes povos.

Dessas experiências teria aprendido a lição que o homem nada mais é do que um "átomo" no mundo e, assim, reconhecido o valor da modéstia. Êle próprio, quando usara o uniforme e as insígnias de um oficial prussiano, consciente de sua nobreza, tinha visto o mundo com outros olhos, julgando que tudo girava a seu redor. Porém, todo aquele que, como êle, realizasse muitas viagens e constatasse a imensidão do globo, conscientizar-se-ia da própria pequenez e insignificância. A sua obra deveria servir como lição em modéstia, pois somente através dela é que se poderia minimizar os contrastes do presente.

Essas observações de Hans von Hattorf podem ser entendidas antes como uma auto-justificativa da vida que levou e que descreve, marcada que foi por ímpetos de aventuras, participação em conflitos militares estrangeiros, trabalhos ocasionais, desemprêgo, negócios escusos, engôdos e mesmo charlatanice, chegando a praticar assassinato de indígena no Brasil, fato que ficou impune e que é descrito sem pejo e comoção.

Ao contrário da lição de modéstia que o autor quer dar a seus leitores, o seu livro manifesta sob muitos aspectos atitudes questionáveis de exagerada auto-consciência, discriminações, falta de empatia, sensibilidade e mesmo brutalidade. Longe de poder ser considerado como modêlo de comportamento e de atitudes, a própria história de vida e as observações de Hans von Hattorf adquire significado sob a perspectiva dos estudos culturais, sugerindo especificidades de sua formação que podem ser analisadas no contexto dos problemas sociais da vida operária de Bielefeld.

Ao mesmo tempo, a sua obra traz à consciência que os estudos colonias referentes ao Brasil devem considerar com muito maior atenção os problemas sociais de emigrantes, a situação de luta pela sobrevivência, integrando-os assim num contexto mais amplo da história social e cultural de meios sociais menos favorecidos, marginalizados e oprimidos.

Por que servir aos fortes? Eu me ofereceria aos mais fracos!

Grande parte da história de vida de Hans von Hattorf é marcada pelas suas experiências nos países balcânicos no âmbito da conflitos internos e internacionais do Império Osmano e é a partir delas que devem ser compreendidas as posteriores etapas de sua vida na Turquia, na Pérsia, na África e na América do Sul.

As suas atuações fora da Alemanha cairam em período de múltiplas tensões na esfera osmana, em particular da guerra contra a Sérvia. O autor lembra que em meados de 1875, quando a contínua situação de tensão de grupos eslavos do Império Osmano para com o govêrno turco intensificava-se, a Herzegovina levantou-se, formando dois batalhões insurgentes. Montenegro, sem declarar guerra, apoiou essa insurreição de forma silenciosa. Muitos montenegrinos dirigiram-se à região de Trebinje para unir-se aos revoltosos. Por fim formou-se um terceiro corpo formado por combatentes da Boêmia, Bósnia, Ilíria e da Itália.

"O meu desejo de aventuras atirava-me nessa época com força irresistível ao Oriente. A minha primeira intenção era a de oferecer os meus serviços ao govêrno turco, mas as palavras de um amigo: Porque aos fortes? eu me ofereceria aos mais fracos! mundaram o meu plano. Decidindo-me rapidamente, parti; atravessando a Áustria de trem, encontrei-me já no quarto dia em Trieste, tomei um vapor Lloyd e prossegui pelo magnífico mar adriática ao longo da costa dalmatina." (op.cit. 15)

Sob o comando de um ex-capitão francês que havia combatido do lado oposto ao de Hans von Hattorf na Guerra Franco-Prussiana de 1870 e que agora tornou-se seu amigo, passou a participar do conflito, sendo nomeado a Tenente-Coronel. (op.cit. 17) A sua atuação foi assim ao lado de Montenegro e voltada ao desgaste do exército turco.

O papel desempenhado por Montenegro nesse campo de tensões merece particular atenção, uma vez que também um outro oficial prussiano relacionado com o Brasil chegou até mesmo a receber condecoração montenegrina: Emanuel Karl Heinrich Schmysingk von Korff (1826-1903)(http://revista.brasil-europa.eu/143/Emanuel-Korff.html).

O início das atividades de Hans von Hattorf cairam assim na época da realização da Conferência internacional sôbre o futuro da região balcânica, em 1876.

A grande probabilidade da paz levou a que Hans von Hattorf deixasse o serviço montenegrino e o oferecesse à Sérvia. Tomando conhecimento que um general turco assumia o contrôle da Herzegowina e Bósnia, decidiu-se a atuar sob o seu comando.

Sendo a sugestão da autonomia para duas províncias na Bulgaria e para a Bósnia e Herzgovina não aceitas da parte turca, a Rússia declarou guerra, invadindo a parte européia da Turquia e avançado em direção a Constantinopla, Em 1878, chegou-se ao acordo de paz de San Stefano, passando à Bulgária os territórios habitados por búlgaros, sendo o Império osmano obrigado a reconhecer a independência da Romênia, da Sérvia, do Montenegro e da Bulgária, além de entregar Kars à Rússia.

No mesmo ano de 1878, realizou-se o Congresso de Berlim, no qual a Sérvia e Montenegro alcançaram a sua independência e a Valáquia e Moldávia constituiram a Romênia. (http://www.revista.brasil-europa.eu/134/Bucareste-Academia-Romana.html) Com o Acordo de Berlim, a influência das potências européias na Turquia ampliaram-se, solidificando-se em especial a parceria entre o Império Alemão e o Osmano.

Momentos do relato de von Hattorf referentes à Turquia

  1. 1)Atividades para a ferrovia osmana e vida em Constantinopla

Mais do que as atividades militares de von Hattorf, é a sua vida posterior na Turquia a partir de 1879 que surge como de maior interesse para os estudos culturais. Esta decorreu em época de implantação das ferrovias osmanas, entrando von Hattorf a serviço das estradas de ferro primeiramente como intermediário na compra de madeiras para dormentes em aldeia de fronteira situada em região de florestas. O seu relato documenta as consequências sociais das guerras balcânicas, entre outras a do aumento de camponeses desterrados, empobrecidos e desempregados, desenvolvimento acompanhado pelo surgimento de bandos de ladrões e de aventureiros que cruzavam a região e exerciam nela poder e justiça, uma espécie de cangaço nessa região entre a Europa e a Ásia.

"No ano de 1879 encontrava-me na Turquia.

Tinha recebido a ordem de receber os dormentes que eram feitos no forte Bellowar e entregá-los à ferrovia otomana. Para esse fim tomei moradia na aldeia Bellowar nas montanhas Rhodope, bem junto à fronteira da Macedonia e da Rumelia oriental. Os habitantes dessa localidade de montanha são bastante ricos e alimentam-se apenas da cultura da madeira.

Quatro anos durara a guerra entre Montenegro, Servia, Bulgaria, Rússia e a Turquia, e, em consequência disso, um grande número de camponeses estava sem terra e sem emprego. Desses infelizes haviam-se formados bandos de ladrões (...)" (op.cit. 75)

2) Contrastes por detrás da aparência magnífica de Constantinopla

As referências de von Hattorf sôbre o Império Osmano salientam os contrastes sociais que encontrou na sua capital. Apesar de registrar as belezas da paisagem, que considerou como das mais belas do mundo, assim como a magnificência das aparências externas, a sua atenção é dirigida sobretudo à realidade social dos bairros centrais da cidade, marcados pelas condições ínfimas de vida, falta de higiene e alta criminalidade.

"A capital do Oriente, Constantinopla, em turco Istambul, encontra-se em local extraordinariamente privilegiado pela natureza no Bósporo, na fronteira entre a Europa e a Ásia. Uma vista tão fantástica como aquela que se tem dessa enorme cidade do bordo de um navio é com certeza rara em todo mundo. Além disso as magníficas circunvizinhanças! Como pérolas brilhantes ali se encontram, entre outras muitas, as localidades de Bujukdere (residência de verão de todas as missões estrangeiras) e Kadifeui, Jeni Koulé, Haidar Pascha, Skutari e outras cidades periféricas da bela metrópole.

Mas como o viajante se decepciona quando entra na cidade. É Galatha mesmo que dá a impressão mais repugnante. Suja e asfixiante, habitada por povo dos mais reles, entregues às mais vís paixões, esse bairro é evitado não só pela sua falta de asseio como ainda mais pelos seus perigos que ali esperam pelo estrangeiro" (op.cit. 103)

  1. 3)Cafés turcos, espeluncas de estrangeiros pobres e o bazar em Istambul

Nas suas descrições de Constantinopla, von Hattorf considera três diferentes zonas da cidade, detendo-se em particular na região propriamente turca, caracterizada não apenas por edifícios suntuosos como também pelo comércio, em particular pelo bazar. Também aqui o seu relato ganha particular interesse pela atenção dada aos emigrantes e grupos subalternos da sociedade, entre êles curdos, armênios e gregos, empregados então em serviços pouco qualificados e mais pesados.

"Constantinopla divide-se em três partes principais. Em primeiro lugar a cidade turca Stambul, habitada quase que exclusivamente por maometanos. Nela se encontram os nobres palácios imperiais, as mais famosas mesquitas, entre elas a saber a Aja Sofia, o Seraskierat (Ministério de Guerra), o Ekmeidan, uma grande praça livre usada no passado para corridas e jogos e onde se encontra o antigo quartel dos Janitscharen. Além disso, encontram-se nas proximidades as mil colunas, uma antiga cisterna na qual hoje se encontra uma tecelagem de seda, assim como as colunas de bronze da serpente e da peste, envoltas em lendas. Nesse Stambul pode-se em geral apenas alcançar o consumo de café, Nargileh e Tschibuk. Cervejarias há apenas bem próximas à estação de Stambul. No mercado de peixe há algumas espeluncas reles, nas quais as classes mais baixas, a saber Hamals (carregadores, em geral curdos) ou Kaikschis (barqueiros, em geral armênios ou gregos) tomam a sua Pentade Mastika (uma aguardente feita de Mastir). Famoso é o bazar turco de Stambul, quase que um bairro totalmente coberto, no qual um estrangeiro pode-se perder. Quase todos os produtos que o Oriente, a Europa e a África oferecem podem ser ali obtidos" (op.cit. 103 ss.)

  1. 4)Vida popular plurinacional, promiscuidade e problemas sociais em Galata

Nas suas expressões relativas à vida popular na zona socialmente mais problemática da cidade, von Hattorf manifesta as suas próprias imagens negativas e preconceituosas relativas a determinados grupos populacionais, entre êles judeus, gregos, romenos, armênios e malteses.

"Quando, partindo-se de Stambul quer-se ir à segunda parte de Constantinopla, deve-se comprar com uma moeda de prata uma passagem para a travessia de uma grande ponte que leva a Galatha ou se é obrigado a tomar um barco (...).

Como mencionado acima, Galatha é habitado pelo mais baixo povo. Judeus e gregos constituem a principal parte da população. Bebedeiras, faltas de vergonha e assassinado são ocorrências comuns. Prostitutas romenas que sacrificam a sua beleza ao pecado, gregos que não encontram iguais em esperteza no roubar, judeus, gregos e armênios que procuram embebedar com o pior vinho e licor os estrangeiros para depois roubá-los, arnautos e malteses que parecem apenas possuir a faca para enfiá-las no peito ou de preferência no pescoço dos seus coviventes, esses são os habitantes desse bairro." (op.cit. 105)

5) Cervejaria como ponto de encontro de alemães em Pera, teatros e jôgo

Quanto à zona mais privilegiada da capital osmana, von Hattorf salienta o caráter europeu da sua principal artéria comercial, com as suas casas comerciais de artigos de moda e luxo e atmosfera francesa, uma espécie de "rua do Ouvidor" de Constantinopla.

O seu relato documenta também a existência de uma cervejaria como principal centro de encontro de alemães nessa época em que a estrutura da comunidade alemã no Bósporo ainda não estava desenvolvida. Registrando que nesses anos ainda não havia casas de espetáculo maiores na capital osmana, menciona a existência de teatros para divertimentos mais populares segundo modêlos internacionais, salientando as relações entre essa cena artística e o jôgo, este praticado em meio obscuro e de reputação questionável. O panorama que von Hattorf oferece da vida cultural européia da capital osmana sugere uma espécie de Montmartre no Oriente.

"O terceiro e mais nobre bairro de Constantinopla é Pera; situa-se em elevação montanhosa acima de Galatha. Quando se deseja ali chegar, deve-se ou ir com o trem subterrâneo ou se é obrigado a subir uma íngreme escada, em cujos degraus cães repousam cães sem dono (...) A rua mais elegante, totalmente de modêlo europeu desse bairro é a Grande rue de Pera. Nela se encontram os hotéis finos, cafés e a cervejaria do grego Janni, que, de coração um alemão, empenha-se em servir uma boa cerveja alemã a um público alemão. A casa de Janni é por assim dizer o clube alemão de Constantinopla; ali se encontram oficiais alemães e os senhores da Embaixada.

No meu tempo não havia teatro em Constantinopla, mas sim diversos palcos muito finos, como o Alcazar e outros. Ali se encontravam muito boas artistas de todas as nações. Era nesses locais que nós, jovens, preferencialmente nos divertiam. Entretanto, não há rosa sem espinhos! Quem tornava-se mais conhecido em Pera, sabia, que logo atrás das salas de concerto havia salões menores, nos quais dominava a roleta, e quem podia resistir ao atraente rolar das bolas caía em geral ao rir fascinante, prateado rir das odaliscas que ali se encontravam. (...)

"Nessa época era inspetor da ferrovia e morava como tal nas proximidades da estação de Stambul. Quando queria espairecer à noite, precisava ir sempre a Pera. (op.cit.106)

Ida à América do Sul em navio de emigrantes e vida de desempregado na Argentina

A consideração da viagem e a vida de Hans von Hattorf na América do Sul, em particular no Brasil, pressupõe o conhecimento de suas experiências anteriores no Império Osmano e na África.

Como o autor salienta, há muito desejava partir para a América do Sul. Partindo de Bremen na nave Frankfurt do Bremer Lloyd, que levava emigrantes para Buenos Aires, o seu primeiro passo na capital argentina foi o de procurar um hotel alemão que lhe havia sido recomendado, Scharrenweber, de lá à embaixada alemã para se apresentar, a seguir a redação do La Plata-Zeitung, onde recebeu endereços de alemães influentes em Buenos Aires que poderiam auxiliá-lo na procura de emprêgo.

Von Hattorf descreve as dificuldades encontradas e os caminhos escusos que seguiu enquanto aprendia o espanhol, trabalhando como vendedor de charutos, na inspeção de construções e na produção de um guia de endereços.

Abandonando Buenos Aires pela Ferro carril del Oeste, sem destino determinado,  chegou a Tucuman. Como alemão, não tinha chances de emprêgo nas fábricas de açúcar locais, de propriedade inglesa. Em estância administrada por alemão, tornou-se por fim pastor de ovelhas, passando a viver num rancho, aprendendo a manusear laço e bolas. Nas pormenorizadas descrições da vida quotidiana de vaqueiros e posteros Hans von Hattorf faz referências à prática musical dos gaúchos, a cantos improvisados e à música de guitarra. (op.cit. 166)

Andanças no Uruguai a caminho do Brasil

Apesar de apreciar a vida dos pampas, que descreve como romântica, von Hattorf , no seu espírito aventureiro, desejou ganhar experiências no Uruguai, estando já aqui a caminho do Brasil, principal objetivo da sua viagem. Do porto de S. Nicolau partiu de veleiro a Colonias, uma colonia suíça de propriedade de um alemão, que explorava uma mina de grafite. A cavalo, em terreno sem caminhos abertos, seguindo cercas de arame farpado, dormindo ao ar livre ou em vendas ou estâncias. passou por Pando, Minas Gerais e Castillas.

"Alguns dias mais tarde, tendo passado Castillos, cheguei a uma colonia alemã, Santa Teresa, fundada por um médico alemão, Dr. Grauert de Montevideo. O povoado estava totalmente decadente devido ao fato do govêrno não cumprir as suas promessas após a morte de Grauert (...)Após quatorze dias de estadia não tive vontade de ali ficar mais e continuei a marcha a cavalo (....) Além de Santa Teresa alcancei um antigo forte arruinado, S. Miguel, chamado em geral fortaleza; era essa a antiga fortificação de limites com o Brasil e dizem ter sido construído pelos jesuítas. Bem à praia encontra-se nas proximidades um antigo navio de pirates, cuja tripulação teria sido executada em S. Miguel." (op.cit. 170)

Santa Vitória do Palmar: referências a roubo de cavalos por brasileiros

Entrando no Brasil pelo Uruguai, Hans von Hattorf alcançou, em maio de 1889, a cidade de Santa Vitória do Palmar, vizinha de Rio Grande a norte. As suas menções são de interesse para os estudos culturais dessa região de fronteira por documentar a prática do roubo de cavalos no Uruguai e sua venda no Brasil, o que explicava a sociedade marcada por jogos e violências da povoação.

"Estava agora próximo à fronteira brasileira, onde o espanhol dá lugar ao brasileiro, na verdade português. Passei sem ser incomodado a alfândega e alcancei ainda na mesma noite a cidadezinha brasileira mais a sul, Santa Vitoria, famosa devido a roubo de cavalos. Aqui procurei um alemão recomendado por um colono de Santa Teresa; com êle passei uma noite. " (op.cit. 175)

"O mais selvagem ocorria à noite em alguns antros de jogos frequentados só por ladrões de cavalos que ali perdem o dinheiro que ganharam com a venda de cavalos roubados na Banda Oriental del Uruguay. Nesse "jeu", os papéis principais são desempenhados pelo revólver e o facão, todo par de dias acha-se de manhã na rua o cadáver de um assassinado, que é levado sem maiores preocupações. Nessa noite, porém, Santa Vitória era duplamente perigosa." (ibidem)

Emancipação dos escravos em Santa Vitória do Palmar - procura de soutiens

O principal valor documental do relato de von Hattorf reside porém no fato de dar testemunho do modo com que foi recebida a notícia da emancipação de escravos naquela cidade fronteiriça.

"De repente soaram tiros, ouviu-se música selvagem e gradualmente desenvolveu-se um terrível escândalo na localidade: nesse dia havia chegado a depesche oficial que anunciava que no Brasil a escravidão tinha sido abolida. Os negros tinham caído por isso em tal alvoroço que parecia ser para um europeu pouco recomendável mostrar-se nas ruas. Já em tempos normas não se coloca o pé fora da porta em Santa Vitória, pois a polícia não oferece mais garantias depois desse horário. Os negros corriam com música nas igrejas e lá dançavam danças nacionais, atirando com as suas pistolas no templo. Menos perigoso era o comportamento das belas negras, a sua alegria sobre a liberdade expressava-se de forma menos riscante. Nesse dia, o corsett, essa camisa de força do gênero feminino, foi um artigo procurado em Santa Vitoria. Segundo a lei brasileira, o uso do corsett era apenas permitido às livres, e essas foram assim sempre olhadas com inveja por tal privilégio pelas belezas negras. Pelo assim dito não se espanta que todas essas filhas de Eva pretas quiseram obter tão logo quanto possível esse atributo da 'liberdade'. O resultado natural dessa forte procura foi que o artigo em poucas horas subiu enormemente de preço e que os donos de lojas fizeram ótimo comércio. Dentro de pouco tempo, porém, todo o estoque estava vazio, podendo-se ver as damas pretas só com sutien passeando pelas ruas.

A alegria dos libertos não tinha limites e precisou passar vários dias até que o alvoroço e o barulho nas ruas se acalmassem e os brancos pudessem deixar de novo sem perigo as suas casas e voltarem às suas ocupações." (op.cit. 175-176)

Sem meios no Rio Grande do Sul: atividades como dentista e pintor de túmulos

A vida que von Hattorf levou no Rio Grande do Sul explica-se pelo fato de encontrar-se totalmente sem meios após ter sido vítima de um roubo. Nessas condições, sentiu-se obrigado a usar de todos os meios para sobreviver e poder prosseguir a viagem. Sem demonstrar pejo no seu relato, descreve como fêz-se passar por dentista, sem ter para isso qualquer formação, apresentando-se como doutor nos povoados por que passava. Para ganhar dinheiro, oferecia-se também para diferentes trabalhos, apresentando-se como artista capaz de pintar letras em lápides de cemitérios.

"Após um dia de marcha cheguei à noite numa cabana de negros isolada, onde passei a noite. Ao nascer o próximo dia, quando queria partir, descobri que faltava o meu dinheiro. Ou o havia perdido na cavalgada ou tinha sido roubado já em Santa Vitoria. Era uma péssima coisa, mas a gente tem que saber procurar uma solução. Imediamente voltei à cidade e contei a minha infelicidade ao hospedeiro, que, porém, deu-me poucas esperanças em poder recuperar o perdido. Num momento tão crítico quanto este, deve-se ter decisão e procurar tão rápido quanto possível andar com as próprias pernas. Na minha desorientação, decidi-me a tornar-me dentista. Para esse fim, vendi o meu belo cinto de sela, que podia dispensar, recebendo 3 Milreis (6 marcos). Com isso fui à farmácia comprei por 1 Milreis clorofórmio e algodão e 20 centavos de sal, do qual fiz um pó muito fino com uma garrafa, e o doutor estava pronto"

"Depois de ter-me habilitado assim à arte de tiradentes, dei início à minha cavalgada ao longo da Lagoa Mirim e o Lago dos Patos de novo para o norte, em direção a Rio Grande. Em cada rancho, em cada fonda que tocava apresentava-me como dentista e tinha a sorte de encontrar frequentemente pacientes. Se os dentes estavam ocos, fechava os buracos com algodão molhado de clorofórmio até que o rosto começasse a inchar - sempre ajudava; se os dentes estavão sadios e se acreditava que as dores vinham de um resfriado, recomendava uma boa dose do meu recentemente descoberto sal milagroso para a narina do respectivo lado; regularmente desaparecia a dor nesse tratamento, ainda que o paciente vertesse lágrimas de dor. Fazia-me pagar de acordo com a situação do respectivo paciente, e ganhei assim uma bela porção de dinheiro. - Num pequeno povoado fechado encontrei um pátio onde se viam alguns túmulos, mas sem nomes. Ofereci-me para pintar os nomes dos falecidos; esse oferecimento foi aceito gratamente e a minha arte, ainda que pouco bem paga, foi pelo menos tão admirada como aquela de Rafael; em toda a localidade os habitantes não sabiam nem ler nem escrever." (op.cit. 177)

Na Europa não se pode fazer essas coisas, ali, porém, faz-se de tudo...

Com a descrição das suas atividades e experiências para sobreviver no Rio Grande do Sul, Von Hattorf oferece aos leitores europeus um quadro da situação de improviso que reinava em região pouco povoada e de de poucos profissionais. Sob essas condições, como salienta, qualquer um que tivesse um pouco mais de destreza podia fazer de tudo. Assim, atual como açougueiro e, noutra oportunidade, constatou a falta de homens para as mulheres locais, o que explicava oferecimentos que contrariavam normas convencionais.

"Uma vez cheguei a uma pequena estância e encontrei a dona, uma viúva, em apuros: ela precisava matar um porco e não tinha coragem; se eu o podia fazer? Por dinheiro e boas palavras disse que sim.

Interessante, na Europa não se pode fazer essas coisas, ali, porém, faz-se de tudo. - Também o porco matei a contento; Dona Eulália ficou encantada".

Como se vê, as minhas atividades eram diversas e a minha bolsa crescia aos poucos com as entradas.

Na continuidade da minha viagem, visitei a grande estância do capitão Milocca que se encontrava a caminho. Ali pernoitei e ofereci os meus serviços como curador, mas sem sucesso; Milloca, porém, sugeriu-me que ficasse ali para ensinar os seus filhos. Eu, como Dr. med., neguei e parti a cavalo. No meu caminho, cheguei ao rancho de uma velha mulata e coloquei-me á sua disposição. A velha senhora não me deixou em paz, precisei descer do cavalo e aceitar a sua Bombilla. Durante a conversa, entrou de repente uma bela mulata jovem com uma gaita de boca, e a velha pediu-me que com ela dançasse. O que podia fazer? Tive assim logo que dançar com a velha e com a jovem! Por fim, a velha perguntou-me de forma direta: 'quem era mais bela, ela ou a sua filhinha?' 'Ambas eram belas', respondi. 'Então fique ai, inglês, não temos ninguém que possa administrar os nossos negócios"' (...) Depois de ca. de dois meses e meio cheguei por fim ao Rio Grande do Sul. Tinha a intenção de ali ficar, não encontrei porém emprêgo. Por isso, continuei em direção a Pelotas, situada a um dia de distância; aqui também não tive sorte." (op.cit. 179)

Demonstrações de Panorama pelas colonias do Rio Grande do Sul

Tomando consciência de sua maior preparação intelectual, von Hattorf decidiu-se por fim tornar-se professor de escola em alguma colonia alemã. Na procura de um cargo, teve a oportunidade de ser convidado para acompanhar um dinamarquês em tournée pelas colonias para a apresentação de um panorama. Com essa menção, von Hattorf oferece um subsídio para a história cultural das colonias alemãs mais ao sul do Brasil.

"Como chegava às proximidades das colonias alemães mais ao sul do Brasil, especulei em fazer uso de meus conhecimentos filológicos, ou seja, de tornar-me professor em uma colonia qualquer. Ca. de uma hora fora da localidade encontrei-me no albergue "Tres vendas", onde a maior parte dos colonos de Santa Helena, Santa Antonia e Santa Clara relaxam quando trazem os seus produtos a Pelotas. Ali fui e encontrei ocupação. O vendeiro, um dinamarquês, tinha assumido uma grande tenda com belo Panorama de um engenheiro há pouco baleado e propôs-me fazer uma tourné junto com êle por todas as colonias e dar apresentações de Panorama. Aceitei. Nessa viagem ganhamos muito dinheiro. Como o Sr. O., porém, vivia muito bem, logo tudo voltou ao público. Com o tempo, enjoei-me desse ir e vir, e quando um dia foi-me oferecido um lugar de professor na colonia Santa Helena, aceitei-o e ali fiquei." (op.cit.179)

Atividades como professor e pastor em colonias alemãs mais ao sul do Brasil

Também o relato de sua atuação como professor na colonia mixta de Santa Helena oferece um quadro significativo das condições de vida e do ensino escolar dos colonos. Ao mesmo tempo, documenta também a improvisação que se fazia impunha  para o suprimento de necessidades religiosas, uma vez que, como mestre-escola, mesmo sem formação teológica, exerceu atividades de pastor.

"A colonia era muito pobre; os camponeses em grande parte ainda não tinham pago as suas terras, e a vida ali foi para mim de muita penúria, pois os pais pouco podiam gastar para o ensino escolar de seus filhos.

Os colonos provinham do Hunsrück, da Silésia, da Pomerânea, da Dinamarca e da Suíça. Era muito frequente haver dissensões em consequência dessas diferentes nacionalidades. Os vários assentamentos da colonia localizava-se em curtos intervalos num só caminho, de modo que as crianças podiam vir facilmente à escola. Essa era construída de bambús e coberta com tabuinhas. Recebi ca. de 40 alunos para ensinar. Devia ensiná-los a contar, ler, escrever e cantar. Como os pequenos tinham boas aptidões e tendo eu por isso visto logo progressos, interessei-me por fim pela coisa e empenhei-me muito. Assim passou ca. de um ano; um dia veio um colono e fêz-me uma proposta. Não queria tornar-me pastor do povoado? "Por que não, se me querem!" retruquei. Depois de ter a minha afirmativa, sentou-se a seu cavalo e fêz propaganda para mim, indo de uma a outra colonia coletando assinaturas para a minha candidatura. Após ter-se conseguido o número necessário de votos, convocou-se uma reunião da comunidade, na qual fui proclamado solenemente a pastor. O meu serviço ficou o mesmo de antes, só que devia fazer uma pregação de duas em duas semanas e recebia por ela um pouco mais de salário. Casamentos, batizados e enterros eram pagos extra. Tinha além do mais a obrigação de visitar com frequência os colonos em casa para tratar com êles sôbre assuntos e coisas que tinham a ver com tudo, menos com Teologia.

Assim passou mais um ano. Um dia, anunciou-se uma reunião da escola, da qual já tinha tido conhecimento particular, e na qual não se trataria de assungos escolares. A comunidade devia apenas moderar em questão de limites entre dois colonos. - Para isso, os membros da comunidade vieram com armas, revolver, facas, marretas, até mesmo com uma foice. A sessão quase que nem tinha sido aberta iniciou-se a balbúrdia. A minha influência como pastoral e também a minha intervenção patriarcal de nada valeram. Os murros tornaram-se cada vez mais gerais, de modo que por fim toda a assembléia caiu no combate. Quando os espíritos se acalmaram, vi que, embora não houvesse mortos, restavam muitos feridos. Mas também houve uma outra consequência: o povoado chegou à conclusão de se separar e formar duas comunidades, e sendo cada parte pequena demais para manter um professor e pastor, o meu ministério chegou de novo a seu término. Eu era um ex!" (op.cit. 179-180)

Incursões pelo interior entrada em regiões indígenas e assassinatos

A mais questionável parte do relato de von Hattorf diz respeito às suas vagabundagens pelo interior de terras entregue à caça por mera diversão. Nesse contexto, expõe um episódio no qual, entrando em terras indígenas, levou ao assassinato de dois Taipes, ou seja, de índios já há muito em contato com europeus e mesmo assimilados. A falta de comiseração, de auto-crítica ou sequer remorsos com que descreve esse ato oferece um testemunho da falta de consideração e desumanidade para com indígenas de europeus e seus descendentes. Esses crimes, sem punição, podiam assim ser expostos friamente em relato de viagens e publicado na Europa.

"Em perigo de vida estivemos apenas uma única vez. Era justamente no dia de Ano Novo. Verly e eu tínhamo-nos distanciado bastante de Santa Helena e tínhamos cavalgado ca. três semanas  em rumo ocidental, não sabíamos mais onde estávamos. (...) Tinha apenas galopado um curto trecho quando de repente caiu-me um laço sôbre a cabeça, o meu pescoço foi apertado e cai de cabeça para baixo do cavalo no capim. Um momento depois um índio já punha o seu joelho sobre o meu peito e o seu facão na garganta; não podia defender-me. Nesse momento, veio de trás de mim uma bala e o índio que estava ajoelhado sôbre mim deu um salto às alturas, rodou e caiu morto a meu lado. Um outro índio, que até então não tinha visto, passou no mesmo momento por mim e Verly como uma sombra perseguindo-o. Tudo isso aconteceu de um momento a outro. Quando voltei a mim, vi o cavalo do índio morto tranquilamente amarrado no laço que o morto segurava às mãos (no desenho reconheci-ase ser um índio Taipes). Subi nesse cavalo e cavalguei em carreira atrás do meu camarada. Cheguei no tempo certo, pois quando Verly estava chegando perto do outro índio, quis êle com o machado que cada um de nós levamos nessas expedições atirá-lo do cavalo, êle não conseguiu e o machado voou de lado. Nisso, o índio virou-se e arremessou as bolas em Verly. Este, com a segurança dos índios no arremessar bolas estaria sem dúvida perdido se não estivesse perto e não tivesse baleado o índio do cavalo antes que ocorresse o játil mortal. (....) Como porém raramente dois índios estão sós, pusemo-nos a caminho tão logo quanto possível e vencemos distâncias tão grandes quanto pudemos. Oito dias mais tarde estávamos de novo na colonia sem sermos importunados por outros índios." (op.cit. 184-185)

Tristezas e esperanças ambiciosas da vida no Estrangeiro

A visão que von Hattorf oferece das colonias alemãs mais a sul do Brasil é, assim, marcada pelas suas diversas experiências e surge sob o signo da improvisação, da instabilidade, da falta de leis e da insegurança de populações que lutavam pela sobrevivência. Nessa situação, as tristezas eram muito maiores do que as alegrias. Ao mesmo tempo, porém, os colonos eram imbuídos de esperanças de enriquecimento, de ambição e avidez, o que von Hattorf sugere a partir da sua própria experiência ao descobrir ouro.

"Ali ocorre no interregno uma grande infelicidade; um colono, que tinha levado o seu milho a Pelotas e na volta quis passar o seu caminho com a carroça vazia, como é de uso, foi  porém desajeitado e os cavalos, êle próprio e duas criançãs que estavam na carroça foram atingidos pela correnteza e afogaram-se. Essas são as alegrias de colonos!  (op.cit. 185-186)

Numa outra excursão vi que as margens de um rio de montanha luziam como ouro após um temporal. Peguei uma prova da arei e enviei ao Sr. Cônsul Fraeb no Rio Grande do Sul. Este mandou-o examinar pela Casa da Moeda imperial do Rio de Janeiro. Lá constatou-se que a minha prova continha muito ouro, mas não a modo de parecer ser vantajoso explorá-lo, já que os salários são muito altos." (loc.cit.)

(....)

Momentos e materiais de ciclo de estudos sob a direção
de
Antonio Alexandre Bispo



Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "De militar em guerras balcânicas e inspetor de ferrovia em Constantinopla a professor e pastor em colonias alemãs no Rio Grande do Sul. Experiências na luta pela sobrevivência de Hans von Hattorf (Bielefeld) no seu significado para estudos internacionais de processos culturais em meios sociais desfavorecidos".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 144/17 (2013:4). http://revista.brasil-europa.eu/144/Von-Hattorf-na-Turquia-e-no-Brasil.html