Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 145/20 (2013:5)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)


© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3042




O Latim e a Ciência: propostas para uma análise linguística


Prof. Dr. Leonardo Ferreira Kaltner (UFF)

 

Resumo


Consiste o presente artigo em uma investigação sobre o uso do Latim nas Ciências Naturais. No presente artigo, desenvolvemos as possibilidades de análise linguística deste uso, através da Linguística Textual. A partir deste contexto, destacamos a obra do naturalista alemão Carl Friedrich Philipp von Martius (1794 – 1868). Carl Friedrich Philipp von Martius foi um cientista pioneiro dentre os que descreveram a natureza do Brasil, tendo participado de uma expedição científica ao Brasil na época da Independência, entre os anos de 1817 e 1820: a Missão Austro-Alemã. Assim, debateremos as possibilidades de análise linguística de uma de suas obras de Botânica escrita em Latim, a Historia Naturalis Palmarum (História Natural das Palmeiras), publicada em três volumes, de 1823 a 1850.

Palavras-chave: Língua Latina, Linguística Textual, Carl F. P. Von Martius


 

Introdução 

Um dos usos contemporâneos do Latim é aquele ainda registrado nas Ciências Naturais, sobretudo para fins de taxionomia de seres vivos, i.e., classificação de espécies vegetais e animais, sendo o Latim Científico uma língua internacional da Botânica, conforme cita Stearn em sua obra Botanical Latin: “Botanical Latin is an international language used by botanists the world over for the naming and description of plants” (STEARN, 1996, p. 3). Neste contexto, no presente artigo, analisamos a presença do Latim como língua de expressão das Ciências Naturais, sobretudo da Botânica, para a descrição do patrimônio natural brasileiro. Assim, tomamos como corpus de trabalho a obra Historia Naturalis Palmarum (História Natural das Palmeiras), publicada em três volumes, entre 1823 e 1850, organizada pelo naturalista alemão Carl Friedrich Philipp von Martius (1794 – 1868), um dos cientistas pioneiros na descrição da natureza brasileira, que nos legou uma vasta obra sobre o tema. Buscamos, desta forma, indagar quais possibilidades metodológicas de análise linguística se apresentam viáveis para desenvolvermos uma abordagem desta obra científica escrita em Latim, além da tradução do texto.

A fim de desenvolvermos uma análise do processo de tradução deste corpus de trabalho, tão específico e singular, inferimos que uma das principais formas de abordagem para estas obras é, certamente, a análise linguística, tendo em vista que este corpus se constitui de obras com textos, e, em alguns casos, com  imagens, que não possuem cunho literário ou artístico. Logo o campo de estudos contemporâneos da Linguística Textual (LT) mostra-se, neste contexto, como um dos mais propícios para analisar este corpus textual, pelo fato de que as obras científicas escritas em Latim no século XIX apresentam um uso linguístico específico, surgido a partir de uma modalidade de linguagem criada e desenvolvida no contexto das Ciências Naturais modernas, interessando-nos assim analisar as propriedades específicas deste gênero textual, descrevendo o Latim Científico como uma modalidade específica de linguagem, o que se vincula ao campo de investigações da Linguística Textual, conforme cita Leonor Fávero e Ingedore Koch: “Sua hipótese de trabalho consiste em tomar como unidade básica, ou seja, como objeto particular de investigação, não mais a palavra ou a frase, mas sim o texto”  (FÁVERO, 2012, p. 15).

A partir de uma abordagem textual, embasada na Linguística Textual (Textlinguistik), podemos desenvolver também uma análise do uso do Latim Científico, distinguindo os traços próprios desta modalidade de linguagem e seu emprego pela Ciência, além da comparação morfossintática com o Latim Clássico. Assim, dedicamos mais adiante uma seção do artigo debatendo quais correntes linguísticas e qual abordagem, relacionadas à Linguística Textual, seriam mais apropriadas para a análise deste uso do Latim nas Ciências Naturais, oferecendo um exemplo de proposta de análise linguística intertextual de um excerto do primeiro volume da Historia Naturalis Palmarum.

Ao mesmo tempo qualquer análise sobre este objeto de estudos apresenta-se como interdisciplinar, sobretudo quando consideramos os textos escritos por Carl Friedrich Philipp von Martius em Latim, no século XIX, com temática relativa  às Ciências Naturais, como participantes de um processo social, histórico e cultural que se remete à tradição letrada e erudita que constitui a História das Ciências no Ocidente, sobretudo a época compreendida entre o final do século XVIII e o início do século XIX, época de duas grandes revoluções no continente europeu: a revolução industrial e liberal inglesa e a violenta revolução francesa, que culminou nos excessos das guerras napoleônicas. Neste contexto histórico, transformaram-se as Ciências rapidamente, conforme comenta o historiador marxista Eric Hobsbawn: “as ciências também refletiram na sua marcha a revolução dupla, em parte porque esta lhes colocou novas e específicas exigências, em parte porque porque lhes abriu novas possibilidades e confrontou-as com novos problemas” (HOBSBAWN, 2005, p. 383).

Além da questão histórica e cultural, outro campo de interdisciplinaridade das obras escritas em Latim Científico, certamente, é aquele relativo à Morfossintaxe do Latim Clássico. Ainda que não se caracterize a modalidade de escrita em Latim Científico de Carl Friedrich Philipp von Martius com o discurso literário ou ficcional, temos que a origem do Latim Científico, empregado pelo autor no século XIX, está diretamente vinculada à poesia e à prosa latinas do período Clássico e Pós-Clássico: “Botanical Latin derives from the Latin of the Roman writers about plants, notably Pliny, the Elder (A.D. 23 – 79)” (STEARN, 1996, p. 14). Desta forma, torna-se patente a interdisciplinaridade de suas obras com a área de estudos das Culturas da Antiguidade Clássica e das Letras Clássicas, sobretudo em relação à área de Língua Latina, quando investigamos questões relacionadas ao Léxico, à Morfologia e à Sintaxe.

Por conseguinte, esta análise linguística guia-nos, outrossim, a um debate sobre a própria constituição da tradição da Cultura Clássica no mundo ocidental, através, incialmente, da educação universitária humanística renascentista dos séculos XIV ao XVI (MANACORDA, 2006, p. 175 - 179), em seu diálogo com a construção das Ciências Naturais, ao longo dos séculos. Isto ocorre, sobretudo, pelo fato de que a apropriação do Latim enquanto veículo de expressão universal da Ciência foi um uso construído desde os primeiros textos científicos escritos no Ocidente, perpassando inúmeras gerações e contextos históricos, o que, por fim, obriga-nos a estabelecer um diálogo tripartite entre a Natureza, a Cultura e a Ciência, para definir e delimitar uma metodologia de análise para este fenômeno linguístico, que é uso do Latim em textos científicos.

Podemos, ao memo tempo, estabelecer na leitura da Historia Naturalis Palmarum uma investigação pautada no conceito de progressão referencial: “A progressão referencial se dá com base numa complexa relação entre linguagem, mundo e pensamento estabelecida centralmente no discurso” (KOCH & MARCUSCHI, 1998). Temos, sob esta perspectiva, a Natureza como referencial de mundo, o uso do Latim Clássico como um fator cultural, enquanto linguagem, e o método descritivo científico da Botânica como forma de pensamento, o que caracteriza as obras dos naturalistas do século XIX. Esta relação tripartite, necessária à análise linguística do autor, é consoante à relação estabelecida por Ingedore Koch e Marcushi, para a constituição da progressão referencial discursiva, em que dialogam “linguagem”, “mundo” e “pensamento”. Desta forma, através de um processo textual, o naturalista alemão, em sua obra, transforma os seres vivos da natureza, sobretudo os vegetais encontrados no Brasil, em objetos do discurso.

Por outro lado, uma reflexão do processo cultural e histórico que originou esta modalidade dialetal de Latim, empregada por Carl Friedrich Philipp von Martius, e praticada, sobretudo, pelos profissionais da área de Ciências Naturais dos séculos XVIII e XIX, com ecos até a época atual, guia-nos, diacronicamente, a obras de autores do período clássico e pós-clássico da Literatura Latina, como Plínio, o Velho (23 – 79 d.C.), autor da obra Naturalis Historia (História Natural) como supracitado, e a obra De Medicina (Sobre a Medicina) de Aulo Cornélio Celso (25 a.C. – 50 d.C.), certamente as principais fontes de inspiração para o desenvolvimento do Latim Científico.          Desta forma, o uso do Latim como instrumento das Ciências Naturais é um processo cultural complexo, inscrito em uma longa trajetória histórica, através da qual as civilizações ocidentais buscaram compreender e representar a natureza através da linguagem. Este fenômeno de representação da natureza pela linguagem humana é registrado desde os primórdios das Ciências no  Ocidente, tendo seu ápice a partir do século XVIII, com o surgimento da História Natural (FOUCAULT, 1999, p. 175 – 180). Portanto, uma análise sobre as representações científicas da natureza pela linguagem se evidencia também como um objeto interdisciplinar de estudos, que nos leva tanto ao campo da Filosofia da Linguagem, quanto à Sociologia da Ciência, o que evidencia este corpus de trabalho, por fim, como um objeto complexo, dentro dos pressupostos elencados na obra de Edgar Morin, acerca da transdisciplinaridade da época contemporânea (MORIN, 2000, p. 135 – 140).

1. Carl Friedrich Philipp von Martius: um naturalista alemão no Brasil

A própria biografia do naturalista alemão Carl Friedrich Philipp von Martius (1794 – 1868) é um tema tão instigante quanto à sua obra. Em recente artigo, foram debatidos alguns aspectos relacionados à sua biografia, a partir da descrição biográfica publicada no primeiro volume da Flora Brasiliensis (KALTNER, 2012). Esta biografia, escrita também em Latim Científico, merece ser reconsiderada em seus diversos aspectos históricos e culturais, mais pormenorizadamente, tendo em vista que este momento histórico representa um dos contextos mais importantes e complexos do Brasil, a época da Independência, em que a antiga colônia ultramarina lusitana estava prestes a transformar-se em um Império autônomo, nas Américas. Segundo os apontamentos do historiador Bóris Fausto, sobre este período histórico no Brasil, em que a corte portuguesa se transferiu para o Brasil, durante as guerras napoleônicas, em 1808 com a Abertura dos Portos do Brasil às nações amigas, temos que: “Além deles, vieram ao Brasil cientistas e viajantes estrangeiros, como o naturalista e mineralogista inglês John Mawe, o zoólogo bávaro Spix e o botânico Martius, também bávaro, o naturalista francês Saint-Hilaire” (FAUSTO, 2006, p. 69)

De certa forma, podemos afirmar que a expedição conhecida por Missão Austro-Alemã, ocorrida entre 1817 e 1820, da qual Carl Friedrich Philipp von Martius tomou parte, foi um empreendimento pioneiro ao vislumbrar a riqueza do patrimônio natural do Brasil, além da mera extração de minerais e da produção latifundiária monocultora predominante inicialmente, dos séculos XVI ao XVIII (RIBEIRO, 1995, p. 176 – 179). Logo as obras de Carl Friedrich Philipp von Martius apontam-nos o valor e a raridade das riquezas naturais encontradas na flora brasileira, que foram descritas em uma nova perspectiva científica, no século XIX.

A relação de Carl Friedrich Philipp von Martius com as Américas, e mais especificamente com o Brasil, desenvolveu-se no contexto da Missão Científica Austro-Alemã, ocorrida entre os anos de 1817 e 1820, em que o naturalista desbravou o território brasileiro. Assim, o simples fato de um cientista ter descrito o território e sua natureza na época da Independência do Brasil foi um dos primeiros marcos históricos para a superação do período de três séculos de colonização em que predominava, sobretudo, uma atividade missionária e catequética no Brasil Colônia. Será este momentum, então, uma época de transição nas concepções e descrições do Brasil. Suas obras, em alemão, sobretudo a Reise in Brasilien registrariam, como um diário de viagens, a situação das cidades e províncias brasileiras no século XIX, mormente a capital do futuro Império, o Rio de Janeiro, enquanto suas obras em Latim apresentaram a realidade do mundo natural, do reino vegetal brasileiro, ainda em grande parte desocupado e preservado.

Como um cientista e naturalista do século XIX, Carl Friedrich Philipp von Martius teve uma produção científica muito vasta, escrita e publicada em Alemão, sua língua pátria, e em Latim, enquanto língua universal para as Ciências Naturais, em seu período histórico, adotada por Universidades e Academias. Todavia, de sua vasta produção acadêmica, podemos notar que o principal tema de sua obra sempre está relacionado ao estudo do Brasil, desde os relatos de viagens com a Reise in Brasilien, até a sua principal obra, a Flora Brasiliensis, um tratado enciclopédico referente ao patrimônio natural constituído pela flora encontrada em território brasileiro. Ademais, Carl Friedrich Philipp von Martius estudou as línguas indígenas brasileiras, a fim de apreender também as propriedades medicinais das plantas e desenvolver uma pesquisa linguística sobre o Brasil, buscando muitas vezes a tradição indígena como primeira fonte para a sua pesquisa botânica. De seus estudos etnolinguísticos resultou um dicionário de línguas indígenas, o Glossarium Linguarum Brasiliensium, editado também em Latim.

Um dos principais traços textuais das obras do autor é uma progressão referencial tópica constante ao Brasil, como signo linguístico central de sua obra, a que se soma, no mesmo contexto, a América, ocorrendo diversas operações de referenciação[i], em seus diversos textos, o que teria, por princípio, o desenvolvimento de uma cadeia referencial progressiva[ii] intertextual, do signo Brasil. Podemos, desta forma, inferir que, como signo linguístico central de sua obra, o referencial Brasil constitui-se como um tópico recorrente, apresentando uma reincidência cognitiva de traços discursivos que conferem coerência e coesão a seu discurso, o que, por fim, faz com que dialoguem suas diversas obras em uma construção intertextual de uma imagem do Brasil do século XIX, como seu principal objeto discursivo. A título de exemplificação, acerca da construção deste referencial,  que é o Brasil do século XIX, vejamos um excerto da introdução de duas de suas principais obras, a Reise in Brasilien e a Historia Naturalis Palmarum.

A Reise in Brasilien (Viagem ao Brasil) é uma obra escrita em três volumes em que Carl Friedrich Philipp von Martius narra sua viagem entre 1817 e 1820 ao Brasil. A obra é escrita em co-autoria com Johann Baptiste von Spix, zoólogo que acompanhou Martius em sua expedição. Em seus três volumes, a obra narra desde a partida da Missão Austro-Alemã, que saiu da cidade de Trieste e percorreu os atuais estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Bahia, Pernambuco, Piauí, Maranhão,  Pará, Amazonas, durante três anos, em que coletou espécimes, descreveu as cidades e travou contato com diversos grupamentos indígenas.

Vejamos o breve relato do início de sua viagem, notando como se dá uma vislumbre da América, enquanto signo linguístico central, ou tópico discursivo, com diversas expressões, também pautadas por hipérboles, como um de seus principais traços distintivos:

“Amerika, dieser neue, erst seit wenigen Jahrhunderten bekannte Weltheil, war, von der Zeit seiner Entdeckung an, der Gegenstand der Bewunderung und vorliebe Europa's. Die glückliche Lage desselben, die Fruchtbarkeit und der vielartige Reichtum seines Bodens zogen den europäischen Colonisten und Kaufmann nicht weniger als den wissenschaftlichen Forscher an. Rasch bevölkerte und entwickelte sich so dieses jugendliche Land durch den lebhaften Verkehr des Mutterlandes und durch die Bemühungen der Gelehrten, welche auf ausgedehnten Reisen auch das Innere desselben kennen zu lernen wetteiferten. Unsterblich bleiben in dieser Hinsicht die Verdienste vieler muthvoller Forscher früherer Zeit sowohl als besonders der letzten Jahrzehende, durch welche Amerika mehr, als einer der alten Welttheile, Europa ausgenommen, aufgeschlossen wurde.” (MARTIUS & SPIX, p. 3)

“A América, esta nova parte do mundo, reconhecida pela primeira vez apenas a alguns séculos, foi, desde a época de sua descoberta, objeto de admiração e predileção da Europa. A sua própria situação favorável, fecundidade, assim como a riqueza do solo, atraem o colono europeu e o comerciante, não menos do que o pesquisador acadêmico. Rapidamente se povoou e assim se desenvolveu esta nova terra, pelo intenso tráfego marítimo de sua pátria-mãe e pelo empenho dos eruditos, que, através de longínquas viagens, rivalizaram também em desbravar o seu próprio interor. Permanecem vivos até hoje, a esse respeito, os méritos de muitos exploradores, plenos de ânimo, não só de épocas mais antigas, mas também, sobretudo, das últimas décadas, por meio dos quais a América tornou-se mais aberta, mais do que outras partes do Velho Mundo, excetuando-se a Europa.”

Outro excerto que demonstra a imersão do autor no Brasil e na natureza brasileira é o praefatio da Historia Naturalis Palmarum, temos, notadamente, uma construção textual com diversas hipérboles e até uma certa personificação da palmeira no Brasil, com sua “limpidíssima aura”:

Palmam quum primum conspexi in Brasiliae limpidissimam auram emicantem, stirpis venusta majestate, quae tanquam blande murmurantibus comis felicem itineris exitum praesagiret, bono hoc augurio commotus ilico apud me constitui palmis impigrum impendere studium, ut de ordine ad id usque tempus non ita bene illustrato novam certiorem scientiam in patriam reportarem. Quod quidem propositum diligenter ac strenue tenebam, nec sine fructu laboravi, ita ut domum reversus in hoc opere, inchoato auspiciis Maximiliani Iosephi I. Bavariae Regis, qui ipsius itineris auctor extiterat, copiam harum stirpium satis amplam secundum genera et species digerere iconibusque illustrare potuerim (MARTIUS, 1823, p. 1). 

“Quando eu, pela primeira vez no Brasil, contemplei uma palmeira, resplandecendo com uma aura tão límpida, pela majestade encantadora desta árvore, que tanto parecia pressagiar o feliz êxito de nossa expedição, murmurando de forma branda suas folhagens, comovido com este bom augúrio neste mesmo lugar, combinei comigo mesmo empreender um estudo enérgico sobre as palmeiras, a fim de que eu reportasse um conhecimento novo e mais acertado sobre esta ordem até o presente momento ainda não tão bem descrita. Em verdade, neste propósito, em que me detinha diligente e firmemente, trabalhei obtendo tantos resultados, a tal ponto que, quando retornei para casa, pude, neste trabalho começado sob os auspícios de Maximiliano José I, rei da Baviera, que se manifestara como patrocinador desta mesma expedição, reunir um tão amplo acervo destas árvores, segundo seus gêneros e espécies, e ilustrá-las com imagens”.

Podemos notar que a construção da identidade do Brasil, na obra de Carl Fridrich Philipp von Martius, é antes uma construção desta realidade enquanto objeto de discurso. Conforme comentou Marcuschi, o texto, ou discurso, possui a característica de constituir-se como uma realidade por si só, além do seu referente: 

“Nunca teremos certeza de como é o mundo em si. Já Kant postulava esta visão com grande acuidade e imaginava que não temos acesso ao “ser em si”, ou seja, ao mundo nuomênico, ao fenômeno puro, de modo que, ao termos de acessar o mundo pelo discurso, é do discurso que partimos e não do mundo como tal” (MARCUSCHI, 2000, p. 4).

Desta forma, ainda que sejam textos oriundos de uma modalidade científica, dentro de um padrão pré-estipulado, as obras de Carl Friedrich Philipp von Martius, como as de qualquer outro autor que se vale da escrita, não foge dos mecanismos de funcionamento da gramática textual, ao transformar referenciais da realidade em objetos de discurso.

2. Linguística Textual e Latim Científico: proposta de análise para as obras de Carl F. P. Von Martius 

Uma das possibilidades para a análise linguística do Latim Científico empregado por Carl Friedrich Philipp von Martius, em suas obras, apresenta-se a partir das teorias relacionadas à Linguística Textual, como supracitado, caracterizando-se, por fim, esta análise no contexto de uma busca pela gramática textual, sobretudo, neste caso, a gramática do texto científico escrito em Latim, no campo científico da Botânica. A partir das teorias, relacionadas à Linguística Textual, apresentadas, por exemplo, por Leonor Lopes Fávero e Ingedore G. Villaça Koch, na obra Linguística Textual (FÁVERO & KOCH, 2012), podemos debater qual seria a teoria mais apropriada, na história recente deste campo da Linguística,  para analisar o discurso científico referente às Ciências Naturais. Ainda que possamos inferir que a trajetória da Linguística Textual no Brasil é uma tradição incipiente, datando os primeiros trabalhos acadêmicos das últimas décadas do século XX, o desenvolvimento deste campo de estudos no século XXI é um dos mais promissores para se analisar a produção textual científica.

O fato de a Linguística Textual ater-se ao estudo do texto, além do nível da frase, é o principal motivo que favorece a análise dos textos científicos escritos em Latim, sobretudo as obras da área das Ciências Naturais, justamente por possuírem estes textos a morfossintaxe do Latim Clássico, diferenciando-se dos textos clássicos apenas no nível transfrástico. Por outro lado, por se tratarem de uma modalidade de uso da linguagem muito específica, para a representação da natureza, enquanto fenômeno de observação científica, os textos de Botânica escritos em Latim participam de um contexto muito específico na História das Ciências, e apresentam características textuais únicas. Desta forma, o processo de análise linguística deste tipo de texto pauta-se em descrever e aquilatar como este processo de representação da natureza pela linguagem se apresenta, como se constituiu historicamente, a partir da apropriação do Latim Clássico, inicialmente literário e vinculado à educação humanística renascentista, transformado pelos naturalistas em um novo dialeto e modalidade de Latim, o Latim Científico, empregado nos séculos XVIII e XIX, sobretudo. Por outro lado, cabe ao pesquisador investigar quais processos linguísticos são utilizados para transformar os referentes da natureza em objetos do discurso.

Dentre as escolas e autores que desenvolveram a Linguística Textual, na Europa, havendo grande influência de linguistas da Alemanha, existem dois grandes grupos e posicionamentos metodólogicos para a análise da gramática texto. Se por um lado, há os estruturalistas, que se voltam incialmente ao texto,  para, a partir da sua análise, desenvolver uma descrição linguística, através da evidenciação das “propriedades específicas do texto”, por outro lado, há os gerativistas, que buscam desenvolver “macroestruturas semânticas”, a partir da “construção de modelos de gramáticas textuais”, para desenvolver posteriormente a análise aos textos (FÁVERO & KOCH, 2012, p. 11 – 13). Desta forma, tendo em vista nosso objeto de pesquisas ser um corpus textual delimitado, a escolha metodológica pauta-se por uma análise linguística estrutural das obras de Carl Friedrich Philipp von Martius, ao menos inicialmente.

Leonor Fávero e Ingedore Koch apresentam as principais escolas linguísticas que se desenvolveram no século XX (FÁVERO & KOCH, 2012 p. 52 e seguintes), todavia, nenhum dos autores apresentados se ativeram exclusivamente às Línguas Clássicas como principal objeto de estudos. De Hallyday a Weinrich, passando por Ducrot, as maiores atenções foram dadas a textos escritos em Línguas correntemente em uso, e em nenhum caso os autores tiveram como objeto de estudos textos escritos em Latim Científico. Entretanto, na obra Botanical Latin do botânico William T. Stearn, encontramos alguns fundamentos sobre o uso do Latim pelas Ciências Naturais que podem auxiliar à proposta proposta de analisar linguisticamente, através da Linguística Textual, o Latim Científico utilizado pela Botânica, partindo, sobretudo, de um fundamento comum a todas as Ciências, de que o ato científico é também por excelência um ato linguístico (THIELMANN, 2012). A partir destes pressupostos, a Linguística Textual pode se tornar um instrumento eficaz para a análise dos processos linguísticos empregados pelas Ciências Naturais para descrição da natureza.

Uma das principais características textuais apresentadas nas descrições da Botânica do século XIX, em Latim Científico, é uma busca pelo aprofundamento do texto em uma referência extratextual ao objeto da natureza descrito pelo naturalista, o ser vivo do reino vegetal observado. Segundo o conceito de referência de Hallyday e Hasan, apresentando por Leonor Fávero e Ingedore Koch (FÁVERO & KOCH, 2012 p. 50 – 51), podemos afirmar que este fenômeno trata-se de uma referência inicialmente situacional, exófora, utilizada pelo naturalista para nomear e delimitar este ser vivo.

Após esta referência situacional, em que se dá o processo de nomeação das regiões visitadas e da flora observada, nas obras dos naturalistas ocorre, geralmente, uma descrição pormenorizada das partes componentes destes seres vivos, que ao serem dissecados e decompostos, são descritos. Desenvolve-se assim esta descrição por um processo de referência textual endófora, seguida da análise das partes das regiões visitadas e dos seres vivos observados, metonimicamente. Suas partes são descritas, progressivamente, uma a uma, de forma anafórica, relacionando-se sempre uma a outra, enquanto o autor especifica por adjetivos os atributos da região geográfica ou do ser vivo analisado. Desta forma, o texto é constituído, geralmente, através de frases nominais, dispostos de forma assindética, havendo poucos verbos na descrição, mas pode-se notar uma relação sintática entre os termos empregados, apenas pelos traços semânticos entre os mesmos. Há, por exemplo, uma hierarquia entre os termos empregados e a sua disposição no texto evidenciam o modus faciendi de identificação da espécie, para fins de taxionomia. Logo, para uma maior compreensão do texto, faz-se necessário estabelecer uma cadeia de progressão referencial após a tradução da obra. O conceito de cadeia referencial é assim descrito por Cláudia Roncarati e Sílvia Regina Neves da Silva:

“Segundo Koch e Marcuschi (1998, p. 170) e Marcuschi (1999, p. 2), a progressão referencial diz respeito à introdução, identificação, preservação, manutenção e retomada de referentes textuais, correspondendo às estratégias de designação de referentes e formando o que se pode denominar cadeia referencial” (RONCARATI & SILVA, 2006, p. 322).

Desta forma, a título de conclusão, podemos inferir que a análise linguística do Latim Científico, empregado por Carl Friedrich Philipp von Martius, na obra Historia Naturalis Palmarum, pode ser mais uma ferramenta para a análise da obra, durante o seu processo de tradução. Ao mesmo tempo, nossa análise busca demonstrar a importância do Latim Clássico na Idade Moderna, pelo fato de ter servido como língua universal das Ciências, durante vários séculos, estando muitas obras científicas, escritas em Latim, ainda inéditas em Língua Portuguesa. Poderíamos citar, além dos naturalistas, como Carl Friedrich Philipp von Martius, Carolos Linnaeus, dentre outros cientistas das mais variadas áreas do saber. De físicos como Isaac Newton a filósofos como Francis Bacon e matemáticos como Leibniz, há inúmeros autores que se valeram da antiga língua do Lácio, oriunda inicialmente da poesia e da prosa da Roma Clássica, para construir a Ciência como a conhecemos hoje.


Latin and Science: proposals for a linguistic analysis

Abstract

This article consists in an investigation into the use of Latin in the Natural Sciences. In this paper, I develop the possibilities for linguistic analysis of this use through Text Linguistics. From this context, I highlight the work of the German naturalist Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868). Carl Friedrich Philipp von Martius was a pioneering scientist among those who described the nature of Brazil, and participated in a scientific expedition to Brazil at the time of Independence, between the years 1817 and 1820: the Austro-German Mission. Thus, I will discuss the possibilities for linguistic analysis of one of his works written in Latin Botany, the Historia Naturalis Palmarum (Natural History of Palms), published in three volumes from 1823 to 1850.

Keywords: Latin Language, Text Linguistics, Carl F. P. von Martius.


 

Referências

ANTHEUNISSE, Max. Elegans. Disponível em: <http://www.plantillustrations.org/epithet.php?epithet=elegans&lay_out=1&hd=0> acesso em 09.05.2013.

CARDOSO, Zélia de Almeida. Literatura Latina. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

FAUSTO, Bóris. História concisa do Brasil. 2. ed. São Paulo: EdUsp, 2006.

FÁVERO, L. L. & KOCH, I. G.V.  Lingüística Textual: introducão. 10. ed. São Paulo: Cortez, 2012.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

GAFFIOT, Félix. Dictionnaire Latin Français. Paris: Hachette, 2001.

HOBSBAWN, Eric. A Era das Revoluções: 1798 – 1848. 19. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

KALTNER, Leonardo F. Anotações sobre a biografia do naturalista Carl Friedrich Philipp von Martius. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira, v. 139, n. 5, p. 18, set./out. 2012. Disponível em: <http://www.revista.brasil-europa.eu/139/Kaltner-Carl-Friedrich- Philipp-von-Martius.html> Acesso em: 10 mai. 2013.

KOCH, Ingedore & MARCUSCHI, Luiz Antônio. Processos de referenciação na produção discursiva. Revista DELTA, São Paulo, v. 14, Special Issue, p. 169-190, 1998.

MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação. 12. ed. São Paulo: Cortez, 2006.

MARCUSHI, Luiz Antônio. Referenciação e progressão tópica: aspectos cognitivos e textuais.  Revista do GELNE, Fortaleza, v. 2, n. 2, p. 1 – 11, 2000.

MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von & alii. Flora brasiliensis. Stuttgartiae et Tubingiae: Sumptibus J. G. Cottae, 1829-1833, 2v.

________ & alii. Flora brasiliensis. Fasciculus CXXX. Monachii: Apud R. Oldenbug, 1906.

________ & alii. Historiae Naturalis Palmarum. Lipsiae: apud Frid. Fleischer, 1823-1850, 3v.

MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von & SPIX, Johann Baptist von. Reise in Brasilien. München: Lindauer, 1823. v. 1.

MISSOURI BOTANICAL GARDEN. Digitized titles by: Martius, Karl Friedrich Philipp von,

(1794 – 1868). Disponível em: <http://www.botanicus.org/creator/504> Acesso em 10 mai. 2013.

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000.

RIZZINI, Carlos Toledo. Latim para botânicos. Bahia: Fundação Gonçalo Moniz, 1955.

STEARN, William T. Botanical Latin. 4. ed. Portland: Timber Press, 1996.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

RONCARATI, Cláudia & SILVA, Sílvia R. N. da. A construção da referência e do sentido: uma atividade sociocognitiva e interativa. Gragoatá, Niteroi, v. 21, p. 319 – 337, 2006.

THIELMANN, Winfried. Zur Einzelsprachenspezifik wissenschaftlichen Sprachausbaus im gnoseologischen Funktionsbereich von Sprache. Linguistik online, Bern, v. 52, 2012. Disponível em: <http//www.linguistik-online.de/52_12/thielmann.html>  Acesso em 10 mai. 2013.

 

  


[i]  O conceito de operações de referenciação é assim descrito por Luís Antônio Marcushi: “um elemento designa um universo e fenômenos nomeados por sinonímia ou até mesmo por substituição” (MARCUSCHI. 2000, p. 4).

[ii]  A definição de cadeia referencial na progressão textual e as relações anafóricas para a sua constituição são descritas por Cláudia Roncarati e Sílvia Regina Neves da Silva, em artigo sobre o processso de contrução de objetos do discurso, a partir de uma perspectiva sociocognitiva interativa (RONCARATI & SILVA, 2006, p. 319 – 337).



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Kaltner, Leonardo F. "
O Latim e a Ciência: propostas para uma análise linguística". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 145/20 (2013:5). http://revista.brasil-europa.eu/145/Latim-e-Ciencia.html