Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Narbonne.Foto A.A.Bispo©


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Narbonne.Foto A.A.Bispo©

Fotos.A.A.Bispo.
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 145/13 (2013:5)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)


© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3035




Latinização do sul da Gália nos seus elos com o mundo ibérico
nos estudos de fundamentos de proximidades culturais
Das reinterpretações dos Dioscuros mo culto de S. Justo e Pastor
em Narbonne e na Espanha


Ciclo de estudos em regiões francesas pelo ano de Marseille como Capital Européia da Cultura 2013 e 300 anos de Denis Diderot (1713-1784)

 
Narbonne.Foto A.A.Bispo©

A celebração de Marseille como Capital Européia da Cultura de 2013 dirige a atenção a seu significado como centro marcado por diversidade étnica e cultural no presente e ao papel que desempenhou como porto no Mediterrâneo em intercâmbios culturais desde a época de sua fundação como colonia grega na Antiguidade. (http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Protis.html)

Dela partindo viagens que alcançaram o Atlântico, tanto em direção à Àfrica como em direção ao Norte da Europa, comemoradas em dois de seus vultos históricos (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Euthymenes.htm; http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Pytheas.html) Marseille ocupa uma posição de importância numa história ampla de Descobrimentos e contatos entre povos.

Os estudos de relações entre o Mediterrâneo e o Atlântico referenciados segundo esse porto francês do Mediterrâneo surgem nesse sentido como de especial relevância para a análise de fundamentos de complexos culturais que do Atlântico se expandiram a regiões alcançadas à época dos Descobrimentos da era moderna.

Assim considerando, a celebração de Marseille como Capital Européia da Cultura assume também interesse sob a perspectiva do Brasil, o que motivou a realização de vários ciclos de estudos na própria cidade em 2012 e em outras regiões (Veja e.o. http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Estudos-e-Esclarecimento.html).

Significado do estudo do processo latinizador do sul da atual França

As reflexões encetadas na França em 2013 foram marcadas pelo direcionamento da atenção às terras do interior que, da esfera de influência do porto de Marseille e que passaram à romana, sobretudo através de vias de comunicação por terra às penínsulas itálica e à ibérica.

A consideração desse passado remoto do atual sul da França assume significado para estudos globais de abertura de estradas e de urbanização, de conquista e exploração de interior e de colonização de terras.

Sob a perspectiva dos estudos culturais relacionados com o Brasil, a sua relevância deriva sobretudo do fato de possibilitar o tratamento de questões de fundamentos de um complexo cultural ibérico-latino no qual se inseriu a região sul-francesa.

As interações com a esfera ibérica de uma região que surge como intermediária e mediadora no processo latinizador explicam o desenvolvimento cultural sul-francês na sua fisionomia diferenciadora.

Esses laços com o mundo hispânico decorrentes da situação geográfica e da antiga romanização explicam similaridades quanto a tradições que podem ser registradas em cidades sul-francesas, abrindo também perspectivas para estudos comparados de mentalidades.

Essa proximidade à Ibéria da região sul-francesa contribui também à compreensão do fascínio pelo munto hispânico que atingiu Paris no século XIX e que, por extensão, favoreceu os elos com a América Latina em geral e, no caso, também com o Brasil. (Veja e.o. http://www.revista.brasil-europa.eu/121/Imperatriz_Eugenie.html)

Narbonne.Foto A.A.Bispo©
De povoamento de origem ibérica à primeira colonia romana na Gália

A região do curso inferior do rio Aude foi habitada por um povo de origem ibérica, os Elysicos, sendo que os achados arqueológicos alcançam o século VI a.C.. A povoação situava-se na colina de Montlaurès, o local da atual Narbonne, local adequado para o controle da região e das suas vias.

Pode-se supor, assim, que imagens e concepções relacionadas com altos tenham desempenhado também importante papel religioso-cultural e que essas teriam sido então objeto de reinterpretação romana como em outras situações do império em expansão.

Nas cercanias da antiga povoação, os romanos fundaram ao redor de 120 a.C. Narbo Martius, a primeira colonia romana na Gália. Essa colonia tornou-se o centro de toda uma região que passou a constituir a Província da Gallia Narbonensis. Tornou-se um centro importante do comércio do Mediterrâneo e, como o segundo maior porto romano após Ostia, cidade frequentada por marinheiros e, consequentemente, marcada por modos de vida, expressões, tradições e práticas religiosas de homens de mar.

Como o museu de Narbonne expõe, numerosos fundos arqueológicos dão testemunho de um passado de apogeu econômico e cultural, este demonstrado pelos mosaicos, afrescos e plásticos do antigo bairro Le Clos de la Lombarde, considerado o mais belo conjunto arquitetônico romano fora da Itália. Não só as pontes que ligam as casas dos moradores, mas relitos de edifícios locais incluem-se entre os mais significativos da Antiguidade romana, entre êles o Horreum - um depósito de grãos - e o Lapidarium.


Ligação por terra de portos e comércio entre o interior o exterior


Como centro de intercâmbio comercial, a colonia era voltada tanto ao mar quanto á terra, sendo os produtos do interior exportados em troca daqueles trazidos pelas naves.

Narbonne desempenha um papel significativo na análise de processos coloniais relacionados com a abertura de vias de comunicação, caminhos e estradas que possibilitam o estabelecimento de vínculos entre povos e regiões e que adquire particular relevância para estudos culturais referenciados pelo Brasil. (Veja http://www.revista.akademie-brasil-europa.org/CM06-01.htm)

De Narbonne implantou-se a Via Domitia entre 120 e 118 a.C., estrada que recebeu a sua designação do nome de um pró-Consul (Domitius) e que representa considerável obra na história da construção viária.

Cruzando toda a região mediterrânea da atual França, a Via Domitia corria ao longo do litoral do Mediterrâneo, alcançava por um lado os Pireneus, por outro os Alpes, atravessando-os no passo de Montgenèvre. (Veja e.o. http://www.revista.brasil-europa.eu/097/FRANCE-BRASIL-Briancon.htm) Aqueles que vinham da região itálica, descendo pelo vale do Durance e Rhône, podiam alcançar as colonias galo-romanas e mais a longe, seguir para a Península ibérica.


A estrada vinculava assim as esferas culturais itálica e ibérica no contexto do intercâmbio entre o comércio marítimo do Mediterrâneo e o do interior, atingindo este mais ao longe o Atlântico. Narbonne tornou-se ponto de partida de uma outra estrada, a Via Aquitania, que levava ao interior, a Ocidente, em direção ao Atlântico à altura da atual Bordeaux.

Um trecho da Via Domitia, mantido e exposto no centro da cidade de Narbonne, demonstra a importância da estrada para o transporte pesado de cargas na atenção dispensada à sua pavimentação com grandes pedras e lages, pelo menos nas zonas urbanas que atravessava. O seu significado urbano evidencia-se também nas portas e arcos de entrada e saída da via nos núcleos urbanos.

Província Septmania dos Godos e alvo da expansão islâmica

Após a queda do Império Romano, tornando-se capital da Septmania dos Godos Ocidentais (413-720), a província mais ao norte do reino hispânico dos novos detentores de poder, Narbonne teve os seus elos com o mundo ibérico acentuados. Esse orientação geo-política explica estreitos elos com a história da cristianização ibérica, o que se evidencia na hagiografia e, assim, na consciência histórica de identificação cristã.

A proximidade à Península Ibérica e os vínculos possibilitados pela situação geográfica levaram também a que Narbonne fosse ocupada pelos árabes em 719, tornando-se até à sua recuperação em 759 a primeira cidade muçulmana da atual França. Com isso, a história de Narbonne é marcada pela luta contra o Islão e pela reconquista, ou seja, pela experiência que mais determinou culturalmente a Península Ibérica.

O culto de mártires ibéricos em Narbonne e memória histórico-cristã

O mais significante testemunho dos elos do sul da França com o mundo cultural ibérico pode ser visto no culto comum aos mártires Justus e Pastor, padroeiros tanto de Narbonne como de Madrid e Alcalá de Henares, sendo a sua veneração de importância para a vida religiosa e festiva de várias outras cidades da Espanha, entre elas Barcelona, Segovia, Huesca, Porrúa, Fustiñana e em Pontevedra, na Galícia.

Segundo a narrativa, os dois santos irmãos teriam nascidos em Tielmes/Madrid, tendo sido martirizados ainda meninos ao redor do ano 304 em Alcalá de Henares. O seu martírio cai no período crucial da cristianização da Península ibérica e da formação de uma consciência histórica cristã regional, ou seja, o da época da perseguição sob Diocleciano e que teria sido efetuada de forma particularmente cruel por Daciano.

A sua hagiografia, como em muitos outros casos pouco documentada e insegura, sugere que se teria levantado posteriormente uma capela no local do martírio e, à época da invasão islâmica, os restos teriam sido levados à França por um monge proveniente de Bordeaux e que havia sido capturado pelos mouros, passando a viver como eremita nos Pirineus. A festa desse monge, ainda vivo em Huesca, cai na mesma data daquela de Justus e Pastor, dia 6 de agosto. A tradição narrada explica dessa forma a difusão do culto aos mártires ibéricos em regiões francesas. No século XVI, em 1568, as relíquias teriam sido trazidas de novo a Huesca e a Alcalá de Henares, onde ainda hoje são veneradas.

Essa tradição narrada é assim marcada por relações entre o Mediterrâneo e o Atlântico, em diferentes direções, e mesmo entre o Atlântico da costa francesa e o Atlântico do Extremo Ocidente na Galícia, o que se manifesta na intensidade do culto em Pontevedra, onde pôde ser considerado em observações na igreja de la Pastora em 2012. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Compostela.html)

O renascer de interesses pelo passado e a consciência de elos ibéricos

Esse passado antigo e medieval de brilho a cidade perdeu nos séculos XVII e XVIII, um período de decadência comercial e que alcançou o seu ponto culminante com a abolição da Arquidiocese à época da Revolução Francesa.

O despertar da cidade e da consciência de seus habitantes acerca do passado local marcou o século XIX.

Como em outras cidades sulfrancesas, as possibilidades criadas por vias de comunicação fluviais e terrestres para o comércio de produtos e sobretudo o desenvolvimento da vinicultura levou a um florescimento da vida cultural. O Romantismo trouxe uma reconscientização histórica e uma valorização do passado antigo e medieval, o que explica a valorização do cunho ibérico na própria cultura de várias cidades do sul da França ocorrida no século XIX.

No presente, Narbonne procura estabelecer uma ponte do seu patrimônio histórico com o século XXI através de um grande programa de restauração de edifícios e obras urbanas e arquitetônicas.


Com a reconfiguração do seu centro, com a recuperação do mercado e muitas outras obras, a cidade faz jus ao título recebido do Ministério de Cultura e de Comunicação de "Cidade da Arte e da História".

Dessa forma, Narbonne desempenha importante papel na iniciativa atual de valorização do Patrimônio Histórico e Cultural da França, intensificado devido às Jornées européennes du patrimoine 2013. A cidade procura também corresponder a esse título através de um vasto programa de difusão cultural e de sensibilização para a conservação de bens culturais como importante fator da qualidade de vida.

Em Narbonne procura-se assim unir o empenho patrimonial com o pedagógico, o que se manifesta sobretudo nos seus museus. Procura-se, através de exposições e visitas guiadas, despertar a sensação do Descobrimento do próprio passado cultural na sua diversidade.


Reflexões a partir de estudos eurobrasileiros

A catedral de Narbonne, ainda que apenas em torso, distingue-se como monumento arquitetônico pelas extraordinárias proporções do seu coro gótico. Essas dimensões evidenciam o significado do templo na Idade Média e que se relaciona com a intensidade do culto da Justus e Pastor.

A festa dessas santos é das mais celebradas do calendário religioso em várias cidades da Espanha até o presente, com procissões, missas solenes e festividades profanas marcadas por expressões de alegria, música e competições.

Esse significado do culto a esses santos no passado e no presente na cidade sul-francesa e na Espanha constrata com a fragilidade da documentação hagiográfica. Muitas são as questões, assim que se levantam para o esclarecimento da história e das expressões culturais relacionadas com a veneração tão acentuada desses santos.

No confronto com essa situação na Galícia, em 2012 e no sul da França em 2013, novas perspectivas puderam ser abertas a partir dos conhecimentos resultantes de estudos de tradições brasileiras que vêm sendo desenvolvidos nas últimas décadas. No Brasil conservaram-se expressões religioso-culturais introduzidas desde a época do Descobrimento e que hoje permitem a elucidação de situações obscuras de sentidos como aqueles relativas aos santos Justus e Pastor.

A constatação de que se trata aqui de dois santos meninos, venerados conjuntamente como se apenas fossem um, cujas praticas denotam expressões relacionadas com crianças e com a infância, com a saúde e a cura, indicam similaridades com aqueles de Cosme e Damião no sentido tradicional popular dos gêmeos ou santos meninos, ou "dois-um".

No desenvolvimento dos estudos culturais e de religião comparada tem-se chamado repetidamente já há muito ao fato que tudo indica que aqui se trata da sobrevivência cristianizada da antiga imagem dos Dioscuros, de Pollux e Castor.

Da interpretação cristã de antigas imagens em referenciação histórica regional

A cristianização dessa antiga imagem nas figuras de Justus e Pastor no contexto cultural hispânico e sul-francês surge como plausível sob diferentes aspectos.

Como divindades veneradas sobretudo em círculos de navegantes, manifestando-se segundo a antiga tradição em fenômenos de luz no alto de mastros o mar, com culto amplamente difundido no Império Romano, a êles sendo dedicado um templo no Forum Romano e particularmente intenso em cidades costeiras como Ardea, é compreensível que os irmãos tenham sido venerados na primeira colonia romana no sul da Gália e maior porto marítimo romano após Ostia.

O culto itálico correspondia à tradição grega, supondo-se ter sido introduzido em Cumae,  colonia grega de Chalkis na ilha Euboia, também, no caso, marcada pela vida marítima. Devido às relações com a linguagem visual das constelações e suas correspondências com os elementos do ano natural, que a imagem era conhecida em outros contextos culturais sob diferentes designações.

Se a imagem dos Dioscuros era não apenas relacionada com a proteção a navegantes, mas também à cavalaria, sendo conhecidas as representações dos irmãos com cavalos, também na tradição popular de Justus e Pastor, como testemunham as tradições galegas de Pontevedra, denotam elos com cavalhadas. A imagem dos cavalos deve ser aqui naturalmente lida no seu sentido figurado, conhecido de outros contextos, tanto da antiga cultural como das tradições ainda vivas.

A própria denominação de Justus e Pastor - ainda que aqui se tornem necessários estudos etimológicos mais aprofundados - parecem indicar mecanismos de cristianização da antiga imagem. Os Dioscuros eram filhos de Zeus, pelo menos Pollux, o imortal, e Zeus era associado à justiça. Castor, o mortal, sugere elos com o terreno que tornaria compreensível uma interpretação como pastor de animais. As antigas imagens indicam concepções de espírito e matéria de natureza divina e matéria, do despontar da capacidade de sentimentos de justiça nos jovens em idade da razão, o que torna plausível a sua reinterpretação nos santos meninos em idade escolar e que se empenharam contra a injustiça que se fazia contra os cristãos perseguidos.

A antiga relação dos Dioscuros com o signo de Gêmeos, e assim com o elemento ar no ponto culminante da primavera e dos dias mais longos do hemisfério norte torna compreensível os seus elos com o sol ou com Apolo. Ter-se-ia, assim, na veneração dos irmãos meninos um outro aspecto do culto apolínio no Mediterrâneo, como considerado no âmbito do ciclo de estudos realizado em Marseille, em 2012. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Saint-Victor-de-Marseille.html)

A imagem de irmãos de diferente natureza mas estreitamente unidos correspondia àquela de Cautes e Cautopates da tradição mitraística, difundida sobretudo entre soldados e veteranos nas colonias romanas mais afastadas.


De ciclo de estudos sob a orientação de
Antonio Alexandre Bispo



Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "
Latinização do sul da Gália nos seus elos com o mundo ibérico nos estudos de fundamentos de proximidades culturais. Das reinterpretações dos Dioscuros mo culto de S. Justo e Pastor em Narbonne e na Espanha". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 145/13 (2013:5). http://revista.brasil-europa.eu/145/Narbonne-Elos-ibericos.html