Revista
BRASIL-EUROPA
Correspondência Euro-Brasileira©
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Fotos.A.A.Bispo.
©Arquivo A.B.E.
Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 145/14 (2013:5)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
Doc. N° 3036
Ressurgimentos do passado e de tradições no sul da França no Romantismo
e a simpatia pelo mundo ibérico/latinoamericano em Paris
Nîmes: de poesias de Jean Reboul (1796-1864) a Pedro II°
a Marguerite Long (1874-1966), mentora de brasileiros
Ciclo de estudos em regiões francesas pelo ano de Marseille como Capital Européia da Cultura 2013 e 300 anos de Denis Diderot (1713-1784)
Iniciados os trabalhos em 2012 com um ciclo de estudos em Marseille, a atenção foi dirigida à expansão insular grega ao Ocidente que determinou a história mais remota do maior porto francês do Mediterrâneo. A antiga Massilia surge como centro de irradiação da antiga cultura no interrelacionamento com outros povos, dando origem vários entrepostos para o comércio que levaram à formação de povoados.
Dando continuidade a esses trabalhos, a consideração da antiga cultura nas costas francesas do Mediterrâneo concentrou-se em 2013 no período romano. Considerou-se em particular a cidade que possui o mais significativo conjunto de monumentos e relitos arqueológicos da Antiguidade do Sul da França: Nîmes, situada no Departamento do Gard, na região de Languedoc-Roussillon.
Remontando ao antigo Nemausos, habitada já no século VI A.C., cuja denominação sugere a função numinosa do local como sede de um santuário, a cidade tornou-se uma das principais e maiores em dimensões e população da época romana a partir do século I A.C.. Ela já era um local importante de intercâmbio comercial com muitas regiões mediterrâneas, como documentado através de achados arqueológicos e que indicam elos com a Grécia e com a Etrúria.
A Torre Magna, monumento da remota época galoromana, foi então integrada à fortificação da cidade pelos romanos, surgindo assim como um marco simbólico da transformação político-cultural por que passou a então Colonia Augusta Nemausus.
O processo integrativo romano intensificou-se com a construção de uma via por terra ligando a península itálica ao sul da França e, através dela, à península ibérica: a Via Domitia (Veja), que seguia uma antiga via gaulesa, a Via Heracliana.
Se a criação dessa estrada e a rêde de caminhos dela originada marcou profundamente toda a região sul-francesa pelo interrelacionamento de cidades e pelos duplos elos com as penínsulas itálica e ibérica, a situação particular das localidades nela situadas e as circunstâncias de suas fundações e desenvolvimentos determinaram diferenças que precisam ser consideradas no estudo de suas fisionomias culturais e desenvolvimentos particulares que constituem pressupostos para a análise de relações com outras regiões e países.
Pont du Gard como ponto de partida de reflexões - significado da água para Nîmes
O Pont du Gard, o aqueduto romano nas proximidades de Nîmes, um dos principais objetivos de visitantes da França, abre perspectivas para estudos referentes a Nîmes. Essa ponte sobre o rio Gardon é nada menos do que a ponte de maior porte da Antiguidade e um dos mais importantes monumentos do mundo romano em geral.
A consciência atual do significado do Pont du Gard manifesta-se nas amplas instalações do centro cultural ali criado apos o seu reconhecimento como parte do Patrimônio Cultural do Mundo em 1985.
Em comparação com uma visita feita em 1975, quando ainda era possível trafegar por uma ponte lateral ao aqueduto, a situação atual da área, transformada em parque cultural e de lazer, difere não apenas pelas suas qualidades paisagísticas como também pelo empenho em valorizar o monumento no contexto geral do patrimônio cultural francês.
A visita a essa área dirige a atenção necessariamente ao significado da água para Nîmes. O monumental aqueduto surgiu da exigência de conduzir a água de fontes próximas à atual cidade de Uzès à antiga Nîmes. Para isso, os romanos não mediram esforços, uma vez que a água devia vencer uma topografia montanhosa, atravessar rochas em condutores subterrâneos e atravessar o grande vale do Gard, constituindo o todo - não apenas o aqueduto - uma obra surpreendente da antiga engenharia.
O significado da água para Nîmes relacionava-se com o culto, sendo o próprio nome da cidade derivado do deus Nemausus ali cultuado.Essa fonte, considerada sagrada, já não podendo suprir as necessidades da cidade que experimentara grande crescimento, levou à construção do aqueduto, possibilitando também a realização de grandes reformas urbanas e construções, além de vasta infra-estrutura para a distribuição pública e particular da água.
Água, culto imperial em Nîmes e o "templo de Diana"
Do significado da água de fontes para Nîmes abre perspectivas para a interpretação de sentidos de um dos principais monumentos do passado antigo da cidade, as ruínas do grande edifício conhecido como "templo de Diana". Esse templo atribuído á deusa encontra-se hoje integrado a um grande parque, os Jardins de la Fontaine, implantados no século XVIII.
Lê-se repetidamente que não haveria dados arqueológicos que justificassem a denominação do edifício segundo Diana, supondo-se um outro uso, talvez para uma biblioteca. Essa dúvida parece relacionar-se com o fato de que a fonte original da localidade, de remotas eras, era centro do culto a Nemausus, uma divindade masculina e que teria sido, na romanização, substituído por Augusto.
Nessa área de culto, o Augusteum, cujo local é sinalizado ao alto da área pela Torre Magna, o altar do imperador encontrava-se no centro de um odeon ou casa de ninfas, assim como o edifício conhecido como "templo de Diana".
A implantação do culto imperial não teria sido ordenado por Roma, mas sim produto de iniciativa local, talvez em gratidão e prova de pertencimento ao Império. Tratar-se-ia, assim, antes de uma reinterpretação de imagens, romanizando-se o antigo Nemausus, que passou a ser Augusto.
Essa reinterpretação de imagens apenas é compreensível se as concepções originais tivessem sido mantidas relativamente às suas relações imutáveis com o mundo natural. Sabe-se, de outros contextos, que o culto imperial era marcado pela imagem do sol, admitindo este múltiplas referenciações segundo os diferentes contextos e tradições, na cultura greco-romana em geral manifestando-se em Apolo (Veja e.o. http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Saint-Victor-de-Marseille.html).
Nesse sentido, o antigo Nemausus - assim como Augusto - não poderia ter sido o deus da fonte, esta relacionada com a lua, ou seja, com Diana, mas sim aquele que, em paralelo com o mito de Apolo, teria sido aquele que conduz a corea das musas. Explicar-se-ia, assim, a existência de um ninfeu, de um odeon e de um teatro na área.
Significado da configuração espacial do "templo de Diana" para os estudos culturais
Haveria assim, uma absoluta coerência de imagens, e o "templo de Diana", com a sua grande área livre e forma basilical, e que não corresponde ao plano de um templo, poderia ter sido uma espécie de salão para congregação e, talvez, atos com movimentos e géstica, sobretudo das jovens ninfas, virgens guiadas pela virgem Diana e vivendo em local retirado.
Tem-se conhecimento que as celebrações eram conduzidas por um flamine da cidade para o sacrifício e por consignados ou iniciados capazes de cair em êxtase ou furor entusiástico e que desempenhavam funções de tipo sacerdotal (lat. saevire).
Essa área do Jardim da Fonte de NÎmes assume, nesta interpretação, um extraordinário significado para o estudo de fundamentos antigos de práticas religiosas relacionadas com a música, as artes em geral e os conhecimentos e, provavelmente com práticas de êxtase entusiástica relacionadas com luz.
A romanização de antigos cultos locais, possibilitada pela existência de bases similares quanto a concepções e relações com o mundo natural e tendo sido provavelmente já precedida pela influência grega, foi fator e expressão de fidelidade e identificação com o Império. Tendo sido alcançada relativamente cedo na expansão romana pela sua situação geográfica, a região passou a ter um culto imperial muito intenso.
Essa interpretação facilita também compreender que, para além do altar a Augusto na área da fonte, esta na realidade vinculada a Diana, Nîmes apresenta um templo dedicado ao culto imperial no forum da cidade, hoje um dos monumentos da Antiguidade melhor conservados: a "maison carrée".
Se o "templo de Diana", na era cristã, tornou-se um mosteiro, o edifício no centro da cidade, este verdadeiramente um templo, foi transformado numa igreja, sendo hoje o monumento do gênero mais bem conservado da Antiguidade.
Na praça contígua, o visitante pode tomar conhecimento da dedicação do templo, reconstruída em 1758 por um erudito local a partir de indícios nos muros do templo.
"A Gaius Caesar, filho de Augusto, Cônsul; a Lucius Caesar, filho de Augusto, eleito Cônsul; o príncipe da juventude."
Esses dois jovens, cedo mortos, eram filhos de Marcus Vipsanius Agrippa (63 A.C.-12 A.C.), que mandou construir o templo, e que é conhecido e.o como criador do edifício predecessor do Panteão de Roma, genro de Augusto, por este adotados. Esse templo vinculado ao culto ido Imperador mas dedicado a jovens e à juventude leal ao imperador, que o amava como "pai adotivo", parece aproximar-se ao complexo de imagens e concepções considerado no ciclo de estudos realizado recentemente em Antalya, quando analisou-se a questão do amor de Antinoos ao imperador (Veja http://revista.brasil-europa.eu/144/Antinoos-e-Adriano.html). A veneração dos dois jovens, cedo mortos, assume também novas dimensões com os estudos encetados em Narbonne relativos aos santos meninos Justus e Pastor como provável resultado da reinterpretação cristã da antiga concepção dos Dioscuros. (Veja http://revista.brasil-europa.eu/145/Narbonne-Elos-ibericos.html) Em Nîmes, essa posição exemplar da juventude estariam representadas em Gaius Caesar e Lucius Caesar, "filhos" de Augusto.
A maison carrée, cujo significado foi reconhecido no século XIX, em época do redescobrimento romântico do passado de tanta importância para Nîmes, continua a irradiar impulsos na arquitetura atual e na configuração urbana contemporânea da cidade. Liberando a praça a seu lado, criou-se um espaço que é marcado pelo edifício da galeria de arte em projeto do renomado arquiteto Sir Norman Foster. Nesse edifício, apesar de todas as diferenças da linguagem arquitetônica, procurou-se manter referências ao antigo templo.
Presença do Brasil em Nîmes na atualidade: Forro Gringo
Durante os estudos eurobrasileiros desenvolvidos em Nîmes no verão de 2013, constatou-se a presença do Brasil na vida cultural da cidade através de um evento denominado Forro Gringo, inserido na Fête de la Musique 2013.
O Forro Gringo, composto por cinco músicos, nasceu na primavera de 2011 motivado pelo desejo de revelar o forró aos franceses, definido como música festiva do Nordeste do Brasil. Inspirando-se no repertório tradicional, de Luiz Gonzaga a Jackson do Pandeira, Clara Nunes, o Forro Gringo apropria-se de padrões do forró, transformados com as contribuições pessoais de seus músicos. O emprêgo do acordeão, de elementos vocais Reggae e o uso intenso de percussão levam a um resultado decantado como original, como mistura ao mesmo tempo terna e energética, e que é salientada como expressiva de mestiçagens.
Esse forró teve lugar no Le Prolé, situado na rua Jean Reboul. O nome dessa via - designada segundo o poeta Jean Reboul (1796-1864), cujo busto é conservado no Museu de Belas Artes local - traz á consciência um aspecto dos elos de Nîmes com o Brasil no passado e que empresta maior profundidade às considerações da presença do Brasil na cidade na atualidade.
Sabe-se que um residente do Hotel du Louvre de Nîmes de sobrenome Peloux, enviou a Pedro II um exemplar de livro de poesias de Jean Reboul.
Menção a essa oferta encontra-se documentada em mensagem de Pedro II ao Visconde de Itajubá, Conselheiro Marcos Antonio de Araújo, Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário do Brasil em Paris. Apreciando a informação do Ministro dos Negócios Estrangeiros em despacho de 2 de janeiro de 1873, Pedro II° mandava que se oferecesse a Peloux uma jóia cujo valor não excesse a quatrocentos francos em retribuição às poesias de Reboul com que fora presenteado. (Arquivo Nacional, Dom Pedro II e a Cultura, pesquisa e elaboração de Maria Walda de Aragão Araújo, Rio de Janeiro 1977, doc. 303, pág. 62)
Constatou-se, em Nîmes, que o mencionado Hotel du Louvre, situado à rua Notre-Dame, é hoje um monumento histórico. O nome Peloux é também conhecido da história da vida social de Nîmes como designação de um tradicional café que, no século XIX, era ponto de encontros de intelectuais e artistas.
A consideração do contexto em que se processou a oferta remete a atenção a um período de desenvolvimento econômico da cidade como resultado da produção manufatureira, em particular de tecidos, assim como de vinho, iniciado no século XVIII e que levou a um florescimento cultural de Nîmes no século XIX e que foi marcado por tendências tradicionalistas de auto-conscientização da própria história.
Jean Reboul foi destacado poeta e figura da vida intelectual e boêmia de Nîmes de sua época, reconhecido pelas suas qualidades literárias por personalidades do Romantismo como François-René de Chateaubriand (1768-1848) Alphonse de Lamartine (1790-1869) e Alexandre Dumas (1802-1870), que o visitaram quando de passagem pela cidade.
Os seus profundos vínculos com o meio local evidenciam-se no fato de ter voltado à sua cidade após estadia em Paris, assumindo a padaria da família. Foi, assim, uma personalidade que preferiu retornar ao meio de origem, marcado pelo apego ao local e à tradição, mantendo-se afastado das esferas mundanas parisienses e mesmo negando reconhecimentos oficiais.
Conhecido pelas suas tendências conservadoras como católico fervoroso e realista, Reboul surgia como o oposto de um Antoine Bigot (1825-1897), este protestante e republicano. (Jean-Marie Marconot, org., Tradition des poètes nîmois: Jean Michel, 1603-1689, Jean Reboul, 1796-1864, Antoine Bigot, 1825-1897, NÎmes, 2007).
Nessa oposição manifestava-se o campo de tensões entre catóilicos e protestantes que caracterizou a história de Nîmes. A cidade tinha sido um dos principais centros dos Huguenotes no século XVI que chegaram a criar uma universidade protestante. Alvo de perseguições de católicos, a luta entre protestantes e católicos marcou a história regional, sobretudo na assim-chamada guerra de Cevennes.
A convicção realista de Jean Reboul também se inseria na tradição local de conflitos, bastando lembrar os atos de violência dos bandos "Verdets" realistas em diferentes ocasiões, após a Revolução Francesa, em fins do império napoleônico e em 1830.
A obra de Jean Reboul, hoje esquecida, foi celebrada nas décadas de 20 e 30 do século XIX por poesias como L'Ange et l'enfant (1828). O livro enviado a Pedro II de poesias parece ter sido o de Poésies, precedidas por um prefácio de Alexandre Dumas e de uma carta ao editor de Alphonse de Lamartine, publicado em 1836 e reeditado de forma ampliada pelo autor em 1840, agora precedido por um nota biográfica e literária do próprio Jean Reboul. Em 1846, Reboul publicou Poésies nouvelles e, em 1857, Les Traditionnelles, nouvelles poésies.
A oferta a Pedro II° de poesias de uma personalidade católica, tradicionalista e conservadora do século XIX, tão marcada pela intenção de valorizar a cultura local, tem antes o significado de chamar a atenção para a intensidade do redescobrimento do passado mais remoto em Nîmes e, assim, de seus elos com a esfera sul-mediterrânea entre a península itálica e ibérica.
A crescente integração interna de regiões francesas levou não apenas à modernização do sul segundo Paris - e a correspondentes tendências reativas - mas poderia ser também considerada em reciprocidade na intensificação da aproximação e mesmo fascínio pelo mundo ibérico que marcou a vida artística e cultural da capital francesa. Aqui residiria o principal significado de estudos relacionados com Nîmes sob a perspectiva brasileira.
Dos elos culturais com o Brasil no século XX: Marguerite Long (1874-1966)
Uma das personalidades nascidas em Nîmes que mais se destacam nos estudos culturais eurobrasileiros é o da pianista Marguerite Long. Como professora do Conservatoire de Paris a partir de 1906, por muitas décadas, e a partir de 1921 também na École Normale de Musique, foi professora de destacados artistas brasileiros. Destes, destacou-se o pianista João de Souza Lima (1898-1982), seu discípulo e amigo devotado, por ela promovido na sua carreira européia (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/121/Souza_Lima.html; http://revista.brasil-europa.eu/144/Cultura-francesa-na-Turquia-e-Souza-Lima.html) Os elos de admiração mútua mantiveram-se através de décadas, tendo Souza Lima acompanhado Marguerite Long em visita ao Brasil.
De ciclo de estudos sob a orientação de
Antonio Alexandre Bispo
Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.
Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Ressurgimentos do passado e de tradições no sul da França no Romantismo e a simpatia pelo mundo ibérico/latinoamericano em Paris. Nîmes: de poesias de Jean Reboul (1796-1864) a Pedro II° a Marguerite Long (1874-1966), mentora de brasileiros". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 145/14 (2013:5). http://revista.brasil-europa.eu/145/Nimes-Brasil.html