Fotos.A.A.Bispo.
©Arquivo A.B.E.

Nancy, hoje capital do Departamento Meurthe-et-Moselle, região da Lorraine/Lotríngia, centro de uma área urbana que compreende vinte comunidades, entrou na história sobretudo como capital do Ducado da Lotríngia (Lotríngia Superior).

A programação incluiu, entre outros eventos, Rendez-Vous Place Stanislas, Nancy Jazz Pulsations, Le Livre sur la Place, Saint-Nicolas e Le village de Noel, sendo que estes últimos serviram como uma preparatória em avant-première do projeto.

Os numerosos concertos e espetáculos, encontros, ciclos de conferências, colóquios, as muitas exposições, publicações, festas, animações e excursões de descoberta do patrimônio artístico e cultural procuraram envolver participantes e assistentes de todas as esferas sociais e culturais, franceses e visitantes do Exterior. Para isso, os eventos foram realizados privilegiadamente em espaço público e em atmosfera festiva, inspirando-se também neste sentido nas grandes festividades públicas que marcaram a Renascença. Ponto alto desses eventos foi uma festa realizada em fins de junho às margens da água.

A arquitetura, o edificado e configurado através dos séculos tornou-se não apenas decoração ou cenário das manifestações, mas inseridos em intento amplo de sensibilização perceptiva e metamorfoseante de sentidos inspirados pelo tema e por um espírito do renascer.

Assim como os concertos não incluiram apenas obras da época da Renascença em apresentações de conjuntos de instrumentos antigos e as exposição não foram dedicadas exclusivamente a obras do período do Renascimento, tambem os edifícios de diferentes séculos construídos em contextos e circunstâncias diversas e mesmo em si contraditórias serviram como meios de aguçamento de sentidos para a possibilidade de transformação de sentidos a partir de um espírito inspirado no conceito da Renascença.

Ao contrário de tendências do passado e mesmo do presente que levam à demolição de marcas de situações político-culturais combatidas e superadas, o projeto Renaissance Nancy 2013 desperta a consciência para a mudança de sentidos segundo o espírito que orienta a leitura como meio mais eficaz do que o apagar e silenciar do passado para a transformação de conteúdos e mensagens do criado e edificado.

Nesse sentido, a Renaissance Nancy 2013 adquire um significado extraordinário sob o ponto de vista patrimonial, vindo de encontro ao vasto programa de Jornées du patrimoine que se desenvolve atualmente na França.

Justificando a atenção dada à Renascença na iniciativa, os organizadores da Renaissance Nancy 2013 lembram que o Ocidente, à época histórica marcada por esse conceito, viveu uma mudança fundamental, um prodigioso salto à frente e dos quais o homem atual é herdeiro. O aparecimento de novos modos de difusão de conhecimentos e de informação, as grandes descobertas que mudaram profudamente a percepção do mundo marcaram fundamentalmente a história da Humanidade.

Nesse período, a Lorraine/Lotríngia viveu uma época de florescimento, caraterizada pela afirmação do papel do ducado no contexto político europeu e pela intensidade de sua vida intelectual e artística, assim como pelo despertar de interesses ao progresso científico, técnico e à difusão de saberes.

A iniciativa, assim justificada, procurou revelar essa história singular e fascinante, por muitos desconhecida, assim como um patrimônio que nem sempre encontra-se presente à altura em panoramas histórico-culturais. Todas as comunidades da área metropolitana de Nancy, assim como as muitas cidades e aldeias da Lorraine/Lotríngia possuem um patrimônio renascentista considerável. Muitas delas aceitaram o convite à participação no audacioso programa cultural e que procura abrir novos horizontes em diferentes sentidos.

Os organizadores do evento salientam que o significado da programação não se limita a esse redescobrimento do passado da região, mas revela-se sobretudo no seu direcionamento ao futuro. Os habitantes e os visitantes do Grand Nancy devem ser convidados a imaginar o futuro no âmbito do projeto Moments d'invention, no qual, também em praça pública, ofereceu-se a artistas, pesquisadores, empresários e internautas de todo o mundo possibilidades amplas de livre expressão.

Todo o programa foi estruturado segundo intentos expressos na frase "Célébrer le passé, rêver l'avenir".

Rendez-vous place Stanislas

Das muitas manifestações do programa, considerou-se em particular a edição de 2013 do Rendez-vous place Stanislas, levado a efeito de 15 de junho a 15 de setembro. Esse evento colocou em saliência o espaço urbano e o conjunto arquitetônico que mais caracteriza Nancy como cidade por excelência de arte e cultura. Inscrita desde 1983 na lista do patrimônio mundial da UNESCO, essa praça constitui uma das mais belas da Europa e das mais significativas para uma história do Urbanismo e da Arquitetura de orientação cultural em contextos globais.

Em espetáculo de imagens, som e luz, a praça e seus edifícios foi apresentada ao público todas as noites de verão em metamorfoses cenográficas e multiplicidade de sentidos através dos séculos e no presente. Em orientação da Société Spectaculaires, Allumeurs d'imagens, o espetáculo propôs-se a transportar os espectadores em viagem fantasmagórica e histórica em dez cenas através da iluminação e de projeções acompanhadas por sonoridades e alocuções das cinco fachadas dos edifícios que contornam a praça: o da municipalidade, o da Ópera, o do museu de Belas Artes, o do Hôtel de la Reine e do Pavillon Jacquet.

Através de meios tecnológicos dos mais avançados, essas projeções e iluminações possibilitam não apenas dar alma e vida aos edifícios, rememorando a época de sua construção, mas também de estabelecer elos de sentidos com o passado mais remoto, o sucessivo e o presente. Dos muitos espetáculos de luz e som realizados em cidades francesas, o Rendez-vous place Stanislas surge como um dos mais significativos, não apenas pela sua qualidade técnica, mas sim também pela concepção teórico-cultural que o fundamentou.

Obra do Iluminismo unindo a cidade medieval à renascentista

Nancy pertenceu, como sede do Ducado, ao Sacro Império Romano-Germânico. Tendo sofrido destruições durante a Guerra dos Trinta Anos e sido repetidamente ocupada por forças francesas, passou desde a reinstauração do poder ducal em fins do século XVII a vasto programa de reconstrução.

A cidade passou à França no decorrer de transações efetuadas entre o imperador do Sacro Império e o rei da França, tendo os Habsburgs recebido em troca a Toscana.

Sob Luís XV (1710-1774), Nancy experimentou uma fase de excepcional brilho artístico e cultural que, pela sua internacionalidade, merece particular atenção dos estudos europeus. Essa fase foi marcada pela ação de Stanislaus I. Leszczyński (1677-1766) destronado rei da Polonia e que obteve a Lotríngia de Luís XV, tornando-se Duque da Lotríngia.

Essa época marca a configuração urbana de Nancy, fazendo dessa cidade francesa objeto de grande significado para estudos urbanísticos e arquitetônicos. As suas praças centrais, em particular a Place Stanislas, a Place de la Carrière e a Place de l'Hémicycle, obras sobretudo do arquiteto Emmanuel Héré, constituem um dos mais significativos exemplos do Urbanismo guiado por princípios iluministas e, assim, de grande atualidade na necessária reconscientização de valores do Esclarecimento no presente (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Estudos-e-Esclarecimento.html )

O centro do traçado urbano de Nancy constitui a antiga Place Royale, marcada no seu centro por uma estátua de Luís XV, afastada na Revolução Francesa, sendo substituída posteriormente por um monumento a Stanislas, o que explica a sua denominação.

No edifício da Prefeitura (Hôtel de Ville), encontra-se uma representação visual das benfeitorias ocorridas no govêrno esclarecido de Stanislas. A praça é emoldurada pelos edifícios da Prefeitura  e de dois pavilhões para instituicões da administração, da Côrte e dedicadas à cultura, que abrigam hoje o Museu de Belas Artes e a Ópera.

Um dos objetivos da obra construtiva de Stanislas foi o de unir a cidade velha, remontante ao século X à cidade nova, renascentista do século XVI.

O papel da Natureza: Nancy como cidade de parques e jardins

Em 1765, Stanilas possibilitou o estabelecimento de uma Pépinière Royale nos arredores da cidades. As árvores eram destinadas à arborização das vias da Lorraine, assim como ao cultivo de sementes, à aclimatação de espécies, servindo à área também de passeio público. A partir de 1800, encerra-se a plantação de árvores ao longo das vias e e, 1835, o Estado francês cedeu a Pépinière à cidade de Nancy, que a transforma em parque público. Uma parte dos canteiros foi transformada em jardins geométricos emoldurados por grandes árvores. Em 1877, na parte mais elevada do parque, criou-se um jardim inglês com alamedas sinuosas.

Nancy apresenta-se assim também como cidade de parques e de jardins. Entre estes, salientam-se o jardim do Loli Coeur, o jardim da cidadela, o jardim do Palácio do Govêrno, o jardim Dominique Alexandre Godron e o jardim d'água.

Nancy como cidade do estilo Art Nouveau e centro de estudos de arquitetura

O significado de Nancy para a história da Arquitetura não se limita ao século XVIII, eternizado no conjunto urbano centralizado na Place Stanislas. Ela é celebrada como berço do Art Nouveau e origem de um movimento artístico que se tornou conhecido como Ecole de Nancy. A cidade possui significativos exemplos desse movimento, representado em mansões, edifícios bancários e da Câmara de Comércio, em casas comerciais.

Essa importância do patrimônio arquitetônico de todas as épocas de Nancy levou a que a municipalidade lançasse, a 30 de janeiro de 2012, juntamente com o Ministério da Cultura e da Comunição, a região Lorraine e o Musée Lorrain, um concurso internacional de arquitetura. Seis equipes pluridisciplinares, formadas por arquitetos, urbanistas, engenheiros, especialistas em conservação foram convidadas a fornecer as suas visões arquiteturais, museográficas e culturais de um futuro museu.

Significado sob a perspectiva dos estudos referenciados pelo Brasil

As concepções culturais que se manifestam na programação de Nancy adquirem particular significado para as reflexões atuais no âmbito dos estudos eurobrasileiros.

As explanações relativas às noções diretoras do Renaissance Nancy 2013 e a sua expressão no projeto artístico-cultural de som e luz da Place Stanislas manifestam que a atenção não é dirigida ao Renascimento compreendido como época histórica encerrada, mas sim como movimento que, reconscientizando-se do patrimônio cultural da Antiguidade Clássica abriu novos horizontes e levou a desenvolvimentos nas artes e nos conhecimentos de amplas consequências no mundo e através dos séculos.

É a essa herança cultural que se manteve na dinâmica de correntes transepocais que a atenção é dirigida, procurando-se numa nova inserção nesse patrimônio humanístico e esclarecedor caminhos para o futuro.

O Brasil foi alcançado pelos seus descobridores e colonizadores em época que entrou na história como a da Renascença, mas que foi, nas circunstâncias em que o Descobrimento se processou, marcada por correntes múltiplas e contrárias, sobretudo religiosas derivadas de desenvolvimentos anteriores da história eclesiástica da Idade Média e de movimentos de renovação religiosa que, apesar do termo, procuravam o reestabelecimento de concepções e situações vistas como ameaçadas.

Uma compreensão voltada a época e não às diferentes correntes que marcaram essas décadas de alcance europeu do Brasil e do processo de transformação cultural das populações indígenas pode levar a uma compreensão insuficientemente diferenciada da formação cultural do país. Pode levar também a mal-entendidos quanto a desenvolvimentos e a uma supravalorização de correntes e instituições que de fato atuavam como agentes retroativos e que levaram à eclosão contra-reformatória e suas consequências.

Visões unilaterais da ação e do pensamento jesuíticos ou da celebração do Barroco sem a adequada consideração de suas inserções em processos político-culturais e eclesiásticos globais poderiam ser mencionados como exemplos.

A iniciativa de Nancy traz à consciência a necessidade de superação de concepções de época e de um direcionamento mais intenso da atenção a correntes transepocais. O espetáculo na praça classicista do Iluminismo de Stanislas chama a atenção ao fato de que correntes renovadoras e esclarecedoras, renascimentistas no sentido mais próprio do termo, abridoras de horizontes nas ciências e nos conhecimentos, foram acompanhadas quase que contrapontísticamente por correntes retroativas e reacionárias, sobretudo atuantes na esfera religiosa, não se podendo aqui confundir as diferentes acepções de renovação e reforma.

Os eventos de Nancy demonstram o significado de novas leituras de sentidos e de nova redistribuição de pesos na valoração diferenciada da história. Um espírito sensibilizado pelos valores de um movimento voltado ao Esclarecimento e pelos riscos sempre presentes de correntes obscurantistas contrárias, pode dar novas luzes ao edificado através dos séculos, recontextualizando-o e referenciando-o segundo um complexo mas permanentemente presente anelo do Homem ao progresso dos conhecimentos.

De ciclo de estudos sob a orientação de
Antonio Alexandre Bispo

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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Renascimentos e Luzes através dos séculos impulsos culturais da Lorraine/Lotríngia para um presente voltado ao futuro". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 145/2 (2013:5). http://revista.brasil-europa.eu/145/Renaissance-Nancy-2013-Brasil.html