Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Riom.Foto A.A.Bispo©

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Riom.Foto A.A.Bispo©


Riom.Foto A.A.Bispo©

Fotos.A.A.Bispo.
Riom. Fotos no texto 1-2:  La Gomera.
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 145/8 (2013:5)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3030




Pios e assobios na França e no Brasil e a Vierge à l'Oiseau
Do
Musée des Arts et Traditions populaires de Paris como modêlo em Riom e S. Paulo
ao
Musée des civilisations de l'Europe et de la Méditerranée em Marseille


20 anos do Colloque International sur les langages sifflés (GEMP) e em prosseguimento aos trabalhos da ABE nas Canárias (2013).
Ciclo de estudos em regiões francesas pelo ano de Marseille como Capital Européia da Cultura 2013 e 300 anos de Denis Diderot (1713-1784)

 

O desenvolvimento histórico dos estudos culturais voltados a tradições e expressões populares, à Etnografia, ao Folclore e áreas disciplinares afins no Brasil foi marcado de forma decisiva pela recepção de publicações, correntes de pensamento, questionamentos, procedimentos e modêlos museológicos franceses.

Reciprocamente, o Brasil se encontra representado de forma significativa na história dessa área de estudos na França desde o século XIX (Veja e.o. http://www.revista.brasil-europa.eu/121/Santa-Anna_Nery.html).

Cooperações e atuações de estudiosos franceses no Brasil e de brasileiros na França possibilitaram a manutenção de laços e o intercâmbio através de décadas, fazendo com que a consideração das relações entre a França e o Brasil surja como uma necessidade para a análise adequada de concepções e métodos nas suas relações com rêdes de pesquisadores e instituições nos Estudos Culturais em geral. (Veja e.o.http://www.revista.brasil-europa.eu/121/Paul_Rivet.html)

É a partir desses pressupostos criados por muitas décadas de relações que devem ser consideradas transformações mais recentes ocorridas na área disciplinar resultantes de novas situações, questionamentos e aproximações, e que decorrem sobretudo através da influência de correntes dos Cultural Studies que se irradiam a partir do mundo anglofônico.

Tem sido, assim, preocupação constante dos estudos promovidos pela A.B.E. observar não apenas o cultivo de expressões culturais populares na França em referenciação com o Brasil como também o estado atual e as tendências francesas das reflexões e da prática de pesquisa, museológica e de aplicação de conhecimentos no ensino. (http://www.brasil-europa.eu/Paises/Franca.html)

Entre os momentos das atividades eurobrasileiras nesse sentido menciona-se a participação em festividades rurais dos Alpes Franceses e Savóia (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/096/Valloire.htm) e em outras regiões, como a Alsácia (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/120/Alsacia.html), assim como, sobretudo, na Normândia e Bretanha (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/114/Tema.htm), universo cultural que, pela riqueza do seu patrimônio cultural, evidenciando fundamentos de remotas origens, contribuiu de forma decisiva ao despertar da atenção de estudiosos ao estudo das expressões populares.

Há uma região francesa que também merece particular consideração no âmbito dos Estudos Culturais tanto em perspectivas convencionais da Etnografia e do Folclore como no sentido mais de uma atenção dirigida a processos culturais em situações atuais: a Auvergne.

Situações atuais na França Central e do Sul e tarefas para estudos culturais

Relativamente a Estudos Culturais voltados a desenvolvimentos no presente, cumpre considerar os novos fatos e as novas condições para estudos e relações profissionais e humanas criados pela intensificada dinâmica intercultural pela imigração à França Central e do Sul. Nela salienta-se a presença de migrantes portugueses já há décadas e, mais recentemente, de brasileiros.

A grande porcentagem portuguesa na população de raízes na imigração tem sido considerada sob diversos aspectos, uma vez que que os portugueses bem se integram na cultura e na sociedade francesa, mantendo, ao mesmo tempo, associações e circulos que cultivam expressões tradicionais de Portugal. Levanta-se a questão, assim, das proximidades culturais, das expressões comuns que, apesar de todas as diferenças, elucidem essa situação e os desenvolvimentos dela decorrentes.

A vinda de brasileiros para a Auvergne explica-se sobretudo pelas atividades do grupo Michelin, trazendo para a região operários e profissionais de outros países onde a empresa mantém fábricas, entre êles o Brasil.

O grande número de residentes de língua portuguesa em regiões da França que até passado relativamente recente possuiam uma imagem de regiões afastadas e pouco marcadas por interações culturais justifica e exige hoje uma atenção mais aguçada dos estudos culturais conduzidos em referenciações com o Brasil.

Nesse sentido, no âmbito do ciclo de estudos desenvolvidos em regiões francesas em 2013, retomaram-se reflexões sôbre um tema que, apenas à primeira vista sem maior relevância, não apenas foi marcado pela cooperação franco-brasileira de pesquisadores em passado relativamente recente como também possibilita, a partir de um caso especial, considerar novas perspectivas que se abrem a partir do desenvolvimento teórico ocorrido em outros contextos dos trabalhos eurobrasileiros. Trata-se aqui de práticas relacionadas com o assobiar e correspondentes meios de produção do som, com as suas funções, usos e sentidos.

Das Canárias em processos Mediterrâneo/Atlântico Riom na Auvergne

A decisão para a retomada das reflexões relativas a esse tema especifico como ponto de partida e estudo de caso para o tratamento de questões teóricas mais amplas foi tomada nos ciclos de estudos desenvolvidos nas Ilhas Canárias em janeiro de 2013, realizados em sob a perspectiva das relações entre o Mediterrâneo e o Atlântico por motivo da celebração de Marseille como Capital Européia da Cultura 2013 (Veja notícia em http://www.atualidades.brasil-europa.eu/Atualidades_2013_01.html).

Nesse ciclo, visitou-se, entre outras institutições, a "Casa de la Memoria" em Gomera, onde constatou-se uma especial atenção local ao "silbo". Considerando-se o tipo de aproximação ao tratamento do tema ali seguido, e que salienta o aspecto do silbo como linguagem e meio de comunicação, recordou-se que, no corrente ano, decorrem 20 anos da realização de um colóquio Internacional dedicado ao tema na França em 1993 e que, sob similar perspectiva, contou com a presença de pesquisadores brasileiros.

A consideração das aproximações interpretativas constatadas em Gomera e no programa do colóquio realizado há vinte anos atrás trouxe à consciência a necessidade de uma maior consideração dos fundamentos imagológicos da prática e dos respectivos meios instrumentais em correspondência aos estudos que vêm sendo desenvolvidos nos estudos eurobrasileiros conduzidos no âmbito da A.B.E..

Para o prosseguimento das reflexões na França, escolheu-se a cidade de Riom, na Auvergne, fato justificado sobretudo por ser um centro da veneração à Vierge à l'Oiseau, o que permite estudos contextualizados de uma imagem de fundamental importância para estudos da linguagem visual relacionada com o tema. Além do mais, Riom, centro de peregrinações religiosas no passado, é conhecido pelo seu apêgo a tradições, assim como a região em que se localiza, abrigando o Museu Regional da Auvergne, institutição que se preocupa hoje com a atualização de perspectivas e métodos.

Visita a exposição sôbre silbos em La Gomera em 2013

Em exposição relativa a essa prática, o silbo é definido como um mecanismo de transmissão de amplo alcance que serve para substituir a linguagem falada. Por isso, haveria a possibilidade de que os habitantes pré-hispânicos das ilhas o tivessem empregado para comunicar-se na sua língua, adaptando-o ao castelhano. A prática ter-se-ia conservado em especial em La Gomera devido à conformação orográfica especial da ilha.

Entretanto, apesar dessa interpretação plausível de desenvolvimentos históricos, afirma-se que o silbo "parece ter origens indiscutivelmente africanas". A incoerência dessas explicações de origens e a suposição - vista como indiscutível - de raízes africanas, testemunham a situação obscura e as imprecisões que podem ser derivadas de aproximações inadequadas e que exigem reflexões quanto a perspectivas e questionamentos.


Essas imprecisões e as correspondentes questões levantadas trouxeram à lembrança que já o programa do Colóquio Internacional realizado há 20 anos incluira uma comunicação que,  comentando os registros da prática de pastores de La Gomera por expedição realizada em 1970 por J. Y. Cousteau (1910-1997), salientava que essa prática nas ilhas Canárias é idêntica àquela de Aas da França e de Kuskoy na Turquia, tornando-se necessários estudos comparativos mais abrangentes e diferenciados.

Essa lembrança demonstrou a oportunidade de uma releitura de materiais do pioneiro colóquio international sõbre os "Sifflés" de 1993 para recordação do espectro das questões então tratadas e das principais linhas de pesquisas e preocupações como exigência para um prosseguimento adequado das reflexões.

20 anos do Colloque International sur les langages sifflés em Albi

O Colóquio Internacional sobre linguagens assobiadas realizado de 26 a 28 de novembro de 1993 foi um evento organizado pelo Groupement d'Ethnomusicologie en Midi-Pyrénées (GEMP) e outras instituições, entre elas o Centro Culturel de l'Albigeois e ADDA du Tarn, Délégation Départementale à la Musique à la Danse.

Os responsáveis pelo Groupement d'Ethnomusicologie en Midi-Pyrénées, Daniel Loddo e Xavier Vidal, tinham desenvolvido pesquisas no Brasil e participado no II Congresso Brasileiro de Musicologia realizado no Rio de Janeiro, em 1992. O Colóquio de 1993 contou com a participação dos pesquisadores brasileiros Luiz Fernando Soares de Andrade e Julieta de Andrade, que tinham sido os mediadores que possibilitaram a participação dos etnomusicólogos do GEMP no Congresso do Rio de Janeiro.

Os organizadores do evento em Albi partiram da constatação da riqueza representada por um patrimônio sonoro que manifesta a  engenhosidade com que o homem entrou em uníssono com os ruídos da natureza as vozes de animais e que faz com que não-músicos se revelem músicos excepcionais.

O estudo etnomusicológico do assobio e das imitações de pássaros permite segundo êles um melhor conhecimento do ponto de vista antropológico das sociedades rurais e uma nova percepção de suas relações com o mundo atual. Após ter-se publicado "Charmeurs d'oiseaux et siffleurs de danses", pareceu ser importante relacionar os resultados das pesquisas com trabalhos de outros pesquisadores, da França e do Exterior, adquirindo assim uma visão geral do estado geral dos estudos respectivos.

O programa considerou o assobio como instrumento, como performance vocal e como linguagem comum homem/animal. Relativamente ao primeiro tema, o programa incluiu comunicações sobre os cucos da primavera (C. Méchin), o repertório atual dos artesãos de assobios na Sicília (S.Burgaretta) e como meios de aproximação e chamamento em Carpentras (J. Arlaud).

O segundo tema, dedicado à performance vocal, partiu de uma palestra sobre os pastores das montanhas de Aas que se comunicam assobiando (R. Arripe), prosseguindo com o mencionado comentário sobre o filme "Paroles, langages et langues sifflés" de J. Y. Cousteau em La Gomera (G. Busnel), com uma conferência sobre a linguagem de assobios em navios (M. Duval) e sobre os assobios entre os Maias no carnaval (A. Monod-Becquelin). Os pesquisadores brasileiros trataram dos temas "as crianças de ruas e o assobio" (L. F. S. de Andrade) e "o assobio como modo de expressão afetiva" (J. de Andrade).

L.F. S. de Andrade tratou da prática entre as crianças e adolescentes brasileiros, que criam e empregam assobios para a diversão, para a comunicação e para a execução de curtas peças musicais, mencionando aqueles feitos com folhas verdes, com pente envolto em papel, de plástico e de brinquedos, contribuindo a uma inserção gradativa das crianças no mundo dos sons. J. de Andrade lembrou que, quando produzido pelos lábios, o assobio torna-se um recurso cultural espontâneo e alternativo, que na vida quotidiana traduz um modo de expressão afetivo, Com a ajuda de pequenos instrumentos, pode servir como meio de publicidade não formal de comerciantes ambulantes. 

Quanto ao tema relativo à linguagem comum homem/animal, os etnomusicólogos D. Loddo e X. Vidal salientaram o papel do assobio no aumento da capacidade do jovem no ouvir e no colocar-se em relação com a natureza e o seu universo sonoro; do ponto de vista antropológico, representaria uma exploração do mundo do ar e um estabelecimento de elos com o mundo dos pássaros.

Nesse contexto, considerou-se também o uso de assobio como técnica de caça na Gascogne (B. Traimond), as relações com pássaros em Trégor como resultado de pesquisas de quinze anos na Bretagne (D. Giraudon). Tematizaram-se questões básicas de ornithomelografia no exemplo de concurso de cantos de pássaros e da atribuição ou reconhecimento de significado de cantos (R. Pinon), e propôs-se uma aproximação antropológica ao Papageno, personagem da Flauta Mágica de W.A. Mozart (A. Paradis). Sob a perspectiva de Gênero, foram consideradas questões relativas às mulheres que assobiam (D. Fabre).

O programa cultural incluiu concertos e espetáculos vários, entre êles um concerto-baile ao assobio, danças tradicionais da Ocitânia interpretadas por siffleurs e músicos da região. A exposição "Siffle d'homme et langage d'oiseau" apresentaram-se documentos sonoros, fotografias e objetos, acompanhados de filmes quase que como uma "miríáde de documentos heteróclitos e surrealistas ilustrando as relações entre os homens e os pássaros".

Sinais e linguagem sonora e a linguagem de imagens nos estudos culturais

Como o próprio título do Colóquio de 1993 indicava, a atenção dirigiu-se às "langages sifflés", ou seja, ao sonoro ou ao fenômeno perceptível acústicamente, o que se explica pela atenção mais específica dos etnomusicólogos responsáveis pela iniciativa.

No âmbito dos esforços de renovação culturológica dos estudos musicológicos, tanto histórico-musicais como aqueles mais de natureza empírica, vem-se procurando chamar a atenção sobretudo a questões relativas a imagens. Essa orientação à linguagem de imagens não apenas pode elucidar em muitos casos sentidos e significados do que é manifestado e percebido acústicamente, como também abre perspectivas para a consideração de seus elos com visões do mundo e do homem, com um edifício de sinais, signos e símbolos a serviço do esclarecimento de construções culturais.

Essa orientação, cujo debate iniciou-se com a fundação da organização voltada a estudos de processos culturais em São Paulo, em 1968, levou no decorrer dos anos posteriores a estudos e interpretações de fontes em referenciações com os conhecimentos empíricos, entre êles também relativamente ao sentido de pios, apitos e assobios em tradições européias e suas extensões no Brasil. Marco inicial no desenvolvimento desses estudos na Europa foi a exposição das grandes coleções de instrumentos de sôpro de cerâmica e apitos de barro do Departamento da Europa do Museum für Völkerkunde Berlin, em 1974 (Heide Nixdorff, Tönender Ton - Tongefäßflöten und Tonpfeifen aus Europa, Bilderheft der Staatlichen Museen Preußischer Kulturbesitz-Berlin 22/23, Berlin: Gebr. Mann, 1974). Entre os autores em língua portuguesa então considerados salientou-se Luís Chaves (Os Barristas Portugueses, Coimbra, 1925).

Estudos de linguagem visual no enigma de uma conotação cristã de pios e apitos

Em aulas, seminários e publicações vem-se tratando desde então e.o. instrumentos respectivos de tradições lúdico-festivas, assim como e.o. as "cantigas do apia" em Portugal, para as quas faziam-se no passado rouxinóis de cerâmica, chamados tambem de cucos ou canários, e cujos apitos eram imitados. O significado da imagem do pássaro representada por esses instrumentos nas expressões festivas da Idade Média pode ser reconhecido no fato do escritor árabe Ibn Rushd (Averroes, 1126-1198) denominá-los de "brinquedos cristãos". (A.A.Bispo, Grundlagen christlicher Musikkultur in der außereuropäischen Welt der Neuen Zeit: Der Raum des früheren portugiesischen Patronatsrechts, Musices Aptatio 1987/88, Roma/Colonia 1989, 495).

A questão que passou a ser levantada foi, assim, as razões que poderiam justificar essa conotação cristã de apitos, para a qual não se conheciam fundamentações teológicas e que apenas o caminho da análise de imagens e da hermenêutica bíblica poderia abrir perspectivas esclarecedoras.

Esses estudos e a consciência de uma maior consideração da linguagem de imagens na propria renovação da Musicologia, orientando-a interdisciplinarmente e procurando a superação das delimitações eurocêntricas da Musicologia Histórica, levaram à programação temática do II Congresso Brasileiro de Musicologia, realizado no Rio de Janeiro, em 1992. No ano da passagem dos 500 anos do Descobrimento da América, pareceu ser oportuno e necessárío dirigir a atenção à questão de fundamentos músico-culturais no Brasil, o que deve incluir, necessariamente, o estudo da linguagem visual subjacente a expressões.

Dois foram principais complexos temáticos considerados como base de projetos a serem desenvolvidos, um dedicado às culturas musicais indígenas, outro aos fundamentos culturais de expressões tradicionais estudadas na área designada pelo termo Folclore. Este último projeto vinha de encontro à convicção de que o estudo empírico de expressões tradicionais no Brasil pode abrir caminhos para o melhor entendimentos de sentidos de referências documentais do passado e de práticas ainda constatadas na Europa.

Foi com o objetivo de dar continuidade a esse projeto de análises de fundamentos imagológicos de expressões relacionadas com pássaros e suas imitações sonoras na lúdica cristã, considerando mais aprofundadamente os seus elos com o edifício global de visões do mundo e do homem é que se escolheu a cidade de Riom como um dos principais centros da devoção à Vierge à l'Oiseau.


Um centro de devoção à Vierge à l'Oiseau - Nossa Senhora de Marthuret em Riom

O visitante que entra na igreja de Nossa Senhora de Marthuret depara-se, na coluna central do portal, com uma imagem de Maria com o menino Jesus no colo no ato de abrir as mãos para soltar o pássaro.

Essa imagem, uma cópia da original do século XIV que se encontra numa das capelas do interior da igreja, impressiona o observador pelas suas qualidades excepcionais de expressão, manifestadas na suavidade dos traços de Maria e de Jesus, de seus sorrisos, gestos e olhares.

Essa plástica assume particular significado sob as perspectivas dos estudos culturais, também daqueles relacionados com o Brasil por representar artisticamente um acontecimento miraculoso não registrado nas palavras dos textos bíblicos canônicos, mencionado apenas no apócrifo Evangelho de Tomas, o Israelita. Sendo improvável que a intensidade de uma veneração que justificou a criação de obra de arte de tão excepcionais qualidades e de um centro de culto mariano em Riom tenha-se derivado simplesmente do texto apócrifo, deve-se partir da suposição que uma imagem de remotas origens, vigente na cultura religiosa popular há seculos, subjacente ao próprio Evangelho de Tomas tenha alcançado uma particular revitalização em época de fervor mariano na Idade Média.

Segundo a narrativa transmitida pelo Evangelho apócrifo, o menino Jesus, num sábado, modelava doze pequenos pássaros de barro junto a um rio, quando foi denunciado a seu pai José pela falta de observância do dia, uma vez que o sábado era dia de guarda dos judeus. O modelar de pássaros de barro representava um ato de trabalho.

Quando José indagou-o a respeito da inobservância do sábado, Jesus abriu as mãos e disse aos pássaros que voassem. Esses, abrindo as asas, levantaram vôo piando.

O tema dos pássaros modelados em barro que ganharam vida das mãos de Jesus foi tratado em outras obras da Idade Média e explica a tradição de imitações de pássaros em expressões populares assim como a confecção de pios de barro em formas de pássaro na tradição popular de Portugal e do Brasil.

A Vierge à l'Oiseau de Riom, para alem de ser obra de excepcional valor artístico, adquire assim significado para a elucidação de sentidos de práticas populares da tradição lusa e brasileira, sejam plásticas da cerâmica popular ou expressões musicais de imitações de pássaros.

O uso de pios e de imitações de assobios de pássaros em expressões musicais do passado português à época dos Descobrimentos, como mencionado já estudada sob outros aspectos, adquire com a consideração da veneração da Vierge à l'Oiseau de Riom na Auvergne novas elucidações e contextualizações, pois esta traz á consciência os elos da imagem com o culto mariano.

Riom como centro de peregrinações do passado - S. Amabilis

Riom surpreende o visitante sobretudo pela arquitetura de seus edifícios, que distingue a cidade de muitas outras francesas. Devido à utilização de pedra de lava, explicável por se tratar de região vulcânica, a cidade apresenta uma fisionomia marcada por coloração cinza e negra, uma atmosfera escura que difere daquelas de cidades francesas onde predominam pedras claras ou casas de enchamel.

O traçado de suas ruas e de suas fortificações indica o procedimento consciente de implantação urbana e o significado da cidade como sede da administração real a partir do século XIII. Os principais monumentos arquitetônicos testemunham o florescimento da cidade nos séculos XIV e XV, quando tornou-se centro cultural e artístico sob a égide do duque Jean de Valois ou de Berry, o Magnífico (1340-1416). O seu significado perdeu a cidade em parte com a transferência da Corte da Justiça Real para Clermont-Ferrand no século XVII.

Entre as tradições religiosas da cidade, destacam-se aquelas relacionadas com o culto de Saint Amable ou S. Amabilis, o seu padroeiro, morto ao redor de 475 DC e cujas relíquias são conservadas na Basílica.

Ainda que a cidade já não seja procurada como centro de peregrinação com tanta intensidade como no passado, a festa e a procissão de Santo Amable representam um dos pontos altos do calendário festivo da cidade.

Um dos principais elementos tradicionais dessa procissão é a instituição dos portadores da charola com a imagem do santo, vestidos com trajes históricos.

O significado do culto a Santo Amable em Riom reside porém no fato de demonstrar as raízes da identidade local nos primeiros tempos da cristianização da antiga urbe galo-romana de Ricomagus.

O próprio nome de S. Amabilis - amável - pode abrir caminhos á percepção de conotações afetivas da cultura religiosa de Riom. Segundo a narrativa, proveniente de camada mais simples da sociedade, já muito jovem foi tomado por uma aversão perante o mundo terreno, entrando para a vida religiosa. Um de seus atos progidiosos teria sido o de pendurar uma de suas luvas em raio de sol, mantendo-se esta no ar. Essa imagem foi interpretada no sentido de que o santo, ainda que pobre, "vindo da lama", até mesmo sendo na vida terra simples lacaio, encontrava-se vinculado com os céus, sendo a sua palavra assim segura nos ares pela luz. A essa elevação do jovem ao mundo espiritual correspondeu a extinção de todas as serpentes ao redor de Riom. O seu túmulo na igreja de S. Benignus em Riom tornou-se local procurado pelas curas que ali se realizavam.

Bases tipológicas da hermenêutica do passado no exemplo da Virgem Negra

A aproximação que possibilita o entendimento tanto da estória dos pássaros de barro que voam piando das mãos de Jesuis no culto da Vierge à l'Oiseau ou da narrativa de S. Amabilis é aquela através da consideração do campo de relações entre tipos e anti-tipos da hermenêutica do passado e da percepção de anti-tipos atrás da repreentação de tipos na lúdica e em narrativas populares.

O significado primordial da orientação da linguagem visual segundo tipos na tradição da antiga hermenêutica da leitura bíblica evidencia-se no culto à Virgem Negra na igreja de Notre Dame de Mathuret em Riom.

Essa representação, explicável através de considerações tipológicas, ou seja do tipo de Maria no Velho Testamento, estendeu-se ao Novo Mundo, como se conhece no Brasil e como também já foi estudado em contextos da Bretanha e do Canadá (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/114/Guincamp.htm)

A imagem de Nossa Senhora Negra de Riom é obra em madeira policromada do século XIII ou XIV, representando Maria sentada, tendo no colo o menino Jesus. Envolta em manto azul, que cobre a vestimenta em vermelho, apresenta as cores que determinam até hoje a estruturação de práticas tradicionais do populário religioso, frequentemente configurados em grupos, ternos ou filas do azul e do encarnado.

Esse estudo das imagens segundo sentidos velados das Escrituras dirige a atenção por último ao livro Gênesis e é no relato da Criação que deve ser compreendida a imagem do pássaro que toma vida e se levanta do barro molhado. Ponto de partida para a compreensão da imagem é o fato de que a narrativa bíblica fala da criação dos pássaros da água. A imagem da ave não diz respeito, nesse sentido, tanto ao ar, como poderia ser deduzido de considerações condutoras do Colóquio de 1993, mas sim ao elemento água.

Tem-se, assim, na tradição do vivificar de pássaros feitos de barro uma fundamentação bíblica, compreensível porém apenas através de um método adequado de leitura. É essa aproximação que possibilita também compreender os elos marianos da linguagem visual.

Centro de estudos do patrimônio cultural da Auvergne: Musée Régional de Riom

Principal centro para o estudo do patrimônio cultural de Riom e de sua região é o Museu Regional da Auvergne. O museu encontra-se instalado em antigo edifício residencial do século XVIII que, reformado nos séculos XIX e XX, representa hoje um dos prédios mais representativos do centro de Riom.

Inaugurado em 1969, o museu conserva um acervo de mais de 4000 objetos referentes sobretudo à vida rural de Auvergne do século XIX e que em grande parte foram doados por famílias locais.

Na sua instalação, o museu seguiu o modêlo do Musée national des Arts et Traditions populaires de Paris, instituição vinculada ao nome do seu fundador, Georges-Henri Rivière (1897-1985). O museu orientou-se, assim, segundo a mesma instituição que inspirou a instalação do Museu de Artes e Tradições Populares de São Paulo, que teve mais tarde a sua denominação mudada para Museu de Folclore.

A direção do museu da Auvergne é consciente que museologicamente a instituição segue concepções já do passado, mencionando que segue um tipo de apresentação destinada a dar testemunho de uma cultura popular, tradicional ou folclórica tal como imaginada por folcloristas, etnógrafos e historiadores na década de trinta do século XX.

Do acervo do museu, segundo o lema "transmitir e mostrar", escolhem-se para a exposição objetos que evocam o papel do saber fazer e de modos de vida desaparecidos no presente. Nesse intento, dá-se particular atenção à vida agrícola, a práticas de trabalho no campo, na caça e pesca, na apicultura e na viticultura, assim como ao artesanato, à confecção de rendas e chapéis, à fiação, ao corte da pedra e à fabricação de potes.

Os marcos do ciclo da vida, nascimento, casamento, morte, são exemplificados nas suas expressões tradicionais, assim como as festividades populares e as práticas e instrumentos musicais. Naturalmente, as expressões relacionadas com o culto de Sto. Amable recebem particular atenção. Neste contexto, lembra-se do grande acervo de esculturas religiosas em madeira policromada do museu, assim como de suas coleções de trajes e enfeites de diferentes partes da Auvergne.

Os responsáveis pelo museu acentuam, porém, que o museu não pretende ser compreendido como um relicário ou tesouro, uma vez que os estudiosos se didicam também à Auvergne de hoje e às expressões e problemas atuais de seus habitantes.

A missão da instituição caracterizar-se-ia pela multiplicidade de objetivos: conservar para testemunhar, mostrar e enriquecer as coleções, estudar e mesmo servir ao lazer, dando-se particular atenção a exposições itinerantes.

O museu vive sobretudo de objetos cedidos e a doação de materiais por particulares deverá ser incentivada no futuro. Acredita-se que muitos dos proprietários de objetos significativos desejam deixar que outros participem da fruição de valores históricos e artísticos de materiais raros que possuem.

Encerrando-se para uma reestruturação, a reabertura plena da instituição está prevista para 2014.

Uma nova fase do museu vem de encontro à transformação de concepções que se manifestou no fechamento da instituição-modêlo, o Musée national des Arts et Traditions populaires de Paris, em 2005. No ano de Marseille como Capital Européia da Cultura 2013, a nova orientação teórica no tratamento de questões culturais é representada pelo Musée des civilisations de l'Europe et de la Méditerranée, aberto no dia 7 de junho, em Marseille.

De ciclo de estudos sob a orientação de
Antonio Alexandre Bispo




Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "
Pios e assobios na França e no Brasil e a Vierge à l'Oiseau. Do Musée des Arts et Traditions populaires de Paris como modêlo em Riom e S. Paulo ao Musée des civilisations de l'Europe et de la Méditerranée em Marseille". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 145/8 (2013:5). http://revista.brasil-europa.eu/145/Riom-Vierge-a-l'Oiseau.html