Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Altenberg. Foto A.A.Bispo©


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G. MArkgraf


G. Markgraf


G. Markgraf



G. Markgraf

Fotos.A.A.Bispo.
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 146/2 (2013:6)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3044





Erzgebirge, Suíça Saxônica e Brasil nas tradições natalinas
em regiões de passado colonial alemão e na História:
Georg Markgraf (1610-1644) de e em Liebstadt, "germano da Mísnia"


Georg Markgraf (1610-1644)
e a
Historia Naturalis Brasiliae
nas suas relações com a história científico-cultural
da Alemanha, Países Baixos e esfera do Mar Báltico I


Aproximações pelo 10 anos de viagem da A.B.E. à Saxônia e Silésia na passagem dos 375 anos de expedição holandesa a Pernambuco

 
Altenberg. Foto A.A.Bispo©

Entre as principais preocupações dos trabalhos eurobrasileiros que vêm sendo desenvolvidos pela A.B.E. encontra-se aquela da superação de delimitações de visões causada pelo pouco conhecimento de regiões da Europa que ficaram até há poucas décadas vedadas aos olhos ocidentais por detrás do muro que separava blocos políticos. (Veja http://revista.brasil-europa.eu/143/Baltico-Brasil.html)


Trata-se aqui de uma necessidade que vem sendo sentida há muito, uma vez que o desconhecimento ou silenciamento de cidades, contextos e desenvolvimentos levam a unilateralidades e impedem o estudo adequado de processos histórico-culturais, também daqueles referenciados pelo Brasil. Esse escopo adquire porém especial significado sob o aspecto dos anelos de integração européia nas suas consequências para os estudos culturais.


A superação dessas delimitações de perspectivas, de conhecimentos e de imagens geo-mentais depara-se com grandes dificuldades, uma vez que aqui se trata em grande parte de regiões que passaram por cruciais destruições na Guerra, com mudanças profundas na sua configuração populacional, cultural e inserções políticas e nacionais.


Estudos em arquivos e bibliotecas não bastam; impõe-se a observação local de paisagens e contextos, a do tratamento do próprio passado a partir do presente da vida e na pesquisa regional para uma aproximação entre culturas de saber que se mantiveram separadas. Esse intento não pode realizar-se de uma só vez, exigindo contínuas e múltiplas viagens a diferentes regiões, interrelacionando-as como que em reconstrução de um complexo mosaico em contínua dinâmica transformatória.


Décadas de intentos de aproximações, percepção, revelação e reconstrução de elos


Nesse sentido, a A.B.E. vem desenvolvendo há muito empreendimentos de estudos em regiões do Centro e do Leste da Europa, assim como nas suas relações com a área balcânica e a nórdica. Nesses seus esforços, que exigem extensas viagens, preparativos, meios e empenho idealista, foi apoiada por grande número de abnegados e instituições, que merecem sempre ser lembrados com gratidão.


Após viagens por várias cidades da ex-República Democrática Alemã, da antiga Tchecoslováquia, da Hungria então comunista e da Jugoslávia nas décadas de 70 e 80, procurou-se atualizar conhecimentos após a mudança da configuração política européia em diversos projetos dedicados a contextos regionais específicos que se intensificaram no decorrer dos anos 90 e no presente século.


Entre êles, encontraram-se aqueles voltados a regiões que no passado foram marcados pela presença alemã e que agora, em grande parte com modificada transformação populacional, se encontram em outros países, como na Polonia, República Tcheca, Países do Báltico e Rússia.


Nessas viagens, foram consideradas em particular regiões alemãs limítrofes e que agora, após o retorno da capital a Berlim, aproximam-se cada vez mais do centro das atenções. 


A consideração especial de antigos contextos culturais alemães hoje situados em outros países e áreas limítrofes da atual Alemanha justifica-se em estudos referenciados pelo Brasil, uma vez que  dessas regiões provieram emigrantes que marcaram regiões de passado colonial do país.


O conhecimento de situações e desenvolvimentos históricos torna-se assim indispensável para estudos regionais e para a consciência histórica em comunidades de descendentes envolvidos em processos sempre retomados de integração e diferenciação.


Pontes transepocais entre processos colonizadores centro-europeus e no Brasil


Alfredo Ferreira de Carvalho

Entre as viagens empreendidas especificamente a partir das exigências de estudos relacionados com a imigração e colonização no Brasil, podem-se salientar aquelas à Silésia ou Baixa-Silésia e outras regiões na atual Polonia, em 2003, nascidas de observações feitas no Brasil, em particular no âmbito do Forum Rio Grande do Sul do congresso de encerramento do triênio de eventos científico-culturais pelos 500 anos do Brasil.


Em 2010, a A.B.E. realizou ciclos que consideraram a área de influência de Leipzig e Dresden. As atençõe foram e.o. dirigidas à história medieval da colonização alemã do Leste, em particular ao antigo Marquesado de Meissen, a Misia. O seu território compreendia o vale do Elb na Saxônia, parte do Leste do Erzgebirge e a atual Suíça Saxônica. A designação Mísia - e a consciência histórica correspondente - manteve-se presente através dos séculos na vida universitária de Leipzig. (Veja e.o.http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Rochlitz-Saxonia-Brasil.html)


Em 2011, percorreram-se centros de antiga cultura alemã da atual República Tcheca assim como regiões limítrofes das montanhas centrais da Saxônia. (http://www.revista.brasil-europa.eu/133/Indice_133.html) Nessa ocasião, considerou-se novamente a história do povoamento do espaço cultural Erzgebirge - Saxônia Central, estabelecendo pontes através de épocas entre processos de povoamento e colonização da Europa Central e do Brasil. Um dos centros dos trabalhos neste sentido foi Sachsenburg, onde se registra o cultivo da memória do passado colonizador dessa vasta região.


Esses empreendimentos na área centro-européía da Média Saxônia e regiões vizinhas rerelacionaram-se com renovadas visitas à área do Mar Báltico, em particular com viagem à Pomerânia em 2007 (Veja e.o. http://revista.brasil-europa.eu/143/Santa-Leopoldina-ES.html), culminando, no presente ano, com estudos desenvolvidos em vários países do espaço do Mar do Leste  e que foram encerrados em Danzig/Gdańsk, hoje Polonia.



Apêgo à terra natal nas Montanhas Centrais e à dos antepassados  em regiões coloniais


Esses esforços de aproximação a regiões e contextos pouco presentes na pesquisa da perspectiva da colonização alemã no Brasil, foram resultados da constatação de que expressões culturais deles provenientes mantém-se vivas em comunidades de passado colonial.


Apesar de todas as obscuridades em conhecimentos, essas regiões pouco consideradas não desapareceram da memória de coletividades e
continuam presentes nas suas necessidades de expressão de diferenciação cultural.


Essa sobrevivência levou em muitos casos a tentativas de ambos os lados de procura e estabelecimento de vínculos para alem da distância entre continentes, existindo, assim, uma situação paradoxal relativamente àquela marcada por desconhecimentos e delimitações geo-mentais da pesquisa.


Como registrado nas várias visitas, o sentimento de amor à terra mostra-se como particularmente intensivo nessas regiões entro-européias, um patriotismo local que, transplantado para regiões coloniais do Brasil, justificaria uma continuidade de laços afetivo-emocionais marcador por saudades e nostalgia ao antigo "Heimat" mesmo após gerações.


Expressões natalinas em regiões coloniais do Brasil e Erzgebirge: Altenberg


Um exemplo significativo é o das tradições natalinas em regiões de antiga colonização no Brasil da Serra Gaúcha, Rio Grande do Sul, como nas feiras do tipo de mercados de Natal alemães em Canela ou Gramado, onde se constatam objetos e formas de expressão inspirados na tradição alemã ou mesmo adquiridos em centros de produção de objetos natalinos, entre êles aqueles das montanhas centrais da Saxônia e regiões próximas àquelas no passado marcada por alemães da Boêmia na República Tcheca e da Polonia.


Na visita de 2011 a cidades dessa região, como o nome indica caracterizada pela mineração (Erzgebirge), constatou-se, em Altenberg, a existência de elos da indústria natalina que tanto caracteriza o local com o Brasil e que, apesar de complexos caminhos, atinge compradores brasileiros e mantém o país presente na região.


Esse confronto com essa presença,  vem à consciência do pesquisador que muitas das expressões natalinas em contextos de passado colonial alemão no Brasil ou deles derivadas não podem ser compreendidas sem levar em conta contextos e processos culturais das Montanhas de Minério e de regiões circunvizinhas.


Para além do interesse dessas relações de produção e consumo de artefatos natalinos sob o aspecto de estudos culturais do presente, tem-se aqui a necessidade de estudos mais aprofundados do vir-a-ser histórico dessas expressões tradicionais e suas renovações, que, embora surgindo como artesanato de cunho folclórico, foram resultado de transformações causadas pelo declínio da mineração e por acontecimentos da história social e política.


Formas e expressões de objetos natalinos constatados no Brasil não podem, assim, ser compreendidos no seu sentido sem a consideração de seus elos com a história dessa longínqua região montanhosa de minérios.





O Brasil presente em Liebstadt, cidade natal de Georg Markgraf (1610-1644)


O intuito de dar maior atenção a regiões até agora pouco consideradas na pesquisa por parte da A.B.E. relaciona-se assim estreitamente com o seu escopo de, voltando a atenção a processos, superar delimitações relativas a categorizações convencionais de objetos de estudos e áreas disciplinares, relacionando estudos empíricos e históricos.


Se o Brasil se encontra presente antes na esfera de expressões tradicionais populares, considerado em particular em Altenberg, é lembrado em Liebstadt, cidade dela distante de apenas ca. de 20 km, como berço de um dos maiores vultos da história das ciências do Brasil: Georg Markgraf  (Marcgraf, Marggraf, Marcgrave).


Essa pequena cidade, considerada como a menor da Saxônia, localizada idilicamente entre montanhas cobertas de florestas cortadas pelo vale do Seidewitz, e procurada sobretudo pelo seu burgo Kuckuckstein, tem o orgulho de contar entre as suas maiors personalidades históricas aquela do maior pesquisador alemão do Brasil do século XVII e que faleceria prematuramente em Angola.


Essa consciência local do significado de um de seus habitantes do passado para o distante Brasil e para as ciências em geral levou a que, em 1907, se colocasse uma placa memorial a Georg Markgraf na casa de seu nascimento, a atual Casa de Conselho ou Prefeitura.


A pequena Liebstadt, cujo significado teria sido antes o de situar-se em posição de controle do caminho comercial do Vale do Elb à Boêmia, através das Montanhas de Minério, estabelece assim em auto-consciência e em apêgo à terra natal e a seus filhos relações com o mundo, com o longínguo Brasil e com o desenvolvimento das Ciências.


Confrontado também aqui com uma surpreendente presença do Brasil em região tão distante, o pesquisador levanta questões a respeito dos pressupostos culturais de Georg Markgraf e das razões que justificaram sair jovem da sua cidade natal para desenvolver estudos em Medicina, Matemática e em Ciências Naturais nos maiores centros e com renomados professores da época, formação que possibilitou-lhe contatos supraregionais e internacionais que levaram por fim à viagem ao Brasil.


Amor à terra e a chamada do distante: pressupostos culturais de Markgraf


Os poucos dados conhecidos indicam que também aqui apenas aproximações que considerem intentos de ascensão social e cultural podem explicar o caminho tomado por Markgraf. Se o seu pai Georg (1584-1636) era mestre-escola, reitor, pastor, era também o organista da igreja, crescendo assim em ambiente voltado à instrução e musical e religioso marcado pela Reformação. Nela o papel central da palavra da leitura  e da escrita evidencia-se em púlpito de pedra renascentista, de 1577, e o interesse de Markgraf por Astronomia e seus elos com os Países Baixos parecem já prefigurados no teto de estrelas gótico do edifício e em retábulos de pintores holandeses da igreja evangélica local.


O caminho de Markgraf parece ter assim determinado tanto pelo significado dado à leitura e aos estudos no ambiente escolar e religioso reformado como pelos interesses por assuntos matemáticos relacionados com a música. A gama de seus interesses apenas pode ser explicada assim sob concepções das antigas artes liberais nas suas transformações sob os impulsos reformatórios, em particular aquelas das disciplinas matemáticas do Quadrivium, a Música, Aritmética, Geometria e Astronomia. Markgraf foi visto correspondentemente como matemático, tendo sido integrado nessa qualidade no círculo mais estreito de influência das autoridades holandesas no Brasil.


O estudo da Medicina e da Matemática iniciou em 1627 na Universidade de Leipzig, dando continuidade a seus estudos em vários outros centros, em particular naqueles marcados pela Reformação de Erfurt, Wittenberg, Strassburg/Estrasburgo - principal centro da difusão de escritos reformados - Basiléia, Ingolstadt, Altdorf, Greifswald e Rostock.


Esse número das cidades procuradas por Markgraf, tão distantes entre si, oferece um surpreendente panorama dos principais centros de difusão de idéias, escritos, livros, do ensino e da erudição reformada, sendo improvável que tenham sido escolhidas sem premeditações e intuitos. Markgraf insere-se assim em contexto interno-europeu definido, marcado por transformações de pensamento e convicções, e é a partir dele que a sua ida posterior (1636) a Leiden, nos Países Baixos, e as suas posteriores decorrências tornam-se compreensíveis.


Sendo alemão, evangélico, e portador de formação diferenciada, surgiu como nome apropriado para acompanhar a Johann Moritz de Nassau-Siegen (1604-1679), Governador niederlandês do Brasil no contexto de seus encargos para a Companhia das Ilhas Ocidentais Niederlandesas, juntamente com o seu professor Willem Piso (1611-1678), médico pessoal do príncipe.


Ao lado de outros nomes de artistas e eruditos, entre eles Albert Eckhout (1610-1655), Frans Post (1612-1680) e Pieter Post (1608-1669), a consideração contextualizada de Markgraf traz à consciência a necessidade de consideração desse empreendimento holandês no Brasil nas suas inserções no complexo processo de transformação cultural e científica desencadeado pela Reformação em rêdes internacionais na Europa.


Se dentre os seus professores nos Países Baixos, conhecem-se e.o. os nomes do botânico e médico Adolpho Vorstius (Vorst, 1597-1663) e do astrônomo e orientalista Jacob Golius (Golis, 1596-1667). conhecendo-se os elos com o mundo extra-europeu desses eruditos - Golius havia estado em Marrocos, entre 1622 e 1624 como embaixador holandês, exercendo posteriormente a função de professor de árabe em Leiden - são os pressupostos culturais e de formação de Markgraf em contextos centro-europeus que devem sobretudo centralizar as atenções.


Considerando a amplidão de contextos transpassadores de fronteiras nacionais e regionais interno-européias relacionados entre si pela Reforma e suas consequências para as ciências no qual deve ser situado Markgraf, surpreende que, na sua internacionalidade, tenha-se sempre mantido a menção à sua cidade natal no seu nome.


A menção a Liebstadt como cidade natal de Marcgraf surge não apenas nos escritos do passado, mas sim também em estudos do presente, inclusive no Brasil. É a partir também da sua origem nessa pequena cidade que é considerado como uma das mais destacadas personalidades da história da Saxônia, tanto em estudos regionais como em registros oficiais, favorecendo viagens e estabelecendo pontes (G. Hauswald, "Forschungsreise nach Brasilien", Sächsische Heimatblätter 7/5, 1961, 271-274). Há, assim, aspectos relacionados com o amor ao "Heimat" e com a identidade cultural que devem ser considerados em estudos tanto do passado como do presente.


Essa contínua identificação de Markgraf com a Saxônia a partir de sua menor cidade seria incompreensível em muitos outros casos de personalidades que nasceram em pequenos povoados e que alcançaram projeção mundial.


Ela levanta questões a leitores, em particular no Brasil, que não sabem localizar e avaliar o significado da sempre citada Liebstadt. Ela abre, porém, perspectivas para reflexões sôbre a auto-consciência de origens de Markgraf, o posicionamento cultural de sua personalidade por parte de seus contemporâneos e a questão da perspectiva geo-cultural a ser dada na pesquisa.


Markgraf identificava-se como alemão da Mísnia, nome que traz à consciência o significado da cidade de Meissen e do antigo marquesado de mesmo nome.



Lembrando o papel de brasileiros na valorização de Markgraf


Uma das publicações que marcaram época na historiografia brasileira e que mais a nobilitam foi a edição monumental da Historia Naturalis Brasiliae, de Marcgrave, por Affonso de E. Taunay (1876-1958), uma ediçãõ do Museu Paulista comemorativa do cinquentenario da fundação da Imprensa oficial do Estado de São Paulo (Jorge Marcgrave, Históría Natural do Brasil, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado 1942)


Taunay estava consciente que a sua tentativa em ressuscitar condignamente a figura de Markgraf não esgotaria o tema, uma vez que não pôde examinar materiais existentes em acervos europeus. Lamentou, sobretudo, não ter acesso a material inédito conservado na Biblioteca Nacional de Berlim e materiais esparços em arquivos holandeses.


Taunay via, na edição da obra em português, uma necessidade e o cumprimento de uma dívida, um ato de justiça histórica para com Markgraf que considerava como 1) o primeiro naturalista e 2) o primeiro astrônomo do Novo Mundo, ou melhor, 3) o primeiro observador que no continente americano que teria feito ciência pura. Baseando-se na autoridade de Artur Neiva, Markgraf surge, ao lado de Piso, como os iniciadores da Biologia no Brasil. Já anos atrás a Revista do Museu havia publicado um artigo relativo a Markgraf (J. Moreira, "Marcgrave e Piso", Revista do Museu Paulista 14, 1926, 649-673).


O empreendimento de Taunay foi conduzido com o máximo rigor científico possível. A tradução do texto foi realizada pelo latinista Mons. José Procópio de Magalhães, Professor do Seminário Central do Ipiranga, da Arquidiocese de São Paulo, indicado para a tarefa pelo Arcebispo D. Duarte Leopoldo e Silva. Sob o ponto de vista etnográfico, a obra foi orientada por especialistas do Museu Nacional, Nadir Raja Gabaglia de Toledo e Heloísa Alberto Torres. A  parte linguística ficou a cargo de Plinio M. da Silva Ayrosa.


As partes da obra concernentes às várias áreas disciplinares das Ciências Naturais foram comentadas por especialistas brasileiros, entre êles Alberto José de Sampaio, botânico, chefe de seção do Museu Nacional, o zoólogo Paulo Sawaya, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, e ictiólgo João de Paiva Carvalho do Departamento de Indústria Animal da Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo, o ornitólogo Oliverio M. de Oliveira Pinto, Diretor do Departamento de Zoologia do Estado de São Paulo e o entomólogo Frederico Lane, assistente do Departamento de Zoologia do Museu Paulista, tendo sido as partes relativas à astronomia e à meteorologia comentadas por Domingos Costa, do Observatório Nacional, e  Salomão Serchrenick, da Diretoria de Meteorologia.


Affonso de E. Taunay procurou coordenar todo o material relativo ao autor e à obra que pôde coligir. Valeu-se sobretudo de estudo publicado pelo biólogo Eugen Willis Gudger, do American National Museum of Natural History ("George Marcagrave, the first student of american Natural History", The Popular Science Monthly, setembro 1912), lamentando, porém, não ter esse pesquisador considerado a contribuição astronômica de Markgraf e a literatura brasileira a seu respeito.


Citando E. Willis Gudger, toma a si a opinião de que, tivesse Markgraf mais longamente vivido, teria sido êle provavelmente o primeiro naturalista de sua época e talvez mesmo de todas as eras após Aristóteles (!). O estudo de Gudger era conhecido no Brasil apenas através de um resumo publicado pelo Rodolpho von Ihering (1883-1914) na Revista do Museu Paulista, em 1914 (op.cit. 307-315).


Para suprir a lacuna bibliográfica do estudo de Gudger, considerou trabalhos de pesquisadores do país, entre êles Alfredo de Carvalho, Juliano Moreira, Rodolfo Garcia, além de tratadistas da história da astronomia.


Significado para Pernambuco no contexto político-cultural da época


A obra pôde ser realizada com o apoio do Govêrno de Pernambuco, justificado pelo fato da obra de Markgraf dizer respeito ao Nordeste do Brasil. Esse apoio foi alcançado graças a Carlos de Lima Cavalcanti, então Interventor do Estado e posteriormente embaixador do Brasil no México, o seu sucessor Agamemnon Magalhães, assim como do escritor Gastão Cruls (1888-1959).


A edição pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo foi possibilitado através do empenho de Sud Mennucci, que então a dirigia, junto ao Secretário da Justiça do Estado de São Paulo e do Diretor Geral da Secretaria de Estado, José de Moura Resende e Fábio Egydio de Oliveira Carvalho e que alcançaram o apoio do Governador Adhemar de Barros.


Com o atraso dos trabalhos devido à situação da Guerra, a impressão da obra, que pelas suas grandes dimensões exigia recursos excepcionais, teve o seu prosseguimento possibilitado graças ao apoio de governantes de São Paulo, do Interventor Federal Fernando Costa e do Secretário da Justiça Dr. Abelardo Vergueiro Cesar.


O trabalho editorial foi acompanhado pelo naturalista, desenhista e fotógrafo Carlos Amadeu de Camargo Andrade, do Departamento de Zoologia do Estado de São Paulo e antigo assistente do Museu Paulista.


O empenho dos funcionários da Imprensa Oficial levou a que a obra se tornasse exemplar da qualidade de impressão da época e a padrão de excelência assinalador dos 150 anos de fundação da instituição.


A publicação da obra de Markgraf inseriu-se na corrente de esforços destinada à publicações de obras raras da bibliografia xeno-brasileira, que incluira o volume do Rerum per octenium, traduzido por ordem do Ministro Gustavo Capanema (1900-1985), e que pretendia levar à edição de outras, como De Indiae, utriusque re naturali de Piso e as Singularitez de La France Antarctique.


"Jorge Marcgrave, de Liebstad"


O escorço biográfico "Jorge Marcgrave, de Liebstad (1610-1644) elaborado por Affonso de E. Taunay tratou dos ítens: A personalidade altíssima de Jorge Marcgrave; Seus biógrafos antigos e modernos; Manget e Lichtenstein; O ensaio excelente de E. W. Gudger; A contribuição brasileira; Alfredo de Carvalho e Juliano Moreira; As origens, A família e o berço de Marcgrave.


Também nesse estudo, Affonso de E. Taunay lembra ter Markgraf nascido em Liebstadt, de família residente ali há 200 anos, possuindo por parte de seu pai e se avô materno elevado formação, com conhecimentos de teologia, latim e grego. Sob a sua orientação, teria recebido sólida educação, tendo estudado humanidades e desenvolvido suas aptidões para a pintura e a música.


Lembra que também o seu irmão, Christiano Marcgrave (1612-1687), tornou-se médico e químico, alcançando renome com experiências de química aplicada à fisiologia e à terapêutica, nas quais procurava demonstrar as funções orgânicas por leis químicas. A sua Opera médica foi publicada em Amsterdam por Franz van der Plaats, em 1715, tendo sido incorporada à Bibliotheca Scriptorum Medicorum de Manget. Salienta, entre as suas obras, o Prodromus medicinae praticae, dogmaticae et vere rationalis, superstructurae circulari sanguinis motui necnon principis chymicis, ac hypothese Helmontiana et sylviana (Leiden, 1672) e Materia medica contracta, exhibens simplicia etc. composta medicamente ex magno numero selecta, etc. (Leiden, 1674).


Significado de Alfredo Ferreira de Carvalho


No II capítulo de seu escorço biográfico, A. de E. Taunay tratou dos seguintes pontos: Ainda os biógrafos estrangeiros de Marcgrave; Lichtenstein, revelador da sua extraordinaria figura; bibliografia de Marcgarve por Alfredo de Carvalho; Comentários de Rodolpho Garcia; Dúvidas de Gudger.


Nesse contexto, o autor lembra que o nome de Marcgrave teria sidoi primeiramente valorizado por Martinho Henrique Carlos Lichtenstein (1780-1857), zoólogo e viajante alemão, na sua obra Die Werke von Marcgrave und Piso über die Naturgeschichte Brasiliens erlautert aus dem wieder aufgefunden originalzeichnungen, publicada em ensaios, de 1814 a 1821, nas Abhandlungen der Königlichen Akademie der Wissenschaften de Berlim. Nessa obra revelou a existência do Theatrum rerum naturalium Brasiliae, que despertou a atenção de cientistas naturais, entre êles do ictiólogo Georges Cuvier (1769-1832), que para isso se dirigiu a Berlim.


Através dessa citação, o brasileiro Alfredo Ferreira de Carvalho passou a dedicar-se ao estudo desses materiais, examinando-os em 1905, realizando uma relação de 792 nomes de origem tupi referentes a animais e a plantas. Com base nessas indicações, Alfredo de Carvalho enriqueceu o seu texto "O tupí na corografia pernambucana", publicado em 1907, e para o estudo "Um naturalista do século XVII, George Markgraff (1610-1644)", publicado na Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano (72, 1909, 212-222). A. Ferreira de Carvalho traduziu também o "Die Werke von Marcgrave und Piso" de Lichtenstein. Realizou uma bibliografia exaustiva da obra de Marcgrave, em parte deixada nas fichas da sua Biblioteca Exótica Brasileira e, em parte, publicados por Eduardo Tavares de Mello (1867-1930).


Em extraordinário trabalho de levantamento bibliografico e fontes, A. Taunay lembra que Alfredo de Carvalho considerou muitas obras, entre elas: Historia natvuralis Brasiliae, auspicio et beneficio Illytriis, J. Mavrittii Com. Nassav illis, provinciae et maris svmmi profecti adornata. In qua non tantum plantae et animalia, sed et indigenarum morbi, ingenia et moris describuntur et iconibus supra quingentas illustrantur. - Lvdvnum Batavorum apud Franciscum Hackium et Amstelodam, apud Lud. Elzevirium. - 1648;Tractatus Topographicus et Meteorologicus Brasiliae cum observatione Eclipsis Solaris (incluida na obra de Piso De Indiae utriusque re naturali et medica, Amsteloedami apud Ludovicum et Danielem Elzevirius, 1658); Teatrum rerum naturalium Brasiliae; Oost-en West-Indische Warande, vervaltende aldaar de lee-en geneeskonst. Meteen verhael van de specerijen, boom-en aardgewassen, dieren etc. oin Oost-en West-Indien voorvallende. Door Jac. Bontius, Gul. Piso en Geo. Markgraf... Hier neves is bijgev. de nieuwe verbeterde Chirugijus Scheepkist (door Joh. Verbrugge) - Amsterdam, J. ten Hoorn...1694; reimpresso em 1734. Reconheceu também a importância que teria tido a Progymnasmata illa Astronomica Americana (ou, segundo Gudger, Progymnastica Mathematica Americana) na obra de Markgraf.


Países Baixos e a necessidade de consideração de contextos mais amplos


No terceiro capítulo de seu escorço, A. de E. Taunay, após considerar professores de Markgraf nos seus elos com Rostock e Stettin, dirige a sua atenção à sua estada na Holanda, a seus estudos em Leyden, aos projetos de viagem ao Brasil, à atuação da Companhia das Índias Ocidentais, à missão de J. M. de Nassau e aos projetos amplos desse príncipe.


O historiador via em Markgraf um "moço genial", prematuramente arrebatado à Ciência e cuja obra refletia a visão ampla e a cultura de J. Moritz de Nassau, que ao Brasil trouxe uma comitiva de destacados cientistas e artistas.


O significado de sua obra para o estudo do fato histórico que representou a vinda de representantes da cultura e da ciência ao Brasil no período holandês, salientados por Affonso de E. Taunay, merece hoje ser reconsiderado sob a perspectiva mais ampla dos processos históricos em que se inseriu Marcgraf. Estes devem ser procurados no contexto transpassador de limites de regiões e paises marcados pela Reformação e respectivas rêdes científico-culturais.


Foi nesse sentido que os trabalhos desenvolvidos em 2013 em diferentes cidades da Europa relacionadas com Marcgraf e seus professores relatados no presente número devem ser considerados. Êles procuraram explorar contextos pouco conhecidos ou submersos, reconhecer processos culturais que atravessaram espaços e séculos, exigindo a relativação de concepções disciplinares do presente a partir de perspectivas que relacionam estudos históricos e culturais.



Súmula de trabalhos de ciclo de estudos da A.B.E. sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo








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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Erzgebirge, Suíça Saxônica e Brasil nas tradições natalinas em regiões de passado colonial alemão e na História: Georg Markgraf (1610-1644) de e em Liebstadt, "germano da Mísnia"".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 146/2 (2013:6). http://revista.brasil-europa.eu/146/Georg-Markgraf-Liebstadt.html