Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Tuyuka. Aquarela de Curt Agthe


Tuyuka. Aquarela de Curt Agthe





Tuyuka e Tukano do Rio Tiquié.
Pranchas VI e VII
Theodor Koch-Grünberg,
Zwei Jahre bei den Indianer Norwest-Brasiliens, Stuttgart: Strecker und Schröder, 1921.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 146/11 (2013:6)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3053




A elaboração aquarelística de fotografia de Tuyuka do Uaupés
de Theodor Koch-Grünberg (1872-1924) por Curt Agthe (1862-1943)
e a sensibilidade estética indígena segundo Elisabeth Krickeberg (1861-1944)
à luz de ideais de beleza e moda de início do século XX


 

Em trabalhos da A.B.E. realizados em Berlin-Schönenberg, em 2013, considerou-se uma família que residiu nesse bairro da capital da Alemanha - posteriormente em Charlottenburg - e que por diversos motivos merece ser lembrada em estudos culturais que se referenciam com o Brasil.


Trata-se aqui da família Krickeberg, da qual se conhece sobretudo Walter Krieckeberg (1885-1962), vulto de renome na Etnologia, sobretudo na Americanística, que marcou durante décadas o trabalho do Museum für Völkerkunde em Berlim e, com as suas publicações - algumas de ampla difusão - muito contribuiu para a popularização de conhecimentos sôbre o continente americano, emparticular as suas culturas indígenas. 


As atenções, porém, foram dirigidas sobretudo à sua mãe, Elisabeth Krieckeberg (1861-1944), escritora, autora de romances, novelas e contos que em grande parte caíram no esquecimento. (Veja http://revista.brasil-europa.eu/146/Elisabeth-Krickeberg.html)


Essa atenção foi despertada não por essa atividade literária da escritora, mas sim pelo fato de ter publicado, em magazine ilustrado da sua época, também hoje pouco lembrado, apesar de sua qualidade de conteúdo e impressão, um artigo dedicado à arte plumária indígena das Américas e que testemunha um interesse por estudos de natureza etnológica para além de suas atividades de romancista, precedendo assim, o trabalho de seu  filho, à época jovem voluntário e auxiliar do Museum für Völkerkunde:


"Der Federschmuck der Naturvölker Amerikas", Mit fünfzehn Aquarellen von Curt Agthe", Velhagen & Klasings Monatshefte XXVI/3. Jahrgang 1911/12, Berlin, Bielefeld, Leipzig, Wien: Velhagen & Klasing, 229-240)


Uma leitura mais atenta desse artigo revelou que, apesar de ser um ensaio aparentemente sem maior relevância sob um ponto de vista da literatura etnológica, adquire significado em diferentes sentidos sob o aspecto de questionamentos mais recentes nos estudos culturais, em particular daqueles voltados a processos culturais em contextos globais referenciados pelo Brasil.


Entre outros motivos, pelo próprio título, teor e pela sua publicação em série de alta qualidade na divulgação de conhecimentos e novidades culturais, musicais, artísticas e de moda, dirigida a leitores de crrespondentes círculos sociais, revela uma valorização da arte indígena das Américas como digna de ser considerada ao lado e à altura de obras de artes e artesanato representadas em imagens de excelente impressão.


A inclusão desse ensaio significa assim um reconhecimento e aceitação da arte indígena como bem cultural e artístico em círculos de interesses culturais, artísticos e de moda socialmente privilegiados da sociedade, um alcance de distinção que a elevava de um nível de simples objetos de museus e de curiosidades mencionadas em relatos de viagens e divulgadas em revistas de ilustração.


Merecedor de particular atenção é o fato de ter sido a sua autora uma mulher, membro da Associação de Mulheres Escritoras e que, embora em Berlin-Schönenberg, provinha de uma região afastada, da Silésia, marcada na sua situação limítgrofe pela consciência de suas tradições, história e identidade alemã, e, sobretudo, pelo papel que desempenhou na história do movimento feminino alemão.


Nada mais natural, portanto, supor que as condições específicas dos pressupostos culturais da autora, nascida Lesske, assim como a sua formação em artes domésticas e como professora de escolas médias e avançadas para filhas de famílias bem situadas socialmente tivessem aguçado a sua sensibilidade para o reconhecimento dos valores artesanais e artísticos das vestes indígenas.


Publicando o ensaio em revista que, apesar de seus amplos interesses culturais, era uma revista de moda ou do que estava em voga ou era de bom tom, compreende-se ter escolhido assim justamente trajes e adereços indígenas para o seu texto, introduzindo assim a arte indígena na esfera de interesses de círculos sociais voltados à vida cultural da sociedade.


O caminho no tornar socialmente aceita a arte indígena em meios preocupados com o cultivo e a distinção não poderia ter sido outro do que aquele que, partindo de imagens do índio de uma literatura de aventuras e romances então muito difundida sobretudo na literatura juvenil, elevasse o nível da apreciação aos valores dos objetos e à obra, de modo qure o visual, o confronto sensível com imagens publicadas em livros e materiais expostos em museus a partir de olhares familiarizados com a fruição de expressões artísticas e questões estéticas em geral.


O artigo de E. Krieckeberg indica a força das impressões nascidas da contemplação de objetos do Museum für Völkerkunde, assim como os esforços de um tratamento fundamentado das convicções ganhas a respeito do seu valor artístico através de estudos da literatura, aqui estabelecendo pontes entre o trivial e o erudito.


É significativo, assim, que a autora, após apresentar fundamentos teóricos de suas aproximações, desenvolva a sua argumentação com estreita referência às imagens apresentadas como exemplos e comentadas.


Nesse procedimento que se aproxima de leituras de apreciadores de arte, cabe naturalmente às imagens um papel de excepcional significado. Neste sentido, não se pode deixar de considerar á altura devida a contribuição do pintor - e músico - Curt Aghte (1862-1943) na produção de aquarelas que possibilitam a exposição da autora. 


Como ilustrador dos Velhagen & Klasings Monatshefte, Curt Agthe encontrava-se em situação de conhecer como poucos a cultura ilustrativa desses cadernos mensais, preferências e estilo e tendências estéticas, de discernir o que poderia ou não bem ser recebido pelos leitores.


Se Curt Agthe partiu de seus trabalhos de objetos e de livros conservados no Museum für Völkerkunde - como atestam as referências - considerou materiais de diversas épocas e proveniências a serviço do caminho argumentativo de E. Krieckeberg.


Reelaborou assim em aquarelas imagens antes esquemáticas e objetos de passado mesoamericano mais remoto - trabalhos ingratos para tratamento criativo -, representações dramatizadas e de representação da literatura de viagens e aventuras norte-americanas, efetuou colorações de desenhos antes esboçados de viajantes que estiveram no Brasil, de modo que o aparato de imagens do artigo publicado dele exigiu diferentes aproximações, surgindo no todo como diversificado ou mesmo desigual.


Há, porém, uma aquarela de Curt Agthe que merece particular atenção por tratar-se de tratamento de fotografia de obra então recentemente publicada de Theodor Koch-Grünberg (1872-1924) (Zwei Jahre unter den Indianern: Reisen in Nordwest-Brasilien, 1903–1905, 2 vols. Berlin: Ernst Wasmuth, Berlin 1909/1910) e que demonstra de forma significativa o intento de valorização artística também aplicado ao registro fotográfico, assim elevado a obra de arte.


Aqui levanta-se, porém, a questão do tratamento aquarelístico de fotografias em preto-e-branco ou sepia, ou seja, o do olhar, da imaginação e do repertório colorístico do artista na apreciação e valorização do registro.


Trata-se assim de questões que dizem respeito aos pressupostos culturais do seu modo de ver e de projetar as suas concepções de luz, cor e atmosfera ao retrato reproduzido, o que abre perspectivas para o modo de recepção de fotografias indígenas brasileiras de acordo com as condições do receptor.


Se Curt Agthe podia observar nos objetos expostos no Museu o colorido natural das penas, de trançados e outros materiais, tendo a sua liberdade de reprodução colorística limitada pelas possibilidades de comparação direta, o tratamento aquarelístico de fotografia abre caminhos também à sua valorização segundo critérios de apreciação de cor e tonalidades de sua paleta, de sua época e, em especial, do círculo dos leitores do Velhagen & Klasings Monatshefte.


Significado da fotografia de Theodor Koch-Grünberg na aquarela de Curt Agthe


Para os estudos referenciados pelo Brasil, a imagem do índio do Uaupés no artigo de Krickeberg e na aquarela de Aghe surge como a mais importante contribuição da publicação.


As outras imagens referentes ao índio no Brasil ou dizem respeito a objetos conservados no Museu ou baseiam-se em ilustrações mais antigas, de grupos já em parte não mais existentes.


No caso da fotografia tirada da obra de Theodor Koch-Grünberg, porém, trata-se de um indígena do presente, provavelmente ainda vivo, e de trajes e adereços ainda utilizados.


A autora salienta, assim, explicitamente que entrou em contato com o etnólogo para pedir autorização para a utilização da fotografia. Curt Agthe utilizou aquela encontrada no Museu para a produção da aquarela.


Pergunta-se, em primeiro lugar, a razão para a escolha justamente dessa fotografia para a sua elaboração em aquarela e como exemplo e base de referências para a argumentação de Krickeberg.


A resposta a essa questão encontra-se nos fundamentos da aproximação teórica da autora e no desenvolvimento do seu pensamento.


Baseando-se em primeiro lugar em Heinrich Schurtz (1863-1903) (Veja ), toda a sua argumentação parte do papel masculino no desenvolvimento cultural do homem, constatação partida da existência de ligas ou grupos e sociedades de homens em "povos naturais", evidenciada sobretudo nas "casas de homens". (Veja http://revista.brasil-europa.eu/146/Arte-Plumaria-Indigena.html)


Esse papel seria resultado de uma necessidade de exteriorização do interno, de demonstração de ações de coragem e poder, de manifestação e representação do ser aos outros homens, de um processo de individualização. Sob essa perspectiva, o homem seria o motor do desenvolvimento social e cultural, uma teoria que colocava as ligas de homens em contraste com aquela das das mulheres, antes voltadas á família.


Partindo de imagens de relatos de viagem, sobretudo na sua recepção na literatura trivial de divulgação, além de objetos de grandes proporçoes do Museu, a autora comenta essa concepção teórica de Schurtz lembrando coberturas de cabeça voluminosas conhecidas sobretudo da América do Norte, capazes assim de exemplificar impulsos masculinos de afirmação, demonstração de potência, coragem, audácia e poder.


No decorrer da sua argumentação, porém, E. Krickeberg procura demonstrar diferenças entre a arte plumária a América do Norte e do Sul, aqui percebendo até mesmo maior excelência, ainda que as coberturas de cabeça e outros adereços não seriam tão portentosas.


Não apenas os grandes cocares e as magnificentes coberturas de raios de penas passam assim a ser considerados a partir das concepções do papel do homem e das ligas masculinas de Schurtz, mas sim adereços de menor porte e menos vistosos. Assim procedendo, a atenção passa da interpretação de sentidos de cocares e outros ornamentos como demonstrações de valor másculo de feitos em caça e guerra, de afirmação auto-engrandecedora e de poder à da valorização da sensibilidade estética e do gosto por adereços na ornamentação do corpo dos indígenas.


As concepções baseadas em Schurtz modificam-se assim no sentido de uma diferente forma, menos grandiloquente, de manifestação da vaidade masculina. Mesmo aqui, porém, a autora acentua a permanência da dignidade, da auto-consciência no uso e na apresentação de ornamentos pelos homens.


Como exemplo, E. Krickeberg salienta a delicadeza e a elegância dos adereços do jovem do Uaupés no Rio Negro como comprovação de como o gosto era desenvolvido entre os "povos naturais", contrariando assim opiniões depreciativas que deles se tinham.


A escolha da fotografia residiu, assim, em primeiro lugar no porte do indígena retratado, que para a autora demonstrava essa dignidade indígena no usar e apresentar os seus ornamentos. Essa dignidade associava-se a uma graça que, segundo ela, faria inveja a qualquer dama de moda da época na Europa.


Theodor Koch-Grünberg e E. Krickeberg - aproximações


Ainda que proveniente de regiões distantes entre si - Krieckeberg da Silésia e Koch-Grünberg da cidade do Alto-Hessen de Grünberg, ambos tinham sido inicialmente voltados para uma carreira de educadores. Diferentemente da escritora, porém, após os seus estudos de Filologia Clássica em Tübingen e Giessen, Koch-Grünberg entrou no serviço escolar. Assim como em Krieckeberg, também a literatura antes trivial de aventuras e em revistas de ilustração e difusão de conhecimentos, tais como Globus, despertaram a sua fascinação por indígenas. Esses conhecimentos passaram a ser também por êle aprofundados através da leitura de relatos de viagem, já tendo lido, em 1881, aquele da segunda viagem de Jules Creveaux (1847-1882), também citada por Krickeberg.


Entre 1898 e 1900, Koch-Grünberg tinha tido a oportunidade de participar da segunda Expedição ao Xingú de Herrmann August Heinrich (1871-1932), alcançando o Ronuro, um afluente do Xingu. Retornando, assumiu a sua atividade de professor no Ginásio de Offenbach, publicou artigos no Globus e um estudo mais desenvolvido sobre o animismo entre os indígenas da América do Sul. Esse trabalho justificou um convite de Philipp Wilhelm Adolf Bastian (1826-1905), diretor-fundador do Museum für Völkerkunde em Berlim a ali colaborar de forma honorária.


Theodor Koch-Grünberg teve ali a oportunidade de atuar ao lado de outros pesquisadores de renome relacionados com o continente americano, entre êles aqueles considerados por E. Krickeberg: Eduard Seler (1849-1922), Paul Ehrenreich (1855-1914) e Karl von den Steinen (1855-1929). Desde 1902 alcançara uma posição particular de prestígio por ter alcançado o doutoramento com um tema sobre os Guaicurus na Universidade de Würzburg.


Em 1903, com o apoio do Museu de Berlim, Theodor Koch-Grünberg preparou uma própria viagem, que o levou ao Noroeste do Brasil. Viajou pelo Amazonas e Rio Negro até a região do Caiary-Uaupés, pelo Apaporis e Yapurá, voltando em 1905 a Manaus. Nessa viagem, teve a oportunidade de conhecer grupos indígenas que viviam afastados e que conservavam modos e expressões tradicionais de vida. Com o material que trouxe, publicou estudos sobre os "inícios da arte na floresta" (1905), sôbre desenhos em rochas de indígenas sulamericanos (1907) e, sobretudo, o relato dos dois anos entre os índios(1903-1905, 2 vols., publicado em versão abreviada em 1921).


À época da publicação do artigo de Krickeberg (1911/12)  já Theodor Koch-Grünberg partia de novo para o Norte do Brasil, onde permaneceria até o ano que precedeu a Primeira Guerra. De Manaus subiria o Rio Negro e o Rio Branco e, após uma estadia com um grupo TaulipángM viajou pelo Uraricoera, esteve com os Yekuaná e tentou alcançar o território das fontes do Orinoco, um rio ao qual chegou por fim através do Ventuari. Na sua aula inaugural como professor de Etnologia na Universidade de Freiburg i. Br. tratou de máscaras e dança de máscaras em "povos naturais". Em 1915, enquanto o filho de Krickeberg Walter servia na Guerra, Koch-Grünberg assumia o cargo de diretor do Lindenmuseum em Stuttgart. O seu livro Vom Roraima zum Orinoco seria publicado entre 1917 e 1923.


Koch-Grünberg pode ser considerado, em visão retrospectiva, como o mais significativo pesquisador do Noroeste da Amazonia e do Rio Branco. Nos trabalhos que têm sido realizados pela A.B.E. em diferentes épocas, na própria região e em particular no âmbito do projeto internacional de estudos de culturas musicais indígenas, apoiado a partir de 1992 pelo Ministério das Relações Exteriores da Alemanha, a sua obra adquire uma central relevância, também sob o aspecto dos estudos musicológicos de orientação teórico-cultural. (A.A.Bispo, " Die Musikkulturen der Indianer Brasiliens: Stand und Aufgaben der Forschung II, 2.3. Roraima", Die Musikkulturen der Indianer Brasiliens, Musices Aptatio 1996/97, Roma/Colonia 1999, 26-33)


O seu pensamento e a sua imagem do índio podem ser estudadas a partir de sua formação e de suas experiências e atividades profissionais na Alemanha. Com a sua formação humanística convenceu-se cedo que o indígena não era um selvagem sem capacidade de sentimentos, mas homens de sensibilidade. Percebe-se, também, que a sua atenção foi voltada de forma especial a mulheres e crianças.


Como filólogo, preocupou-se em penetrar na Psique do indígena através de estudos de idiomas. Participou em festas com danças e cerimônias fúnebres, colecionando objetos de interesse etnológico.


Cultura popular não-indígena, cantos tradicionais alemães e música de voga


Theodor Koch-Grünberg não silenciou a sua impressão negativa da cultura e sobretudo da música da população não-indígena, em particular de Roraima, criticando a sua falta de originalidade. Êle menciona, assim, que os bailes consistiam de danças européias, tais como valsas, mazurcas e quadrilhas, executadas ao som de violão e flauta ou de um gramofone. Os indígenas, que trabalhavam como empregados domésticos, observavam apenas das cercas esses divertimentos.


Ao mesmo tempo, porém, devido ao apoio que recebeu da missão católica no Rio Branco, então a cargo de Beneditinos, com sede em Capella e estação no curso superior do Surumú, participou de processos de transformação da cultura indígena. Entre os monges que o auxiliariam, ali vivia o alemão Pe. Adalbert, de Lörrach, em Baden. Este foi aquele que o apresentou ao administrador da fazenda nacional São Marcos, um amigo e protetor dos missionários perante comerciantes e políticos, e que apoiou também o trabalho de Koch-Grünberg. São Marcos adquiriu na obra do pesquisador quase que a umagem de um centro paradisíaco de indígenas, onde reinava uma atmosfera festiva, e onde o próprio administrador dançava com os índios o tradicional Parischerá, principal dança dos Makuxi.


Juntamente com o Pe. Adalbert, dois índios e um caboclo da estação missionário no Surumú, o pesquisador deu continuidade á sua viagem ao norte, tendo a oportunidade de observar grupos em diferentes graus de integração. Na aldeia Koimélemong, onde viviam membros de grupos Makuxi, Wapixána e Taulipáng - citados pelo pesquisador como Yarikúna ou Arekuná - Koch-Grünberg pôde constatar a influência do trabalho missionário dos Beneditinos. Descreve como, ao redor do Pe. Adalbert, meninos e meninas recentemente catequizados se juntavam para rezar o Pai Nosso e entoar canções de natal alemãs, em makuci, tais como Stille Nacht, heilige Nacht e Am Weihnachtsbaum die Lichter brennen. Theodor Koch-Grünberg até mesmo auxiliou a reunir os indígenas para as Horas, com uma trombeta.


Ainda que Koch-Grünberg manifestava-se contrário à influência européia na vida indígena, registram-se expressões positivas relativas à missão. Por razões humanitárias fazia sentido proteger os indígenas dos brancos e impedir pelo menos temporariamente que se entregassem à bebida e adoecessem. Registrava, porém, que apesar de todos os esforços dos missionários, os indígenas permaneciam profudamente apegados a suas concepções tradicionais.


Para as suas pesquisas, Theodor Koch-Grünberg levou não apenas aparelho de gravação com cilindros fonográficos. A fim de acostumá-los ao instrumento, trouxe gravações, entre elas canções populares e peças de operetas tais como Bist meine süße, kleine Frau von Franz Lehár (1870 -1948) e Am Bosporus von Paul Lincke  (1866-1946), o famoso autor de Berliner Luft.

Sobretudo a canção - A - ja, was ist denn bloß mit der Rosa los - teria sido de agrado dos indígenas, sendo sempre executada e aprendida de cór em alemão pelas crianças.


Assim acostumados com o gravador, o pesquisador pôde dedicar-se ao registro de cantos locais, sendo neste trabalho apoiado pelo próprio chefe do grupo, que cantava com voz baixa Pirokai da tradição maxuki, ou seja Parischerá, Tukúi, Muruá e outros; meninas cantaram com voz suave cantos usados na preparação da mandioca. Após as gravações, as mesmas foram apresentadas aos indígenas.


Tuyuka. Aquarela de Curt Agthe
Atenção à ornamentação indígena e ideais de beleza da época de Krickeberg


Esse emprêgo da música de opereta e popular da época a serviço do registro de cantos tradicionais indígenas pelo etnólogo parece poder ser considerado em paralelo com o intento de Krickeberg em demonstrar a sensibilidade estética e o gosto dos indígenas na sua ornamentação segundo critérios vigentes ou tendências da moda da sua época.


Basta aqui lembrar a atualidade das preocupações relativas à trajes sobretudo no âmbito do movimento de reforma da moda feminina promovido no âmbito de uma sociedade feminina de melhoramento das roupas de mulheres (Allgemeiner Verein für Verbesserung der Frauenbekleidung).


Em conferência realizada em 1899 em Berlim, lado de argumentos higiênicos e práticos, os estéticos foram defendidos pelo pintor Paul Brockmüller (1864-1925) e que recebera a sua formação na Academia de Berlim. Segundo comentários em artigo em magazine de ampla divulgação, esses argumentos estéticos estariam antes em condições de apelar ao sentido de beleza de mulheres. (Dr. Eulenburg, "Zur Reform der Frauenkleidung", Die Gartenlaube: Illustriertes Familienblatt 39, Leipzig: E, Keil's Nachfolger, 1900, 660)


Mais do que aspectos como chapéus e sapatos, comprimento de saias e similares, apontava-se como questão central a da "taille", que deveria superar a artificialidade de pressões e estreitamentos do corpo e, assim, uma falsificação e deformação de sua forma natural.


Na taille natural, a forma decorreria em linha leve ondulada tanto para cima em direção aos ombros moderadamente salientados como para baixo, à cintura na sua natural plenitude. Surgia assim um ângulo arredondado levemente na região da cintura que, na contemplação de um corpo nú, ereto, acentuava um belo fluxo da forma ondulada, levemente arredondada. Tais formas de taille natural, não-artificial, não eram encontradas no mundo civilizado da época, mas antes em regiões longínquas do mundo extra-europeu. (...)


Súmula de trabalhos de ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


 





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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "A elaboração aquarelística de fotografia de Tuyuka do Uaupés de Theodor Koch-Grünberg (1872-1924) por Curt Agthe (1862-1943) e a sensibilidade estética indígena segundo Elisabeth Krickeberg (1861-1944) à luz de ideais de beleza e moda de início do século XX".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 146/11 (2013:6). http://revista.brasil-europa.eu/146/Theodor-Koch-Gruenberg-Curt-Agthe.html