Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________




Colonia 1976. Foto: A.A.Bispo ©


Colonia 1976. Foto: A.A.Bispo ©


Colonia 1976. Foto: A.A.Bispo ©


Colonia 1976. Foto: A.A.Bispo ©


Colonia 1976. Foto: A.A.Bispo ©


Colonia 1976. Foto: A.A.Bispo ©


Colonia 1976. Foto: A.A.Bispo ©




Colonia 1976. Foto: A.A.Bispo ©


Colonia 1976. Foto: A.A.Bispo ©

Colonia 1976
Fotos: A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 147/15 (2014:1)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3070





O Carnaval no Brasil e o Carnaval de Colonia
a partir de imagens do homem inerentes ao culto dos Três Reis Magos

- reflexões no início do programa de interações euro-brasileiras  nos anos 70 -



Débito e Crédito - 1974-2014. Época de balanços e reajustes.
Revendo inícios de interações euro-brasileiras na procura de esclarecimentos em situações complexas de heranças culturais.

 
Recapitulando o ínicio do programa de atividades brasileiras na Europa em 1974, deve-se lembrar de três grandes fatores que, estreitamente relacionados entre si, justificaram a escolha da cidade de Colonia como principal centro de estudos, contatos e iniciativas: o Catolicismo, o Carnaval e, do ponto de vista da pesquisa, o fato de, na sua Universidade, ter atuado um musicólogo que se dedicou a tradições do mundo latino e da sua linguagem simbólica: Marius Schneider (1903-1982).

Essa proximidade de Colonia ao mundo latino manifesta-se, sob a perspectiva brasileira, sobretudo na intensidade com que é festejado o Carnaval na cidade do Reno.

Embora o Carnaval também seja celebrado em outras cidades e regiões católicas da Alemanha, por exemplo em Mainz (Mogúncia), é Colonia que oferece a chave para a análise de sentidos dessa festividade no ciclo do calendário religioso.

Adquire, assim, uma posição de particular significado para o estudo das tradições populares de países marcados pelo Catolicismo.

Diferentemente de outras regiões do mundo, o Carnaval de Colonia não se apresenta apenas como aparente resíduo de antigo paganismo, de sobrevivência dificilmente explicável em contextos cristãos, mas como parte integrante de uma cultura católica, o que se manifesta na
participação do clero e de comunidades em sessões e expressões festivas.

Não surgindo como corpo estranho, mas como integrante de um todo cultural, não incompatível com os seus fundamentos religiosos, o Carnaval nessas condições favorece análises dos seus significados no ciclo do ano natural e eclesiástico e, a partir de suas características de humor, alegria, da sátira e do grotesco, de reconhecimento de princípios ou mecanismos fundamentais inerentes ao edifício imagológico.

Compreende-se, assim, que Colonia tenha favorecido estudos de aspectos simbólicos de expressões culturais sobretudo constatáveis no mundo ibérico e latino, como no caso de Marius Schneider.

O contexto de Colonia permitiu o prosseguimento - e em parte correção -dessas análises sob a perspectiva de uma Antropologia cultural cristã ou cristianizada imanente à linguagem visual das festividades, para além de suas diferenças nos vários contextos regionais.

Essa preocupação de compreensão de sentidos, favorecida em Colonia, marcou desde o seu início por décadas os estudos euro-brasileiros, levando a que a atenção ao edifício de imagens culturais, na sua estrutura e sua dinâmica interna, nas suas relações com o mundo natural e com a visão do homem se tornasse predominante em programas de pesquisas, em simpósios e cursos universitários.

Cidade do Carnaval e da Catedral com o relicário dos Três Reis Magos


Essas relações com a visão do homem, com uma Antropologia inerente ao sistema de imagens explicam-se de forma particularmente compreensível a partir do culto aos Três Reis Magos, cujas relíquias, segundo a tradição, encontram-se na Catedral de Colonia, tendo sido importante objetivo de peregrinações no passado medieval.

Compreensivelmente, a festa de 6 de Janeiro é intensamente celebrada nas igrejas e em expressões tradicionais populares. Assim como no Brasil e em outros países latinos, ainda que representados por crianças, os Três Reis Magos visitam casas, cantando de porta em porta e angariando donativos.

Significativamente, a adoração dos Três Reis Magos no presépio surge na emblemática da cidade e representa o signo da Universidade. Culto, cultura popular, cidade e Universidade relacionam-se assim num complexo de imagens marcado pelo conceito ou mistério da Epifania.

O pesquisador cultural é conduzido pelo contexto cultural de forma mais favorável do que em outras regiões a investigar as relações entre essa imagem e o mistério que representa com o edifício cultural no seu todo e os princípios hermenêuticos que possibilitam a sua compreensão.

Similaridades e diferenças com o Carnaval do Brasil nas suas múltiplas expressões

Numa primeira aproximação, para além das similaridades resultantes das características gerais e do espírito de alegria carnavalesca, são sobretudo diferenças relativamente ao Carnaval do Brasil que despertam a atenção do observador.

Em primeiro lugar, essas diferenças justificam-se pelo deslocamento da festa relativamente ao ano natural, uma vez que o verão brasileiro naturalmente induz a uma maior liberalidade de costumes e maior sensualidade do que o fim de inverno europeu ainda frio e com chuvas.

Explica-se assim, a menor intensidade de manifestações de corpos, licenciosidade e, em consequência, uma aparente maior ingenuidade, o que faz com que o Carnaval não se apresente de forma tão contrastante com normas morais religiosas como nos trópicos.

Essa constatação de deslocamento do Carnaval com relação ao ano natural apenas torna-se compreensível lembrando-se da implantação do calendário pelos europeus e missionários sem modificação nos países colonizados e cristianizados de regiões extra-européias, levando em consequência a um deslocamento entre o perceptível pelos sentidos na natureza e os sentidos espirituais do ano eclesiástico.

Constata-se, assim que o estudo dos sentidos do Carnaval - e de outras tradições festivas do Catolicismo - não deve partir de suas expressões no hemisfério sul, mas sim nas suas relações com o mundo natural e sua interpretação religiosa no hemisfério norte.

O caminho para essas análises de sentidos não é, assim, primordialmente, aquele sugerido pelas manifestações de maior sensualidade que o Carnaval adquiriu no Brasil com o decorrer do tempo, em particular no Rio de Janeiro, mas sim em expressões mais tradicionais ainda observáveis em outras regiões do interior e em particular do Nordeste e que refletem com maior evidência a linguagem visual de festividades européias introduzidas no Brasil.

Historicidade na linguagem visual como atualizações de sentidos imanentes

Esse fato traz à consciência a transformação histórica por que passaram e passam as expressões carnavalescas para além da manutenção das características gerais e de seus sentidos fundamentais. Essa historicidade explica também as diferenças mais perceptíveis entre a configuração do Carnaval de Colonia e as tradições carnavalescas do Brasil.

Entre essas diferenças salienta-se a presença mais marcante de grupos fantasiados de soldados, grupos de tropas e milícias com antigos uniformes e representantes de poder constituído do passado do século XVIII e início do XIX, acompanhados por conjuntos instrumentais também lúdico-militares. Chama a atenção também a forte presença da polícia, a cavalo ou não, que de forma condescendente e participante na alegria abre cortejos e mantém  a segurança pública. Princípios de ordem manifestam-se também nas sessões carnavalescas organizadas segundo normas convencionais de sociedades, com presidentes, conselhos, alocuções, proclamações, distribuições de ordens e bonés.


Essas características do Carnaval de Colonia que de forma tão manifesta indica conotações militares na sua linguagem visual, presença de representantes da ordem pública e práticas associativas organizadas são explicadas em geral como resultado de uma revitalização da festa de rua após a ocupação francesa, em 1815, o que explicaria a representação crítica aos antigos detentores de poder, ou melhor, a ridicularização da situação superada e que fora marcada por guerras e conturbações.

Essa elucidação, porém, se plausível para a compreensão de trajes e outros atributos dos fantasiados de milícias do passado, não pode ser aceita no sentido de uma reinterpretação da festa nos seus sentidos básicos: a crítica a uma situação superada através do humor, da sátira e do grotesco já era próprio do Carnaval, obtendo apenas outra contextualização e linguagem visual referenciada segundo o momento histórico-político da libertação da ocupação napoleônica e do fim da guerra.

Diferentemente dessas representações divertidas de militares e representantes do poder constituído de uma situação passada, superada, de guerras e tropas agora representadas como motivo de riso e divertimento, a presença de policiais na abertura de cortejos possui naturalmente outro sentido, pois não se trata de representações ridicularizantes, mas de garantias da segurança em função e que demonstram a simpática permissão das autoridades quanto à realização das festas no contexto da ordem pública. Sinalizam-se, assim, a disciplinação policiadora das manifestações carnavalescas que teriam acompanhado a sua revitalização no período da Restauração, já à época prussiana dos anos vinte do século XIX.

Essa revitalização sob a permissão controladora oficial foi acompanhada pela criação de estruturas de ordenação segundo convenções da época, criando-se um Comitê Festivo em 1823, com um Pequeno Conselho ou Conselho de Gozação, um Grande Conselho e Assembléias Gerais. Essa supraestrutura de ordenação das festividades foi no decorrer do século modificada pela crescente influência de sociedades carnavalescas, entre outras de bairros e quarteirões que, competindo entre si, levaram a que a ordenação de atos e dos cortejos passasse de um comitê central a outro resultante da ação conjunta das sociedades.

Guardando as convenções de estruturas de sociedades, com presidente, conselhos, preleções, ordens e outras insígnias, naturalmente a serviço do divertimento e da crítica social, os trajes não são em geral aqueles do século XVIII como nos cortejos, mas sim relativamente modernos, comuns sobretudo a associações burguesas do século XIX e XX.

O impulso ordenador manifesta-se na inclusão de escolas nos cortejos, indicando que o cultivo de tradições carnavalescas foram e são vistos como de validade educativa ou formativo-cultural, dando origem a apresentações de escolas e bairros.

A leitura de estruturas e formas de organização e ordenação que se manifestam no Carnaval de Colonia deve assim ser feita diferenciadamente, considerando as suas diferentes funções, sentidos, e transformações por que passaram com a sua revitalização no decorrer do século XIX.

A "Constelação Tripla" e paralelos contrastantes com os Três Reis Magos

Que o Carnaval continuou relacionado com remotos sentidos do ano natural e religioso, isso testemunha o fato de que as sessões do comitê de preparação dos cortejos carnavalescos nesse período de reorganização continuou a dar-se no dia de Reis ou nos antecedentes, no dia de Ano Novo. Deu-se continuidade, assim, com novas expressões, a remotas expressões de inversões de autoridades que se conhecem do repertório festivo da Idade Média nessas noites após o Natal, p.e. naquelas do dia dos Santos Inocentes do dia 28 de Dezembro.

A historicidade do Carnaval, ou melhor as transformações da linguagem visual de suas expressões em manutenção do sentido básico explicam outras características do Carnaval de Colonia. Entre elas, cumpre salientar a nomeação de uma "Constelação Tripla" de Colonia (Dreigestirn), constituída de campônio, "virgem" e príncipe. Essa tríade, masculina, assume significado de particular relevância para a análise de sentidos do Carnaval nas suas relações com a imagem do homem, pois, na sua triplicidade, traz à consciência concepções que encontram o seu paralelo - naturalmente aqui com características contrastantes de exemplaridade e de veneração - no número dos Três Reis Magos.

A "Constelação Tripla", na denominação e na linguagem visual de seus componentes, incompreensíveis numa primeira aproximação, pois não indicam só relações com classes sociais, incluindo uma "virgem", tornam-se explicáveis a partir de antigas concepções triplas do homem, de remotas proveniências, conhecidas do antigo Gnosticismo mas também de ensinamentos paulinos e, assim, de validade segundo a tradição católica.

Como o próprio nome diz, a figura do campôneo ou camponês, do lavrador ou do homem que cuida de animais, indica o homem do trabalho, da terra, dominado pelos sentidos e sujeito às forças naturais, correspondendo à homem corporal, ligado à carne, ou a parte inferior de um homem compreendido na sua triplicidade. A linguagem visual pode manifestar essa concepção com diferentes recursos, seja com trajes rurais, instrumentos de trabalho, atributos animais, referências à rusticidade ou a imagens - hoje discriminatórias - da antiga geografia simbólica, em particular com africanos. Nesse sentido, compreende-se também que essa figura pode trazer penas à cabeça, explicando também a presença de índios na linguagem visual do Carnaval.

A figura da "virgem", homem transvestido, pode ser compreendida como parte intermediária da imagem tripla do homem, cuja ambivalência de gênero indica uma situação de instabilidade, podendo descer à parte inferior, à corporal ou terrena do camponês ou subir àquela superior representada pelo príncipe. Corresponde, em concepções de remotas origens, à parte psíquica do homem, passível de descer ou subir se mais dependente dos sentidos ou do espírito, representada por recursos que sugerem fogosidade interior com conotações redundantes de ingenuidade e pureza - como tranças - e, ao mesmo tempo, provinciais ou campôneas, indicadoras do seu vínculo com o corpo.

Essa figura pode explicar a presença de grupos femininos com similares características visuais ou de homens transvestidos na linguagem carnavalesca. Também aqui pode-se considerar referências com a geografia simbólica de remotas proveniências relativas a uma esfera intermediária, média ou mediterrânea, também aqui com conotações que poderiam ser vistas hoje como sendo discriminatórias.

A figura do príncipe - não confundir com a dos reis nas tradições da Epifania - corresponde à parte mais alta do homem tripartido, em remotas tradições àquela do homem superior, que domina com o espírito o corpo e a sua vida interior, mas que também pode descer das alturas, cair e entrar nas conturbações inferiores. Explicaria a presença de príncipes e outras representações de homens sobranceiros, claros e loiros, assim como referências simbólico-geográficas a arianos ou homens de regiões nórdicas.

Essas figuras da "Constelação Tripla" são lúdicas, motivos de riso e divertimento, ou seja, não representam seriamente o homem que com elas folga, mas sim características de um homem superado, o que também explica a sua representação como velhos e velhas, também e sobretudo em figuras da "virgem" que podem surgir como velhas lúbricas e grotescas na sua procura de satisfação e correspondentes expressões de cólera pelas frustrações.

Elas manifestam, visualmente, em atos, gestos e palavras tais como frutos ou filhos o interior do homem que, presidindo cortejos e representações de uma situação superada - no caso p.e. da ocupação francesa - surgem em posição daquele que escapou das conturbações e guerras olhando para os altos e que agora as vê retrospectivamente já não mais como ameaçadoras, ou seja mortas na sua periculosidade. Este homem, porém, com os seus frutos ou filhos, é ainda parte da lúdica, e ainda que imbuído de espírito, este é antes do álcool, do vinho, ou melhor, da cerveja tão consumida no Carnaval.

Na tradição bíblica, essa imagem do homem-tipo traz à lembrança Noé, que com os seus três filhos salvou-se do dilúvio que destruiu a antiga humanidade na sua arca, olhando para os sinais do céu, plantando porém a vinha e caindo bêbado, sendo encontrado na sua nudez.

O mundo superado era aquele iniciado pelos filhos de Adão e Eva expulsos do Paraíso, obrigados a uma vida de trabalho, cujos filhos era Caim, o homem da terra, o que matou Abel, por assim dizer o intermediário, pois, com a mudança interior de Eva, concebeu esta Seth, aquele das alturas. A descida deste dos altos levara à deturpação geral da humanidade. Os filhos de Noé, por sua vez, recapitulam sob novas condições esses mecanismos, dando origem aos povos que explicam as concepções simbólico-geográficas e étnicas das representações.

A recuperação da Coroa perdida pelo homem com a expulsão do Paraíso, porém, apenas é alcançada com a vinda em adoração dos três magos ou sábios à Sabedoria encarnada e que, trazendo os seus dons, voltam às suas regiões como Reis. Explica-se, assim, não apenas a lógica das relações entre a linguagem visual que se constata nas expressões lúdicas de situações superadas, observadas por aqueles que procuravam conhecimento e que as encontram na simplicidade do Logos nascido em carne, na mangedoura, entre animais e pastores.

Ao contrário do grotesco das divertidas representações do Carnaval, tem-se aqui motivo de veneração, uma vez que se trata do homem à procura de conhecimento que na unidade da sua tripartição, trazendo os seus frutos ou dons das respectivas regiões à adoração da Sabedoria, readquire a nobreza de reis da Criação perdida por Adão, por assim dizer renascendo.

Compreende-se, assim, que, diferentemente das figuras carnavalescas, os grupos que vão de casa em casa por ocasião da Festa de Reis representam não figuras jocosas e velhos, mas meninos já coroados, entoando cantigas de louvores e saudações. Também aqui trata-se de uma representação de um acontecimento histórico, uma vez que a vinda do Logos na humanidade carnal ocorreu no passado, não no presente, quando a Sabedoria é esperada antes na imagem de um noivo que procura a noiva, ou seja aqueles que a amam.

Essas profundas relações com a procura de conhecimentos do homem e a Sabedoria encontrada e venerada explicam a presença da imagem dos três Reis Magos no signo da Universidade de Colonia.

Essa linguagem visual e as suas correspondentes concepções não são apenas de interesse histórico, remontantes aos primórdios da universidade na Idade Média, mas forneceram as bases para iniciativas que relacionaram pesquisa e religião e que foram marcaram os trabalhos euro-brasileiros por décadas. Elas foram, de início, porém, resultantes de reflexões teológicas a partir das referências à adoração dos magos no presépio no Novo Testamento, partindo delas interpretações que tiveram influência na pesquisa, em particular na Etnomusicologia.

O texto bíblico foi aqui usado no sentido de que os povos das diferentes regiões da terra deviam trazer os seus dons - entre êles a música e seus instrumentos - à adoração do Filho de Deus, nele convergindo. Esses dons, naturalmente, apenas poderiam ser aqueles aptos a esse ato de adoração, ou seja o conceito do que é apto, da Aptação cultural passava a substituir aquele da Adaptação ou da Aculturação ou Inculturação então discutida em círculos preocupados com a realização dos impulsos renovadores conciliares no Brasil.

Diferenças a partir de perspectivas do Brasil e suas consequências

O confronto com as características diferenciadoras do Carnaval de Colonia em relação àquelas estudadas no âmbito do Folclore no Brasil foi marcada sobretudo pela atenção ao significado das transformações ocorridas no século XIX na linguagem visual do Carnaval em função de revitalizações e reordenações.

Essa atenção era decorrente dos intuitos de reconsideração desse século nos estudos culturais e musicais que marcaram as reflexões a partir de meados da década de sessenta no Brasil e que foram acentuados pela passagem dos 150 anos da Independência do Brasil em 1972. Em viagem de pesquisas ao Leste e ao Nordeste do Brasil, expressões festivas do Carnaval sobretudo em regiões então abertas do litoral e marcadas por intensos processos de transformação cultural foram objetos de particular observação.

O despertar de interesses pelo século XIX foi resultado primordialmente de preocupações teóricas quanto à coerência de divisões de disciplinas culturais segundo determinações de cultura erudita e popular e segundo critérios históricos, empíricos e sistemáticos. A constação de problemas de recorrências recíprocas e redundantes na elucidação tanto de desenvolvimentos históricos como de expressões folclóricas levou a um questionamento fundamental de critérios e um direcionamento das atenções a processos, também no sentido de uma processualidade inerente ao edifício cultural de imagens e que se manifesta em diferentes atualizações segundo épocas e circunstâncias.

A constatação da existência de expressões intermediárias entre as predeterminadas esferas culturais, não consideradas suficientemente nas áreas disciplinares assim constituídas, favoreceu o reconhecimentos de universos culturais submersos, entre êles aqueles de associações, sociedades ou corporações vocais e instrumentais, de dança ou outras, de organizações e processos ordenadores de tradições no século XIX, revitalizadas mas de remotas proveniências e sentidos.

Foi, assim um desenvolvimento decorrido no Brasil, em particular no âmbito das preocupações por uma renovação conceitual do Folclore e na introdução adequada da Etnomusicologia que aguçou a sensibilidade para a percepção de estruturas e mecanismos subjacentes à linguagem visual configurada no século XIX do Carnaval de Colonia nas suas relações com a concepção do homem.

A aproximação do programa concebido para o tratamento de questões culturais em cooperação internacional diferia assim pela sua orientação marcada por reflexões concernentes a determinações de objetos e procedimentos da pesquisa, daquela de teólogos que partiam do texto bíblico.

Apesar de convergiram para o mesmo complexo de imagens e concepções, o caminho da aproximação era distinto: um partindo da preocupação na análise de edifício de imagens e seus mecanismos internos da visão do mundo e do homem que seriam também subjacentes ao texto bíblico, outro partindo da tradição escrita revelada para justificar procedimentos no presente para a missionação, servindo para a pesquisa para julgar o que seria apto ou não de culturas extra-européias.

Essa fundamental diferença entre aproximações e posicionamentos quanto ao papel da pesquisa, em particular da Etnomusicologia, nem sempre fácil de ser reconhecida e que conheceu interações de sentidos e nebulosidades, marcou o desenvolvimento dos trabalhos euro-brasileiros nas décadas seguintes.

A cooperação entre pesquisadores e teólogos nem sem foi isenta de mal-entendidos ou imprecisões, e essa situação complexa merece hoje ser revista em intuitos de reajustes de desvios relativamente aos propósitos originais do programa iniciado em 1974.

A aproximação decorrente das reflexões nascidas no Brasil diferenciou-se também daquela da Volkskunde nas suas relações com a religião. Essas, em elucidações que também foram conhecidas e defendidas no Brasil, salientavam sobretudo as origens de expressões do Carnaval e outras da época de fins e início de ano com as suas mascaradas, revestimentos, cortejos, figuras de velhos e velhas, danças e festas com consumo de bebidas em práticas de "expulsões do inverno".

Essa hipótese, porém, apesar de ser justificada pelas relações das práticas com o ano natural, pouco contribui para esclarecer a inversão que se constata na representação de autoridades do poder constituído nessas expressões e que leva à crítica social e política. Situações superadas do passado, ridicularizadas e assim desativadas do seu poder opressor, são transportadas para o presente e aplicadas a autoridades e fatos que devem ser superados através da acentuação do seu caráter grotesco.

Já na Idade Média - talvez ainda mais do que na época da reordenada e disciplinada revitalização de expressões no século XIX - a crítica social e moral manifestava-se até mesmo em representações jocosas de religiosos, monges e freiras, até mesmo de símbolos religiosos e relíquias, sendo que inversão da ordem manifestava-se também no uso de trajes e insígnias de outras profissões ou corporações.

A hipótese da expulsão do inverno não elucida também, se não compreendida no seu sentido metafórico ou espiritual, a razão pela qual as expressões carnavalescas se relacionem com a idéia de vésperas do período da Quaresma, de noites precedentes ao dia de dias de jejum, o que se manifesta nas suas múltiplas denominações até o presente.

O reconhecimento desse mecanismo exigiu um outro tipo de aproximação, o da análise do próprio edifício cultural nas suas imagens segundo as perspectivas teóricas preconizadas no programa de estudos e que deveriam ter levado, em diálogos e cooperações, a diferenciações e mesmo correções das construções simbólicas já existentes.

Os conhecimentos ganhos através de confrontos do Carnaval de Colonia com o do Brasil a partir de aproximações teóricas desenvolvidas no Brasil nas suas complexas interações com posições antes teológicas na Alemanha possibilitou também esclarecimentos sob muitos aspectos de questões relativas a expressões carnavalescas no Brasil na sua história e no presente.

Vários aspectos aparentemente enigmáticos da linguagem visual do Carnaval, da organização e da configuração de cortejos puderam ser esclarecidos em contexto mais amplo, supra-nacional, valorizando também essa visão mais ampla as características mais propriamente diferenciadoras. A análise dos mecanismos intrínsecos ao edifício da visão do mundo e do homem, explicáveis através da idéia de uma mundo superado, desativado nas suas ameaças pela representação hilariante e grotesca, revela uma concepção de historicidade nas suas relações com a sistemática que difere sob muitos aspectos de uma compreensão linear de decorrências.

Assim como o cortejo a serviço da alegria de milícias e soldados de antigos detentores de poder causadores de conturbações no passado marca o Carnaval de Colonia, essas representações de situações passadas são necessáriamente alvo de lúdica, de jocosidade distanciadora. Jamais trata-se de intuitos de representações históricas do passado, de encenações de acontecimentos e fatos sem posicionamento crítico em expressões de divertimento.

A intenção de "homenagear" acontecimentos históricos ou povos em enrêdos carnavalescos de ceertas escolas de samba no Brasil não corresponde mais a esses princípios estruturais do edifício cultural em que se insere o Carnaval, uma vez que não se homenageia o que se ridiculariza.

Representando uma incoerência relativamente ao sistema imagológico de remotas origens, vigente também em expressões mais tradicionais do Carnaval no Brasil, enrêdos assim concebidos exigem ser considerados e analisados sob outros critérios, uma vez que sugerem fundamentais mudanças de compreensões de decorrências históricas nas suas relações com a alegria, de historicidade linear em complexas interações substitutivas de concepções cíclicas.

Matéria preparada por colaboradores do ISMPS
orientada e traduzida de forma reelaborada por
Antonio Alexandre Bispo






Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "O Carnaval no Brasil e o Carnaval de Colonia a partir de imagens do homem inerentes ao culto dos Três Reis Magos".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 147/15 (2014:1). http://revista.brasil-europa.eu/147/Brasil_e_Carnaval-de-Colonia.html