Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Universidade de Colonia 1975. Foto A.A.Bispo


Colonia 1976-77-Fotos: A.A.Bispo ©



Colonia 1976-77-Fotos: A.A.Bispo ©








Colonia 1976-77
Fotos: A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 147/12 (2014:1)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3067






O Brasil e o projeto
"Culturas Musicais da América Latina no século XIX" nos anos 70




Débito e Crédito - 1974-2014. Época de balanços e reajustes.
Revendo inícios de interações euro-brasileiras na procura de esclarecimentos em situações complexas de heranças culturais


 

Colonia 1976-77-Fotos: A.A.Bispo ©
Sob o lema de "época de balanços e revisões", a Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira rememora, em 2014, inícios de atividades brasileiras desenvolvidas a partir de 1974 na Europa e que determinaram desenvolvimentos posteriores.


Trazê-las à memória surge como necessário para reconhecimentos de possíveis desvios, de correções, de reorientações no presente e de aberturas de novas perspectivas, exige, porém que se considere o programa de projetos e intentos que as fundamentou e os seus pressupostos.


Esse programa era complexo, pois correspondia a preocupações e anseios inovadores em várias esferas da vida musical e de círculos voltados aos estudos culturais, do Folclore, da História, da Arquitetura e da Educação, do entusiasmo pela música antiga e contemporância, de personalidades com diferentes tendências estéticas e concepções, presos a diferentes tradições.


Análises de tendências e perspectivas das de uma época que foi sentida internacionalmente como de mudanças . e que ficou marcada pelo ano de 1968 também no Brasil - constituem um intento que permanece sempre em aberto. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/116/Indice116.htm)


Pela multiplicidade de anseios e intenções que caracterizava o programa, possibilitado pelo apoio do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD), os seus diferentes pontos levaram à procura de contatos e diálogos com diferentes instituições e pessoas da vida cultural e universitária européia, sobretudo alemãs. Neles, de forma distinta, as interações foram desenvolvidas a partir das expectativas e intenções trazidas das diferentes esferas da vida cultural e educativa, assim como à luz dos impulsos recebidos de várias personalidades do Brasil.


Houve, porém, um fator unificador nessa diversidade de inteitos programáticos, e esse dizia respeito à expectativa de criação e revitalização de elos em cooperações internacionais a partir de uma mudança teórica de perspectivas no tratamento de questões culturais, superando-se divisões disciplinares orientadas segunda esferas culturais do erudito, popular e folclórico através de um direcionamento da atenção a processos e à dinâmica do edifício cultural.


Essas tendências e perspectivas resultaram inicialmente da constatação, em evento realizado em 1966, das insuficiências e redundâncias no relacionamento entre disciplinas teóricas no âmbito musical, onde passou-se a perceber que a História da Música utilizava-se de explicações provenientes da pesquisa de cunho empírico ou ideológico para elucidar e interpretar fases e desenvolvimentos pouco fundamentos nas fontes, e, vice-versa, o Folclore e a Etnografia utilizavam-se de forma pouco sólida e refletida resultados de interpretações históricas ou hipóteses de origens que se mostravam cada vez mais infundadas.


A superação de concepções de esferas que determinavam escopos e métodos das várias disciplinas passou a ser procurada através de um direcionamento da atenção a transformações, mudanças e a fenômenos e decorrências intermediárias e em transição que tinham ficado até então pouco considerados na divisão convencional de áreas.


Com a instituição do Centro de Pesquisas em Musicologia - hoje IBEM como centro de estudos do ISMPS - no âmbito de sociedade voltada ao estudo de processos e à ação refletida e renovadora na vida musical, em 1968, passou-se a propugnar um desenvolvimento das pesquisas e a instituição da Musicologia no Brasil segundo uma nova concepção, fundamentalmente interdisciplinar, orientada segundo uma atenção dirigida ao processual. 


Essas tendências vinham de encontro a correntes que procuravam rever e atualizar concepções do estudo de Folclore e, em especial, no âmbito da música religiosa segundo os preceitos de abertura do Concílio Vaticano II e que passavam dar uma especial consideração a processos aculturativos.


Com a instituição estatutária do Centro de Pesquisas em Musicologia dessa sociedade, procurou-se coadunar pesquisas, reflexões, interpretações e execuções de obras. Entre esses eventos, salientaram-se aqueles dedicados à música em igrejas. Marcos nesse desenvolvimento foram viagens de estudos a centros de cultivo de obras do século XIX, em particular em Minas Gerais.


Essas experiências e estudos levaram à discussão de questões relacionadas com continuidade e discontinuidade de tradições, de relações entre o histórico e o popular e folclórico, o que vinha de encontro às preocupações de pesquisadores da cultura popular e que foram tratadas em aulas do Museu de Folclore da Associação Brasileira de Folclore, relacionanda-os com as preocupações de redefinições dessa disciplina. Com a ampliação para três anos do curso de História da Música no conservatório que seguia a orientação da sociedade e a dedicação de todo um ano á História da Música no Brasil, a partir de 1970, os esforços de pesquisas, reflexões e sua difusão didática intensificaram-se.


Festival de Música Colonial e Barroca como expressão de mudanças de concepções


Significativo momento nesse direcionamento das atenções a processos disse respeito, sob o aspecto histórico-musical, à crítica e superação de concepções de esferas do repertório, do passado musical adjetivadas como de "Música Colonial" e "Música Barroca".


Em Festival apoiado pela Secretaria de Cultura do Município de São Paulo, em 1970, procurou-se não apenas integrar peças levantadas pela pesquisa do passado brasileiro no repertório de orquestras e coros que cultivavam obras do passado europeu.


O objetivo foi relacionar a pesquisa local e regional com a global, dirigindo sobretudo a atenção aos problemas resultantes da aplicação indiferenciada de determinações de fases ou períodos da história política na consideração de desenvolvimentos musicais. Um dos pontos a ser superado seria o da categorização de uma música qualificada como "colonial" e que deveria, ser antes, considerada nas suas inscrições em processos coloniais ou no Colonialismo e na Cristianização como processos abrangentes.


Essa discussão exigiu não apenas a revisão da história do descobrimento do patrimônio cultural do passado mais remoto do Brasil, no contexto político-cultural no qual decorrera e na valorização por que passava nas últimas décadas. Implicava também numa valorização do século XIX, inclusive de obras de "mestres menores", de cidades do interior e de bairros periféricos, que surgia agora sem a mácula de um período de decadência, criada tanto em função de uma suposta época de florescência colonial como retroativamente por princípios desqualificadores de épocas posteriores da Reforma Sacro-Musical e do Nacionalismo do século XX.


Essa reconsideração do século XIX inscreveu-se assim em amplo espectro de tendências e perspectivas que, preconizando visões voltadas a processos no passado e no presente, a tradições e inovações, a transformações, criticava qualificações adjetivadoras e substantivadoras de "Música Colonial" ou similares, assim como de posições sacro-musicais do passado pré-conciliar e da estética nacionalista que marcava a literatura histórico-musical.


Essa reconsideração sentida como necessária do século XIX tornou-se particularmente atual pelo fato de comemorar-se, em 1972, a passagem dos 150 anos da Independência do Brasil, o que dirigiu ainda de forma mais intensa à exigência de uma superação da situação paradoxal e absurda que desqualificava justamente processos que levaram à emancipação da nação, às suas expressões a desenvolvimentos histórico-culturais que a seguiram.


Significativamente, relevantes pesquisadores mais confrontados com compositores e obras de José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), como Cleofe Person de Mattos, participaram desde o início do movimento que se desenvolvia em São Paulo.


O levantamento de dados da época da vida do Rio de Janeiro no século XIX por Ayres de Andrade muito contribuia ao aumento de conhecimentos (Ayres de Andrade, Francisco Manuel da Silva e seu tempo 1808-1865: Uma fase do passado musical do Rio de Janeiro à luz de novos documentos, 2 vols., Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 1967, 86 ss.). Essa importante obra, porém, não correspondia às às visões mais amplas preconizadas através de um direcionamento da atenção a processos que exigia a superação de delimitações nacionais segundo fronteiras do presente, estudos de desenvolvimentos expansionistas e de abertura de áreas nas suas inscrições continentais e transatlânticas.


A problemática teórica que se colocava no Brasil exigia assim ser tratada nas suas dimensões latino-americanas e americanas em geral, e estas no contexto mais amplo da expansão européia e dos processos por ela desencadeados.


Procura de Francisco Curt Lange (1903-1997) em Punta del Este


A personalidade central tanto relativamente ao redescobrimento e revalorização do passado musical do período colonial do Brasil quanto às relações latino-americanas e ao americanismo em geral era Francisco Curt Lange, diretor do Instituto Interamericano de Musicologia, em Montevideo, e que para isso precisava ser procurado. 


Realizou-se, assim, uma viagem que, em 1973, atravessando os Estados do Sul, atingiu o Uruguay e a Argentina, sendo o encontro efetivado em Punta-del Este. Nesse encontro, tratou-se da época do descobrimento do passado musical de Minas Gerais, da luta desencadeada com representantes do nacionalismo brasileiro, do interamericanismo e do americanismo na sua contextualização nos anos 30 e 40, da sua necessária atualização segundo a transformada situação política e, sobretudo, das possibilidades de interações com o movimento de renovação da pesquisa musicológica de orientação cultural partido de São Paulo.


No âmbito dos estudos superiores, os principais marcos nesse desenvolvimento foram na época a introdução do curso de Etnomusicologia - compreendido independentemente dessa área como mera substituição terminológica de Folclore - na Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo, acoompanhada que foi por uma atualização do curso de História da Música.


Seguindo também aqui a orientação encetada pela sociedade ND, criou-se paralelamente um Centro de Estudos de Música Brasileira, com a Orquestra e Coro de Música Sacra Paulista, unindo pesquisa, ensino superior, difusão de obras do passado, em particular do século XIX e de tradição subsequente, atentando-se sobretudo também á "ambientação" ou à contextualização cultural adequada das execuções.


Esse Centro, que levaria até mesmo à tentativa - embora de pouca duração -de introdução da Musicologia no âmbito da Faculdade de Música em curso que seria reconhecido oficialmente, desempenhou assim um papel pioneiro na introdução da disciplina Prática de Execução Histórica (Historische Aufführungspraxis) no Brasil, compreendida porém já inovativamente como de orientação teórico-cultural por considerar conhecimentos adquiridos da pesquisa empírica de expressões tradicionais. Essa preocupação de relacionar Etnomusicologia e Musicologia Histórica na Prática de Execução seria continuamente discutida nas décadas seguintes, chegando a constituir uma das sessões do Congresso Internacional Música e Visões na abertura do triênio pelos 500 anos do Descobrimento do Brasil, em 1999.


A introdução da Etnomusicologia nos cursos superiores de São Paulo nos anos 70 exigiu não apenas um levantamento da literatura específica e da situação da disciplina nos seus diferentes centros, mas, em decorrência da orientação preconizada dirigidas a processos, inclusive com a inscrição do próprio vir-a-ser disciplinar em contextos histórico-culturais.


A atenção particular ao desenvolvimento da disciplina - e da Musicologia Histórica - nos demais países latino-americanos, intensificada após o encontro em Puntal Del Este, levou à consideração da atuação de pesquisadores e instituições em outros países, salientando-se aqui a Venezuela.


Significativamente, em proposta do Ministério da Cultura, cogitou-se em relações mais estreitas, através de um programa a ser desenvolvido em Caracas, da Etnomusicologia então em desenvolvimento no Brasil e aquela do país latino-americano.


Essa proposta, porém, que teria determinado outros desenvolvimentos, pareceu por demais vincular a Etnomusicologia e a História da Música segundo as correntes teóricas desenvolvidas no Brasil àquelas da Ethnomusicology ou da Antropologia da Música norte-americana que, apesar de sua posição de preeminência no cenário internacional, não correspondiam às exigências que tinham-se colocado desde o início das reflexões causadas pela constatação de insuficiências na interpretação de desenvolvimentos históricos e de expressões culturais.


Essa sensibilidade para a necessária modificação de perspectivas tinha sido justamente despertadada pela constatação da transformabilidade de formas e sentidos de instrumentos e de expressões culturais - danças, festejos, cortejos - e que, consideradas sob enfoques inadequados, levara a hipóteses interpretativas artificiais, de fundamentação ideológica e que se repetiam, não plausíveis ou realmente elucidativas, ou claramente errôneas. Apesar do uso de obras básicas da Etnomusicologia praticada nos Estados Unidos nos cursos, jamais pretendeu-se implantar no Brasil a disciplina segundo modêlos de sua prática e ensino nos centros norte-americanos.


Razões de Colonia: à procura de Marius Schneider (1903-1982)


A constatação de que muitas das expressões consideradas como de origem africanas eram não apenas existentes em outros países latino-americanos como também na Europa medieval, tornou evidente que uma cooperação internacional no sentido renovador de concepções apenas poderia ser bem desenvolvida através do contato com um pesquisador que tivesse profundo conhecimento do repertório de expressões culturais da Península Ibérica, que se tivesse dedicado a questões de análise de sentidos e imagens que justificavam adaptações e transformações e que fosse um integrado no desenvolvimento institucional de seus maiores centros.


Uma personalidade que preenchia todas essas condiçõe era a de Marius Schneider. Algumas de suas principais obras tinham sido discutidas no Brasil, revelavam a importância de sua aproximação e interesses, demonstravam porém aspectos obscuros e interpretações questionáveis que exigiam elucidações em conjunto e, possivelmente correções a partir dos conhecimentos adquiridos pesquisas desenvolvidas no Brasil (Veja)


Foi essa a razão, portanto, que levou à escolha do Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia como local para estudos e início de esperadas reflexões conjuntas. Para tal, Berlim, apesar de seu significado relativamente à revisão de concepções de sistemática organológica relacionadas com Curt Sachs (1881-1959) pretendida pela proposta brasileira após sobretudo impulsos recebidos de A. Schaeffner (1895-1980), encontrava-se ainda em situação por demais marcada por instabilidade e impulsos reconstrutivos, não abrangendo também as preocupações com instrumentos o complexo mais amplo de questões e que dizia respeito a sentidos e a mecanismos intrínsecos de imagens elucidativos de metamorfoses. (Veja)


Cultivava-se assim a expectativa que, com o contato com Marius Schneider, fosse possível desenvolver em conjunto, de forma modificada, atualizada e mesmo corrigida de suas explanações e mesmo edifícios de características sistemáticas da simbologia, bases mais fundamentadas e profundas para o desenvolvimento de uma musicologia de orientação segundo processos culturais em dimensões globais.


Para isso, o Instituto de Musicologia de Colonia parecia oferecer condições ideais, uma vez que não era apenas marcado pela tradição de pensamento de Marius Schneider na esfera da Musicologia Comparativa ou Etnomusicologia. Sob o aspecto da Musicologia Histórica, o Instituto oferecia grandes nomes da pesquisa da Antiguidade e da Idade Média, como Heinrich Hüschen, além de contar com a presença de uma personalidade que como poucas contribuiu à valorização da Musicologia como ciência no quadro universitário, acompanhando-a no seu desenvolvimento através de décadas e que a poderia acompanhar agora na institucionalização adequada da área no Brasil: Karl Gustav Fellerer (1902-1984).


Projeto "Culturas Musicais da América Latina no século XIX" e expectativas brasileiras


Se as grandes expectativas que se uniam com Marius Schneider não puderam ser realizadas, que já então se encontrava afastado em 1975, constatou-se sob outro aspecto paralelos com desenvolvimentos ocorridos no Brasil, o que prometia interações enriquecedoras na cooperação internacional tanto na área da Etnomusicologia como na da História da Música.


Também na Alemanha encontrava-se em andamento um grande projeto dedicado a estudos da História da Música do século XIX, um empreendimento patrocinado pela Fundação Fritz Thyssen, e cujo mentor era Karl Gustav Fellerer.


Essa série incluiu um volume dedicado "Às Culturas Musicais da América Latina no século XIX", editado por Robert Günther, Professor de Etnomusicologia do Instituto.


Ainda que na sua orientação se constatasse antes uma aproximação a correntes da Etnomusicologia norte-americana do que à tradição de estudos simbólicos e de significados de Marius Schneider, Robert Günther demonstrou desde o início uma particular abertura para as tendências e perspectivas do desenvolvimento e das expectativas brasileiras do programa a ser desenvolvido pelo editor desta revista.


Esse projeto, assim vinha de encontro sob muitos aspectos às tendências de pensamento preparadas no Brasil, uma vez que dirigia a atenção ao século XIX, à América Latina em geral, incluia aportes de natureza histórica e de estudos de tradições populares ou folclóricas, sendo que o próprio termo em plural "Culturas" na sua inscrição epocal no século XIX manifestava interações interdisciplinares entre a História e a Etnomusicologia.


Esses paralelos, porém, revelaram-se como coincidências de um espírito do tempo, acidentais ou circunstanciais, refletindo antes problemas já há muito discutidos no Brasil e não podendo corresponder às expectativas propugnadas de desenvolvimento de uma musicologia de orientação teórico-cultural dirigida a processos.


Mais uma vez: problemas da divisão da Musicologia em áreas disciplinares


Se no Brasil todo o desenvolvimento do pensamento havia partido da constatação das dificuldades resultantes de divisões disciplinares definidas segundo categorizações de esferas culturais, esses problemas manifestavam-se ainda de forma mais grave em situação de institucionalização universitária da Musicologia em Colonia e que tinha o orgulho de incluir tanto a Musicologia Histórica, como a Etnomusicologia e a Musicologia Sistemática nos seus trabalhos.


Para além das diferenças quanto ao objeto de estudos, essa divisão disciplinar implicava e implica de forma complexa e incoerentes distinções metodológicas e geográfico-culturais. Assim, a Musicologia Histórica compreende-se sobretudo como delimitada à Europa, cabendo à Etnomusicologia o mundo extra-europeu. Compreende-se, assim, que a América Latina em projeto dedicado a estudos da História da Música do Século XIX não tenha sido incluido na área da Musicologia Histórica, mas sim na da Etnomusicologia.


Pelas respectivas especializações, porém, um etnomusicólogo tem a sua atenção voltada antes a expressões culturais populares, podendo haver até mesmo ressentimentos quando à transplantação de tradições européias a outras regiões ou à vida musical de características ocidentais fora da Europa. Reciprocamente, um historiador da música tende a ignorar ou colocar em segundo plano quanto a significado compositores, obras, instituições e desenvolvimentos em outros países de vida musical com características ocidentais, inclusive, à época, àqueles do continente americano.


Devido a essa divisão espacial, todo o desenvolvimento histórico-musical representado pela música sacra, pela ópera, pelo piano, pela prática orquestral e vocal ou pela atividade criadora nos países americanos permaneciam em espaço intermediário, pouco ou inadequadamente tratado tanto pelos historiadores da música como pelos etnomusicólogos, marcado aqui por ressentimentos e pêsos de consciência de europeus conscientes da ação colonizadora e missionadora do passado.


A própria institucionalização universitária da disciplina, com a solidificação de uma divisão incoerente de áreas disciplinares em cátedras estabeleceu uma situação muito mais difícil do que aquela do Brasil na época, onde havia ainda a possibilidade de tomada novos rumos. Os intentos, as tendências e as perspectivas originadas no Brasil no sentido de desenvolvimento de uma musicologia de orientação teórico-cultural consistente não puderam encontrar, assim correspondência adequada e possibilidades de interações no sistema convencionalmente estabelecido na Alemanha.


Uma visão dirigida sobretudo a sentidos intrínsecos a expressões culturais, capazes de explicar estruturas e mecanismos transformatórios e adaptações, em prosseguimento e mesmo correções das pesquisas e do pensamento de Marius Schneider, e que poderia ter fornecido as bases para o desenvolvimento em cooperação internacional da musicologia de orientação cultural propugnada, não pôde realizar-se.


Sob essas condições, o projeto da obra dedicada às Culturas Musicais da América Latina no âmbito dos Estudos de Historia da Música do Século XIX, ainda que pioneiro pela atenção dedicada a temas latino-americanos, não poderia deixar de transformar-se em coletânea de estudos que, ainda que valiosos, refletiam posições disciplinares convencionais e, mais gravemente, deixavam de lado justamente as culturas indígenas no processo transformador por que passaram no século XIX.


Relações com participantes do projeto, precedentes e consequências


Vários dos pesquisadores de diferentes países americanos envolvidos já se encontravam em contato com o desenvolvimento precedente no Brasil, em primeiro lugar naturalmente Francisco Curt Lange, mas também daqueles da conjecturada cooperação com a Venezuela, entre êles Isabel Aretz de Ramón y Rivera (Caracas) e Luis Felipe Ramón y Rivera. As suas contribuições, porém, em particular aquelas de Curt Lange, reelaboradas em cooperação com o editor desta revista, não correspondiam às tendências de fundamental renovação de perspectivas que se discutiam, refletindo posições convencionais.


Muitos dos participantes do projeto tornar-se-iam por décadas estreitamente ligados a desenvolvimentos relacionados com o Brasil em anos que se seguiram, sendo particularmente intensos os de estudiosos chilenos, especialmente Samuel Claro Valdés, Luis Merino e Eugenio Pereira Salas. Também no âmbito de projeto que se iniciaria anos depois do ICM/UNESCO relativo á Música na Vida do Homem, personalidades que tinham participado nesse projeto voltaram a reencontrar-se, tais como Bernal Flores (San José), Olive Lewin (Jamaica), Carmen Sordo Sodi (Mexico) e Donald Thomson (Puerto Rico).


Talvez um dos principais problemas do projeto tenha residido justamente na influência exercida por Francisco Curt Lange como um dos mais dedicados colaboradores de Robert Günther.


Como mencionado, Francisco Curt Lange tinha sido procurado e participado das reflexões e iniciativas de renovação de perspectivas em andamento em 1973, e os contatos se mantiveram através dos anos, intensificando-se nas atividades que iriam se desenvolver na Europa quando passou a envolver-se no projeto das Culturas Musicais da América Latina.


As relações com o editor foram marcadas por estreita amizade e familiaridade, e o fato de Curt Lange passar repetidamente vários meses residindo na moradia do editor durante suas estadias na Alemanha possibilitou o conhecimento profundo do seu pensamento, da sua personalidade, permitindo também múltiplas interações em iniciativas comuns.


Apesar da extraordinária experiência de pesquisa, do trabalho monumental e pioneiro que desenvolveu, da abertura e da clarividência ousada de suas orientação em período do passado nacionalista, Curt Lange, apesar de mostrar-se aberto às novas reflexões, apesar da relação profunda de admiração e respeito mútuo, apesar do otimismo que sempre predominou nos projetos e iniciativas, não pôde contribuir a favor de uma uma renovação básica de perspectivas como propugnada pelo programa voltado ao desenvolvimento de uma musicologia de orientação teórico-cultural e superadora de barreiras disciplinares entre as áreas da história, da etnologia e da sistemática.


O trabalho nesse sentido foi sempre prejudicado pela intensidade da vida agitada e movimentada de Curt Lange, pelo impulso de - tal como um sagitário sempre procurando novos alvos, novidades, contatos e objetivos -, sempre empenhado em manter a sua liderança em assuntos latinoamericanos e  vivos os seus inúmeros contatos de sua vasta rêde de conhecimentos, criava uma verdadeira roda viva que prejudicava a concentração, o aprofundamento de reflexões e constância em iniciativas.


Dessa forma, os trabalhos preparados por Curt Lange ao projeto ("A música no Brasil durante o século XIX, Regência-Império-República", op.cit. 121 ss.; e "Louis Moreau Gottschalk, 1828-1869", pág. 371 ss.), realizados em produção rápida, escritos ao sabor da pena, em parte de memória e em forma de bilhetes ou páginas soltas, não puderam, embora reelaborados e mesmo reescritos pelo editor desta revista, constituir mais do que apanhados ou súmulas em forma de mosaicos de conhecimentos já considerados em outras publicações e apresentados em linguagem pouco disciplinada.


Na autoconsciência e na franqueza direta, pouco comedida e sensível que o caracterizava, porém, inicia o seu trabalho com uma crítica severa da situação da pesquisa musical no Brasil. Nessa frase inicial, salienta que as pesquisas até hoje efetuadas no paíse sobre diversos períodos que compreenderiam a história da sua música erudita teriam sido de tal forma fracas e inconsistentes que não teriam podido traçar um quadro exata de cada uma destas etapas. Pela falta de documentação autêntica e suficiente, decorrente da falta de pesquisas, o historiador apenas movia-se em conjecturas.


Essa crítica de Curt Lange não baseava-se assim no questionamento de bases do pensamento historiográfico - partindo êle ainda de períodos ou fases da história política - mas sim na crítica ao nacionalismo dos brasileiros. Estes, até mesmo chauvinistas como salientava, estariam sempre prontos, avessos a reconhecer "os benefícios da influência lusitana e universal", a escrever uma História da Música brasileira e não uma História da Música no Brasil, ao qual somava-se um "centralismo carioca", que ainda hoje se ocupava com a exaltação dos valores locais. (op.cit. 121).


Essa sua crítica, embora áspera, correspondia não apenas às suas experiências no passado no Brasil, como também a seu posicionamento no contexto político internacional como alemão de nascimento e formação, e que conhecera também o questionável uso da adjetivação de "alemã" a áreas disciplinares à época do Nacionalsocialismo.


Essa observação de Curt Lange possuia assim não apenas plausibilidade como era também de significado político-cultural em dimensões globais, devendo ser compreendida adequadamente, representando uma contribuição valiosa para o desenvolvimento consciente de iniciativas que se seguiram, voltando a constituir núcleo de atenções na temática do II Congresso Brasileiro de Musicologia realizado  no Rio de Janeiro pelos 500 anos do Descobrimento da América em 1992. (Veja)  


Também no contexto dessa crítica ao chauvinismo de brasileiros surge como compreensível e justa a sua pouca compreensão pelo menosprêzo de alguns historiógrafos musicais brasileiros pela considerável obra de Vincenzo Cernicchiaro, que, como Curt Lange salientou, tentou escrever uma História da Música nel Brasile" e não "del Brasile" (Storia della Musica nel Brasile. Dai tempi coloniali sino ai nostri giorni 1759-1925, Milano 1926, op.cit. 147)


Aspectos do pensamento de Robert Günther manifestados introdutóriamente


No Prefácio, o editor da obra, Robert Günther, ainda que etnomusicólogo, salienta não apenas o incompreensível desinteresse de europeus pelos problemas das culturas musicais latinoamericanas, pela ausência de obras latinoamericanas em programas e edições. Criticando sobretudo a situação política instável nos vários páises nas suas implicações culturais, marcadas por arbitrariedade, justifica a necessidade de considerações de fundamentos e pressupostos históricos que caracterizaram o século XIX como um século de mudanças em todas as esferas da cultura, época decisiva para a consciência de identidade nacional dos povos latinoamericanos. (pág. 7).


Para êle, a história da música da América Latina refletia de forma particularmente marcante o espírito pioneiro e uma trágica consciência de missão da Europa. Durante o período colonial, ter-se-ia transplantado de forma exclusiva condições existentes nas metrópoles nas áreas anexadas, e o domínio dos poderes coloniais e da Igreja foi profundo e sem compromissos, abrangendo todas as esferas da vida social, sufocando todos os movimentos emancipatórios. Essa visão das decorrências explica um posicionamento antes negativo do autor relativamente à vida cultural segundo modêlos europeus no século XIX e a simpatia pelas escolas nacionais com o emprêgo de motivos e rítmos da música popular, ainda que os compositores não se libertassem de estilos europeus. (op.cit. pág.9)


Com razão, lamenta Robert Günther o desrepeito trágico e a exclusão de grupos indígenas que, isolados e reduzidos a tribos, teria a sua vida musical limitada à tradição, com exceção dos países andinos. Essa observação, ainda que não tendo paradoxalmente repercussões na obra, contribuiu à intensificação das atenções às culturas indígenas no âmbito do programa a ser desenvolvido e que teria posteriormente a sua expressão no projeto internacional dedicado às Culturas Musicais Indígenas no Brasil subvencionado pelo Ministério das Relações Exteriores da Alemanha e desenvolvido a partir de 1992.


Outro impulso considerável do pensamento de Robert Günther disse respeito ao reconhecimento do papel desempenhado pelos imigrantes europeus. Para êle, uma retrospectiva do século XIX levava à convicção que o elemento decisivo na vida musical não teriam sido tanto as forças residentes, mas antes os emigrantes que, embora presos às suas antigas tradições, atuaram ativamente no desenvolvimento da vida musical. Questionável, porém, surgia a sua afirmação de que os alemães teriam sido mais adaptável do que os inglêses e franceses, casando-se com latinoamericanas e integrando-se rapidamente no meio.


Essa suposição representou também um impulso para pesquisas mais diferenciadas que marcaram o desenvolvimento dos estudos euro-brasileiros nas décadas seguintes, em particular no simpósio dedicado à renovação dos estudos transatlânticos e interamericanos pelos 300 anos da emigração alemã à América realizado em 1983 conjuntamente com a comemoração dos 80 anos de Curt Lange em Leichlingen sob a direção do editor.


Como mencionado, a decepção quanto às expectativas brasileiras que o projeto pudesse contribuir ao desenvolvimento de uma musicologia de orientação cultural em cooperação internacional pode ser explicada justamente pela divisão de áreas disciplinares já altamente institucionalizadas na Alemanha no seu complexo de problemas de objetos de estudos, de métodos e de concepções geográfico-culturais do Europeu e do Extra-Europeu e cujas consequências interpretativas podem ser constatadas nas explanações introdutórias à obra.


Robert Günther salientava por fim que a convivência pacífica de povos, raças e nações obrigava que se procurasse tirar lições da história, que se considerasse o cultivo e o desenvolvimento de todas as tradições musicais e que essas fossem "toleradas" na medida do reconhecimento de suas leis próprias e suas condições históricas. Dessa forma, nessa tolerância, o objetivo dos estudos residia em contribuir a uma melhor compreensão dos povos nas nações e entre as nações. (op.cit. 19)


Os obstáculos teóricos que explicam a decepção quanto a um desenvolvimento mais apropriado das tendências e perspectivas segundo o programa preparado no Brasil nesse projeto poderiam ter sido enfrentados com cuidado diferenciador no decorrer das décadas, se as circunstâncias não levassem a que Robert Günther não participasse mais intensamente do desenvolvimento dos intentos euro-brasileiros dos anos seguintes.


Muito ter-se-ia evitado de dificuldades de toda a ordem, na Alemanha e no Brasil, muito mais se teria adiantado no desenvolvimento de uma Etnomusicologia e mesmo de uma musicologia de orientação cultural no seu todo e impedido situações altamente questionáveis da área no presente se os trabalhos pudessem ter contado mais intensamente com o empenho e a abertura que essa grande personalidade de Etnomusicólogo aberto a questões históricas demonstrou em meados da década de 70.


Os problemas que derivariam de um direcionamento dos trabalhos sobretudo a partir e por intermédio de Berlim e sua posterior influência em Colonia deverão ser relatados em outros números desta revista.


Matéria preparada por colaboradores do ISMPS
orientada e traduzida de forma reelaborada por
Antonio Alexandre Bispo









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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "O Brasil e o projeto Culturas Musicais da América Latina no século XIX nos anos 70".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 147/12 (2014:1). http://revista.brasil-europa.eu/147/Culturas-Musicais-da-America-Latina.html