Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 147/16 (2014:1)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3071






O Itinerário de Carl Friedrich Philipp von Martius no Brasil de 1817: análise de relatos


Prof. Dr. Leonardo Ferreira Kaltner (UFF)

 

Resumo


O artigo consiste de uma investigação acerca dos relatos da viagem de Carl Friedrich Philipp von Martius (1794 – 1868) ao Brasil, e do seu itinerário em 1817, entre o Rio de Janeiro e São Paulo, em que buscamos analisar, através da perspectiva dos Estudos Pós-coloniais, a construção textual de um identidade cultural brasileira no século XIX, às vésperas da Independência. A fim de analisar linguisticamente estes relatos, valemo-nos do aparato teórico da Linguística Textual, sobretudo da Intertextualidade de duas de suas principais obras.


Palavras-chave: Linguística Textual; Carl F. P. Von Martius; Estudos Pós-Coloniais


 

Introdução 

Uma análise cultural sobre o contexto em que se passou a vida e se desenvolveu a obra do naturalista alemão Carl Friedrich Philipp von Martius (1794 – 1868) suscita, ao leitor e pesquisador contemporâneos, profundas reflexões sobre as relações interculturais que originaram o status quo internacional e as configurações sociais e políticas das nações da América Latina após o seu diversificado processo de independência. Assim, estas reflexões guiam-nos, sobretudo, ao Brasil-Colônia, em seu processo de independência, iniciado em 1808, com a transferência da Corte portuguesa ao Brasil, culminando com os eventos de 1822. Mesmo tendo sido este um processo de independência americano sui generis, que não decorreu de via revolucionária, tendo antes ocorrido devido a um processo de transição política, cumpre-nos salientar que suas singularidades envolveram diversos atores do Velho Mundo em uma reconfiguração do equilíbrio de poder posterior às Guerras Napoleônicas, e este contexto está presente nas obras do naturalista alemão.

A obra de Carl F. P. Von Martius, por suas singularidades históricas, culturais e científicas, vincula-se ao universo acadêmico europeu do século XIX, tendo por tema central o Brasil. Ao mesmo tempo, em seu conjunto, mostra-se não só como uma descrição, mas também como um projeto de desenvolvimento para integração do Brasil à configuração política internacional europeia do início do século XIX. Rompia-se, repentinamente, o isolamento do Brasil, ainda que a organização escravocrata permanecesse, evitando-se uma ruptura da elite local com seu passado colonial. Todavia, o processo revolucionário que libertou os antigos domínios espanhois da América Latina também não se consolidara por completo, e a América Latina permanecia no século XIX sob o estigma do neocolonialismo e da dependência.

A viagem empreendida por Carl Friedrich Philipp von Martius e por Johann Baptist von Spix entre os anos de 1817 e 1820, pelo território do Brasil, ficou conhecida na história como a Missão Austro-Alemã, tendo sido esta uma expedição científica e artística, chamada também na época de literarische Reise. Compunha a Missão também o Prof. Mikan, botânico e entomólogo, oriundo de Praga, o médico Dr. Pohl, especialista em mineralogia e botânica, Natterer, zoólogo assisente do Museu de História Natural de Viena, Thomas Ender, pintor de paisagens, Buchberger, pintor de plantas, H. Schott, jardineiro, além de um caçador e de um mineiro. Dentre as inúmeras obras e tratados científicos resultantes desta viagem, cumpre-nos destacar a obra Reise in Brasilien, cujo gênero e tipologia textuais são participantes da estética da Literatura de Viagens do século XIX, de autoria de Carl F. P. Von Martius e de Johann B. Von Spix. Esta é, portanto, uma das principais fontes de pesquisa para a Missão Austro-Alemã e o Brasil do século XIX, às vésperas da Independência.

Se, por um lado, temos, na Reise in Brasilien, o relato de uma viagem empreendida no Brasil pela Missão Científica Austro-Alemã, entre os anos de 1817 e 1820, a partir do qual se analisa, comparativamente, a situação da colônia lusitana das Américas e a Europa, em seus aspectos naturais, sociais e culturais; por outro lado, as observações dos autores, contextualizadas no âmbito das academias e universidades europeias da Alemanha do final do século XVIII e do início do século XIX, podem nos guiar a uma reflexão sobre as configurações deste próprio contexto. Desta forma, o diálogo intercultural das Missões científicas dos séculos XVIII e XIX é, concomitantemente, um processo de construção recíproca tanto de identidades, quanto de alteridades.

A Missão Científica Austro-Alemã, que precorreu o Brasil entre 1817 e 1820, foi financiada pelo então rei da Baviera, Maximiliano I. Ao mesmo tempo esta expedição compunha o séquito real da Arquiduquesa de Áustria, D. Maria Leopoldina, que viria ao Brasil casar-se com o Príncipe herdeiro dos reinos de Portugal, Algarves e Brasil, D. Pedro de Alcântara, futuro imperador do Brasil. Este evento, após o Congresso de Viena em 1815,  reintegraria, posteriormente, a antiga colônia ultramarina lusitana como um novo ator no contexto internacional ao Velho Mundo, tornando-se, a partir de 1822, um Império autônomo e independente, alinhado à Inglaterra, participante de uma agenda política de relações interculturais e internacionais europeias, sob uma perspectiva diversa daquela que foi a inicial colonização portuguesa. Logo o profundo isolamento que caracterizou o Brasil do século XVI até o início do XIX rompia-se, ainda que a estrutura mercantilista colonial se mantivesse, sobretudo, através da exploração da mão-de-obra escrava, defendida pela elite local, tendo decorrido mais de sessenta anos do início deste processo de Independência até a Abolição em 1888.

Desta forma, a Missão Austro-Alemã de 1817, composta por cientistas, artistas e acadêmicos, ainda que viesse com o objetivo científico de coletar e descrever espécimes dos reinos mineral, vegetal e animal das Américas, para institutos científicos europeus, e observar a sociedade brasileira, constituía-se, sobretudo, como uma missão de integração da América ao círculo do conhecimento científico que estava por se desenvolver e se expandir na Europa, justamente pela busca de se ultrapassar as fronteiras locais e continentais. Diferenciava-se, portanto, das primeiras missões catequéticas jesuíticas do século XVI, por exemplo, no alvorecer da colonização portuguesa, vinculando-se, neste novo contexto do século XIX, a uma política cultural intrinsecamente relacionada ao desenvolvimento das Ciências Naturais.

Com uma apurada formação humanística, desde a tenra infância, tendo desenvolvido sua carreira acadêmica em Erlangen e em Munique, Carl Friedrich Philipp von Martius foi, profundamente, influenciado, no início de sua carreira de naturalista, por Alexander von Humboldt, cujas expedições às Américas serviram de inspiração para a Missão Científica Austro-Alemã. Humboldt empreendeu uma viagem da Europa às Américas, entre os anos de 1799 e 1804, não passando, todavia, pelo Brasil.

No presente artigo, teceremos comentários acerca do primeiro ano de viagem e do itinerário percorrido por Carl Friedrich Phillip von Martius e pela comitiva da Missão Austro-Alemã, no ano de 1817, em que viaja do Rio de Janeiro a São Paulo. A fim de analisarmos os relatos, escritos em Latim e em Alemão, desta viagem, valemo-nos dos recursos de análise linguística da Linguística Textual, sobretudo em relação à intertextualidade, como veremos mais adiante. Para uma análise cultural destes relatos, debateremos, a seguir, a interdisciplinaridade dos Estudos Pós-Coloniais com os estudos sobre a Independência do Brasil, que, historicamente, situa-se no ano de 1822, mas é fruto de um desenvolvimento sucessivo de eventos.

Fontes textuais

A primeira fonte textual da Missão Austro-Alemã que apresentamos é um excerto do primeiro capítulo da obra Reise in Brasilien, escrita tanto por Carl Friedrich Philipp von Martius, quanto por Johann Baptist von Spix, fonte esta relativa aos preparos antecedentes à viagem propriamente dita. Logo esta fonte inicial apresenta o contexto político europeu em que se desenvolveu a Missão Austro-Alemã, cujo primeiro itinerário, previsto em 1815, não incluiria o Brasil em seu roteiro, e não teria participação austríaca. Inspirados, provavelmente, pela viagem às Américas de Friedrich Wilhelm Heinrich Alexander von Humboldt, a Missão que seria enviada em 1815 por Maximiliano I, Rei da Baviera, teria como itinerário a Argentina, o Chile, o Equador, a Venezuela e o México. Entretanto, com o advento do Congresso de Viena, adiou-se o prosseguimento da expedição, tendo em vista que todas a atenção dos reinos europeus concentrava-se, então, no reequilíbrio da balança de poder, após o período napoleônico.

Em 1817, após uma nova reconfiguração do equilíbrio de poder entre os reinos europeus, e a superação das guerras napoleônicas, surge uma oportunidade para que a Missão Científica às Américas fosse empreendida pela cooperação entre a Baviera e a Áustria, e assim a Missão Austro-Alemã configura-se, tendo por novo itinerário o Brasil, para onde seguiria a Arquiduquesa de Áustria D. Carolina Josefa Leopoldina, com a finalidade de casar-se com o Príncipe herdeiro de Portugal, Algarves e Brasil D. Pedro de Alcântara. A Missão Austro-Alemã acompanharia a comitiva real, e depois empreenderia uma expedição científica aos confins do Brasil.

O texto da obra Reise in Brasilien escrito durante a viagem, foi publicado em 1823 em Munique, em três volumes por M. Lindauer. A obra descreve as cidades e províncias visitadas pela Missão Austro-Alemã.

Apresentamos a seguir o estabelecimento do texto e a tradução do excerto supracitado, sobre o qual teceremos comentários em seguida.

O primeiro itinerário da Missão Austro-Alemã, relatado no Reise in Brasilien

Der grossen Fortschritte aber in der Kenntniss dieses Weltheils ungeachtet bietet er noch immer dem Forschungsgeiste ein weites Feld dar, um durch Entdeckungen den Umkreis des menschlichen Wissens zu erweitern. Mehr als von irgend einem Theile Amerika's gilt das Gesagte von Brasilien, dem schönsten und reichhaltigsten, bis jetzt jedoch wenig bevölkerten und wenig gekannten Lande, - dem Herzen dieses neuen Continentes.

Seine Majestät der König von Bayern, dieser grossinige Beförderer der Wissenschaften , überzeugt von der Vortheilen, welche für letztere unf für die Menschheit überhaupt aus der nähern Kentniss Amerika's hervorgehen, ertheilte zu diesem Ende im Jahre 1815 der Akademie der Wissenschaften zu München den Befehl, über eine ins Innere von Südamerika zu machende litterärische Reise Bericht zu erstatten. Unter den zur Reise Ausersehenen befanden wir uns Beide, der Akademiker Spix für Zoologie, der Akademiker Martius für Botanik. Es lag damals im Plane, von Buenos Ayres aus zu Lande nach Chili, von dort nordwärts nach Quito zu reisen und über Caraccas oder Mexico nach Europa zurückzukehren.

Eingetretene Hindernisse bestimmten jedoch die königliche Regierung, jene Expedition einstweilen zu verschieben. Nach kurzer Zeit erneuerte sich indessen bey Seiner Königlichen Majestät von Bayern der Wunsch, eine solche Reise in jene Länder unternehmen zu lassen, und die Vermählung Ihrer K. K. Hoheit Karolina Josepha Leopoldina, Erzherzogin von Oesterreich, mit S. K. Hoheit Don Pedro d'Alcântara, Kronprinzen von Portugal, Algarbein und Brasilien, bot die schönste Gelegenheit zur Ausführung der königlichen Absicht dar. Eben als dieses Band, durch welches der neue Weltheil in noch engere Verwandtschaft mit Europa treten sollte, geknüpft wurde, war Seine Majestät der König von Bayern in allerhöchsteigener Person zu Wien gegenwärtig, und beschloss nach Uebereinkunft mit dem k. k. Hofe, welche gesonnen war, Gelehrte im Gefolge der erlauchten Braut nach Brasilien abgehen zu lassen, einige Mitglieder Seiner Akademie zu gleichem Zwecke der österreichischen Expedition beizuordnen. Die erehnvolle Wahl fiel auf uns Beide, und wir erhielten demnach am 28. Januar 1817 die Weisung, eiligst nach Wien und von da nach Triest abzureisen, um uns dort auf den bereit liegenden Fregatten nach Rio de Janeiro einzuschiffen. Die königliche Akademie der Wissenchaften bekam gleichzeitig den Befehl, uns mit gelehrten Aufträgen, sowohl in Beziehung auf unsere speciellen Hauptfächer, als überhaupt auf Alles, was in den Kreis unserer Boebachtungen und Forschungen fallen dürfte, zu versehen, und diejenigen Instrumente mitzutheilen, von deren Anwendung während der Reise sich vorzüglich interessante Resultate für die Wissenschaften erwarten liessen.

Tradução

“Apesar do grande progresso no conhecimento desta parte do mundo, ela oferece, entretanto, ainda assim, um extenso campo ao espírito de pesquisa, para se ampliar, pelas descobertas, o círculo do conhecimento humano. Mais do que qualquer outra parte da América, sobressai o que é dito do Brasil, o território mais belo e mais ricamente abastado, até agora, contudo, pouco povoado e pouco conhecido – o coração deste novo continente.

Sua Majestade, o Rei da Baviera, o maior benfeitor das ciências, convencido das vantagens, que proviriam tanto para as ciências, quanto para a humanidade, em geral, a partir de um conhecimento mais preciso da América, odernou, com esta finalidade, no ano de 1815, à Academia de Ciências de Munique, que realizasse uma viagem de expedição aos confins da América do Sul, para desenvolver um relato literário.

Entre os selecionados para a viagem, escolheram-nos a ambos: o acadêmico Spix para a Zoologia, o acadêmico Martius para Botânica. Naquela ocasião, o projeto se constituía de partir de Buenos-Aires, por terra, para o Chile, de lá, em direção ao norte, seguir para Quito e, passando por Caracas ou pelo México, retornar para a Europa.

Contudo, obstáculos, que se apresentaram, obrigaram o governo real a adiar, provisoriamente, aquela expedição. Em pouco tempo, porém, renovou-se, em Sua Majestade Real da Baviera, o desejo de que se empreendesse semelhante viagem naqueles territórios, e o casamento de Sua Alteza D. Carolina Josefa Leopoldina, Arquiduquesa de Áustria, com Sua Alteza Real D. Pedro de Alcântara, príncipe herdeiro dos reinos de Portugal, Algarve e Brasil, ofereceu a mais bela ocasião para a execução do projeto real. Precisamente, quando esta aliança estava sedo fechada, pela qual a nova parte do mundo devia vincular-se com a Europa em uma afinidade mais estreita, estava Sua Majestade o Rei da Baviera presente em Viena, em sua suprema pessoa, e resolveu, em um acordo com a Corte Real, que se encontrava disposta, em permirtir que partissem nas comitivas da ilustre noiva, para o Brasil, alguns acadêmicos membros de Sua Real Academia, a fim de acompanhá-la temporariamente, com a mesma finalidade da expedição austríaca. A honrosa escolha recaiu em nós dois, e nós dois recebemos a ordem, portanto, aos dias 28 de janeiro de 1817, de viajar urgentemente para Viena e de lá para Trieste, a fim de que embarcássemos na fragata preparada, lá ancorada.

A Academia Real de Ciências recebeu ordem, simultaneamente, de nos munir de tarefas acadêmicas, não só em relação às disciplinas de nossa especialização, mas também de outras em geral, tudo o que fosse permitido indagar no circuito de nossas observações e pesquisas, e recebeu ordem de nos fornecer aqueles instrumentos, por cuja aplicação, durante a viagem, poderiam aguardar interessantes resultados para as ciências”.

A segunda fonte que apresentamos, sobre o itinerário de Carl F. P. Von Martius em 1817 no Brasil, é retirada do primeiro volume da obra Flora Brasiliensis, obra, escrita em Latim, que se constitui na íntegra de quinze volumes, com mais de dez mil páginas de textos, elaborados por uma equipe de mais de sessenta cientistas, de 1840 a 1906. O excerto que se segue foi extraído de um capítulo entitulado Vitae itineraque collectorum botanicorum, organizado, incialmente, por Carl Friedrich Philipp von Martius, tendo por sucessor August Wilhelm Eichler e, por fim, Ignatz Urban.

O texto refere-se aos lugares visitados, apresentando, sucessivamente, nomes das regiões que compreendiam o itinerário relativo entre a cidade do Rio de Janeiro e de São Paulo, logo o texto apresenta as localidades pelas quais a Missão Austro-Alemã percorreu este itinerário. Muitos topônimos indicados em 1817 ainda subsistem, e, na medida do possível, podemos localizar exatamente qual foi o caminho trilhado pela Missão, saindo do Rio de Janeiro e seguindo a São Paulo.

Itinerário 1817: Rio – São Paulo

1817. In Rio de Janeiro 15.VII. advenit. Civit. Rio de Janeiro Mons Corcovado, Fons Caryoca, Tijuca, Porto de Estrella, Piedade, Mandioca, Serra de Estrella, Corrego Seco, Belmonte, Rio Piabanha, Soumidouro et retro. Reliquerunt capitalem 8. XII., S. Cruz, Taguahy, Villa de S. João Marcos, Retiro, Serra do Mar, Faz. dos Negros, civ. São Paulo Freg. Bananal, Morro formozo, Barreira, S. Anna das Arêas, Tacasava, Silveira, Pajol, Rib. Iripariba, Lorena (Guaypacaré), Rio Parahyba, Guaratinguetá, Nossa Senhora Apparecida, As Taibas, Pindamonhangaba, Taubaté, Campo grande, Sahida do campo, Paranangaba, S. José, Villa Jacarehy, Aldea da Escada, Tarumá, Mogy das Cruces, Rio Tieté, Nossa Senhora da Penha, Cidade de S. Paulo (31. XII.).

Tradução

“Carl Friedrich Philipp von Martius chega na cidade do Rio de Janeiro a 15 de julho de 1817. No Rio de Janeiro, visitou: Monte Corcovado, Rio Carioca, Tijuca, Porto de Estrela, Piedade, Mandioca, Serra da Estrela, Córrego Seco, Belmonte, Rio Piabanha, Sumidouro e daí seguiu de volta.

Deixaram a capital no dia 8 de dezembro, passando por Santa Cruz, Itaguaí, Vila de São Marcos, Retiro, Serra do Mar, Fazenda dos Negros. Daí, dirigiram-se à cidade de São Paulo, passando por: Freguesia Bananal, Morro Formoso, Barreira, Sant'ana das Areias, Itagaçaba, Silveiras, Paiol, Ribeira Iripariba, Lorena (Guaipacaré), Rio Paraíba, Guaratinguetá, Nossa Senhora Aparecida, As Taibas, Pindamonhangaba, Taubaté, Campo Grande, Saída do Campo, Paranangaba, São José, Vila Jacareí, Aldeia da Escada, Tarumã, Mogi das Cruzes, Rio Tietê, Nossa Senhora da Penha, chegando a Cidade de São Paulo aos dias 31 do mês de dezembro de 1817”.

A terceira e última fonte que apresentamos, escrita por Carl Friedrich Philipp von Martius, constitui-se de outro excerto do primeiro volume da obra Flora Brasiliensis em que o autor explica o a obra ao leitor, apresentando uma visão geral da forma pela qual a obra será organizada. O naturalista apresenta, portanto, seus fundamentos para a organização do primeiro volume da obra, em que se analisam algumas tábuas fisionômicas, cujo o tema são os aspectos diversificados da natureza brasileira, de forma comparativa.

Florae Brasiliensis

Propositum nobis est Florae Brasiliensis divitias describentibus, non in mera ordinum generumque et specierum systematica adumbratione adquiescere, sed etiam lectori ostendere rationem, qua plantarum genera per diversas Brasiliae regiones diffusa sint atque variegata et explanare modum, quo soli tegumentum efficiant vivum ac spirans vitamque largiensque pro locorum diversitate ubique diversam.

Tradução

“Temos como propósito descrever as riquezas da flora brasileira, não só nos determos em uma mera sistemática superficial de ordens, gêneros e espécies, mas também apresentar ao leitor a razão pela qual os gêneros de plantas se difundiram, através das diversas regiões do Brasil, de forma variada, e explanar o modo pelo qual os solos produzem uma cobertura viva e que expira, e que espraia a vida diversificada em todas as partes, em favor da diversidade dos lugares”.

A intertextualidade nas fontes

Um dos fenômenos textuais que podemos analisar, linguisticamente, nos três excertos selecionados, é a intertextualidade patente nas obras de Carl Friedrich Philipp von Martius que ocorrem, sobretudo, pelo fato de suas obras diversas referencializarem-se ao mesmo fenômeno extratextual, que é a descrição da viagem empreendida pela Missão Austro-Alemã, entre 1817 e 1820. Modifica-se não só o gênero textual, se compararmos os textos, para se obter uma narrativa diversa sobre o mesmo fato, mas também são utilizadas línguas diferentes para narrar o mesmo fato, como se as Ciências no século XIX se dividissem entre aquelas de cunho nacional e as de interesse internacional. Assim, há um intertexto entre a Reise in Brasilien e a Flora Brasiliensis, entre a Literatura de Viagens, escrita em alemão, e a obra acadêmica de Botânica, escrita em latim, que versam sobre o mesmo referente extratextual: o Brasil do século XIX, sob a perspectiva do observador científico alemão.

A intertextualidade caracteriza-se no fato de que a produção e a recepção de um determinado texto depende do conhecimento prévio de outros textos, fenômeno este que caracteriza em essência a própria metodologia positiva de evolução da ciência e da pesquisa acadêmica, o que é comum também às obras de Carl Friedrich Philipp von Martius. Entretanto, percebemos que a construção de sentido tanto da Reise in Brasilien e da Flora Brasiliensis são contíguos, que há uma polifonia textual entre ambas as obras que se complementam em uma visão ontológica da realidade descrita, de forma transdisciplinar, envolvendo abordagens sociais, históricas, políticas, botânicas, literárias.

O intertexto reside no fato de que a América (Novo Mundo) e o Brasil já estavam na Europa do século XIX integrados à memória social de uma coletividade, ainda que fossem os restritos círculos das Academias e das Universidades. Prova disso é o fato de que a memória discursiva dos interlocutores é constantemente citada, em uma operação de retextualização implícita, sendo a América chamada de Novo Mundo pelo autor, por exemplo, o que se remete aos primeiros relatos sobre a América.

Já o fenômeno de détournement nos excertos apresentados não se dispõe com total evidência, apenas podemo-nos referir a este pela presença de locuções idiomáticas no latim científico empregado pelo autor em relação ao latim clássico, o que carece de uma maior abordagem a fim de se compreender culturalmente a presença da Cultura Clássica na História das Ciências no Ocidente.

Conclusão: os Estudos Pós-Coloniais e o Brasil: do final do século XVIII ao início do XIX

À guisa de conclusão, podemos citar a relação interdisciplinar das obras de Carl Friedrich Philipp von Martius com os Estudos Pós-Coloniais. Os Estudos Pós-Coloniais caracterizam-se por terem, como base, reflexões acerca do processo de independência e de descolonização das antigas colônias que se libertaram de sua antiga metrópole. No caso do Brasil, representam, em primeiro momento, a superação inicial do Mercantilismo e do “Pacto Colonial” entre o Brasil-Colônia e a metrópole Portugal. Todavia, o processo é mais complexo, na América Latina, em que os Estudos Pós-Coloniais têm como objeto de estudos, também, o período posterior às Independências, o confronto desta realidade com resquícios da antiga colonização.

Em um primeiro momento, em relação ao Brasil, assim como à América espanhola, os Estudos Pós-coloniais concentram-se, sobretudo, na comparação da época contemporânea com o período compreendido entre o final do século XVIII e o início do século XIX, momento histórico em que o status quo de civilização independente foi adquirido. Desta forma, os Estudos Pós-coloniais têm por escopo analisar o resquício da colonização em antigas colônias, assim como analisar a continuidade de um período pós-colonialista, ou neocolonial, em relação à antiga colônia ou a novos atores políticos. Temos na obra Orientalism de Edward Said o marco fundador da teoria e do debate sobre os Estudos Pós-coloniais.

Em relação ao processo histórico-cultural de independência do Brasil, os Estudos Pós-coloniais orientam-se a partir da identificação de resquícios do antigo sistema colonial na época contemporânea, como as questões indígenas, como o preconceito e a discriminação racial, por exemplo, embasada em séculos de escravidão, assim como a desigualdade social no meio rural e urbano, desenvolvida a partir do sistema latifundiário monocultor escravista e o extrativismo, que formaram a base econômica do Brasil colônia. Analisa ademais outros fenômenos que orientam as atuais políticas de afirmação e de superação deste momentum histórico a fim de que os ideais da Democracia e da República dos séculos XX e XXI sejam atingidos pelo Brasil plenamente.

Neste aspecto, convém analisarmos a interculturalidade deste processo a partir de diversas perspectivas, que culminaram com processo de Independência do Brasil, cujo ápice foi o ano de 1822. No presente artigo, analisamos as relações interculturais que se estabeleceram às vésperas da Independência, a partir de uma leitura e análise das fontes da Missão Científica Austro-Alemã, que teria percorrido o território do Brasil, entre os anos de 1817 e 1820, uma das fontes mais complexas sobre o Brasil do século XIX. Desta forma, podemos inferir que o itinerário percorrido pela Missão Autro-Alemã em 1817, constituído pelo trajeto entre o Rio de Janeiro e São Paulo, foi um dos principais caminhos para a integração regional do Brasil, e que já no “projeto” de Brasil vislumbrado pela Missão Austro-Alemã, consistia de um caminho regional estratégico. Nos anos seguintes, a Missão Austro-Alemã percorria os outros territórios que constituíam e constituem o Brasil.


 

Referências

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DONGHI, Tulio Halperin. História da América Latina. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.

FAUSTO, Bóris. História Concisa do Brasil. São Paulo: Edusp, 2006.

HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções (1789 – 1848). Tradução de Maria Tereza Lopes Teixeira e Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.

KOCH, Ingedore Grufeld Villaça. Introdução à Linguística Textual. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Flora Brasiliensis. Monachii: Apud R. Oldenbourg, 1840 – 1906, vol. 1, pars 1.

SAID, Edward W. Orientalism. London: Penguin Books, 2003.

SPIX, J. B. Von & MARTIUS, C. F. P. Von. Reise in Brasilien. München: Lindauer, 1823. Erster Theil.

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OLIVER, John E (org.). Encyclopedia of World Climatology. New York: Springer, 2005.


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Kaltner, Leonardo F. "
O Itinerário de Carl Friedrich Philipp von Martius no Brasil de 1817: análise de relatos". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 147/16 (2014:1). http://revista.brasil-europa.eu/147/Itinerario-Von-Martius-1817.html