Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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S. Vicente de Fora, Lisboa.©Arquivo A.B.E.


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Fotos: Lisboa 2012. A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 148/7 (2014:2)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3078




A Arte como objeto de conhecimento histórico
e a Renascença como criadora de uma base de visões
Ressonâncias de Herman Friedrich Grimm (1828-1901 )



Maria Augusta Alves Barbosa (1913-2013)
e o estudo de processos culturais em relações internacionais V




Este texto deve ser compreendido no conjunto de outros artigos desta edição da Revista Brasil-Europa dedicados à memória da Profa. Dra. Maria Augusta Alves Barbosa, falecida, centenária, em 2013.


Essa série de textos representa a tentativa de compreender o seu pensamento, as suas posições e trazer à consciência o seu significado para os estudos culturais, em particular para aqueles relacionados com Portugal, Brasil e Alemanha. Foi ela nada menos do que a criadora do primeiro Departamento de Ciências Musicais no âmbito universitário em Portugal, realizando assim um anelo que permanece em aberto em muitos países.

Essa série de textos representa também um ato de gratidão póstumo pelo papel que desempenhou desde 1975 nos esforços de interações internacionais que levaram à criação do I.S.M.P.S. e.V., do qual foi Presidente Honorária por Portugal. Esses textos devem ser compreendidos sobretudo à luz do escopo geral dos trabalhos divulgados na Revista Brasil-Europa do corrente ano, voltados que são à balanços e revisões de caminhos, a reconscientizações de objetivos e a análises do programa de estudos, contatos e iniciativas que teve o seu início em 1974 como exposto no primeiro número de 2014. (
Veja)


As edições do corrente ano consideram com base em materiais conservados nos acervos da A.B.E. e do I.S.M.P.S. e.V. sobretudo decorrências das décadas de 70 e 80 do século passado, caídas no esquecimento ou desconhecidas. Procuram contribuir a reaprumos, ao reconhecimento de possíveis desvios, ao evitar de repetições de projetos, iniciativas ou visões insuficientes de um desenvolvimento da história recente que já é há muito marcado por interações internacionais.



 


A consideração atenta do pensamento da pesquisadora portuguesa Maria Augusta Alves Barbosa surge como de particular significado para a leitura adequada de sua obra dedicada a um vulto português da Renascença - Vicentius Lusitanus (Veja) -, e para que se possa compreender melhor ou pelo menos a posteriori os seus pontos de vista, frequentemente tão mal-entendidos como complexos e prolixos.


Considerar o seu pensamento tem porém um significado muito mais abrangente. Leva aos primórdios de desenvolvimentos que marcaram projetos e iniciativas em relações Portugal-Alemanha-Brasil a partir de 1975 e, ainda de forma mais ampla, de estudos de processos culturais em relações internacionais em geral.


Para essa consideração atenta e diferenciada, porém, torna-se necessário procurar os fundamentos de suas concepções, as correntes nas quais o seu pensamento se inseriu. Isso é apenas possível para aqueles que com ela conviveram, dialogaram e co-participaram em conferências e iniciativas no ambiente em que se formou e no qual por décadas atuou na Alemanha, ou seja, não em Portugal no período antecedente e no posterior, este tão marcado por amarguras para Maria Augusta A. Barbosa.


A sua intensa correspondência comprova o como se sentia desentendida. Lamentava em suas cartas não encontrar maior compreensão para um pensamento especulativo mesmo na sua área como criadora do primeiro Departamento de Ciências Musicais em universidade lusófona, predominando mesmo na pesquisa universitária um pensamento marcado pela supremacia da prática, por pesquisadores-artistas ou artistas-pesquisadores, o que a levara a resignar-se. (Veja)


Essas suas amargas observações eram lidas com certa estranheza por aqueles que a conheceram no período áugeo de sua vida profissional e pessoal na Alemanha, uma vez que ali era conhecida pelo seu interesse por questões de execução e interpretação, por apresentações artísticas e musicais, e, sobretudo, pela sua amizade com um pensador e autor de difundido livro de História da Música, mas que antes partia da sua experiência prática como docente de instrumentistas e cantores, preocupado por questões de leituras de partituras: Hans Mersmann (1891-1971).


Ela própria era Professora do Conservatório Nacional de Lisboa, ou seja, possuia formação prático-musical e experiência de anos na docência de futuros executantes, tendo passado porém grande parte de sua vida a preparar-se para a introdução adequada da Pesquisa Musical como Ciência no âmbito universitário.


Considerar assim as diferenças entre a falta de maior interesse numa orientação antes especulativa da pesquisa que lamentava constatar em Portugal e a sua proximidade com o pensamento de Mersmann permite que se considere mais diferenciadamente as relações entre a música prática e a musicologia. Este foi um questionamento de fundamental importância desde o início das interações que se iniciaram na Alemanha em 1974 segundo programa preparado no Brasil e apoiado por anos pelo Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD). (Veja)


Essas relações devem ser consideradas sob prisma mais amplo do binômio teoria/prática na tradição do pensamento que compartilhava com Mersmann. Este dizia respeito em particular às artes em geral e ao pensamento historiográfico.


O intento de ver a música em vínculos e relações e inquirir imagens sonoras por detrás do visível expressa esse significado para a visão histórica em geral e para o visual e as artes visuais em particular.


Esse debate envolvia compreensivelmente historiadores da arte, sempre voltando à discussão quando musicólogos participavam de seminários no Instituto de História da Arte da Universidade ou dialogavam com o seu diretor, Prof. Dr. Hans von Ladendorf.


A concepção de história que pode abrir caminhos para a compreensão do pensamento de M. A. Alves Barbosa é aquele formulado por Mersmann e que surge, à primeira vista, de difícil compreensão.


O pensar histórico como uma manifestação recente da reflexão intelectual


Para Mersmann, singularmente, o pensar histórico seria um dos ramos mais recentes da contemplação intelectual. (Musikgeschichte in der abendländischen Kultur, Kassel, Basel, Londres: Bärenreiter, 3a. ed., s/d, 3)


Para justificar essa assertiva, lembrava que a Antiguidade teria sido "a-histórica", assim como a cultura de muitos outros povos.


Também a Idade Média, permanecendo sempre teonômica, não teria tido ainda características propriamente históricas. Se a Antiguidade, porém, devia ser colocada em parênteses numa consideração da cultura ocidental, a Idade Média, orientada teológicamente, era parte integrante dessa cultura. A tipologia medieval, que relacionava figuras e decorrências o Antigo Testamento à doutrina cristã e à sua história, indicava antes um visão de decorrências de cunho sistemático.


Somente a Renascença teria mudado essa situação. Nela, o homem, como padrão, superara a sua própria presença, criando os fundamentos de um posicionamento histórico. Para fundamentar essa visão das decorrências, ou seja da história da história, recorria às artes: as biografias de G. Vasari (1511-1574) teriam sido a primeira manifestação de uma lei de ordenação histórica. A arte, aqui, manifestaria mais uma vez ser o melhor indicativo do florescimento de povos.


Dando continuidade a essa história do pensamento histórico, Mersmann via a época ao redor de 1780 como uma das rupturas mais abruptas.O racionalismo do Iluminismo ligara-se aqui à ordenação histórica. Se a imagem da história de séculos passados havia sido marcada por crônicas e histórias de famílias, o objeto passou a ser agora o povo e a Humanidade.


O colecionar e o conservar obras teria representado desde o século XVII uma prova de consciência histórica. Os tesouros das igrejas e os gabinetes de arte dos palácios teriam sido os antecedentes dos museus. A preferência por ruinas demonstraria um novo interesse pelo passado. A viagem pela Itália de Goethe poderia ser vista como um símbolo da apropriação de épocas passadas, um movimento que começara na Renascença.


Desse processo assim exposto por Mersmann dera-se o início da História da Arte. Se Vasari vira o desenvolvimento da arte sob a imagem das idades humanas e supunha a decadência, agora a visão histórico-artística possuia outras características. Pensadores do Iluminismo construiram uma História da Arte universal dominada pela idéia do progresso. E essa idéia era combatida por Mersmann, que não via um desenvolvimento linear ou evolução na História.


A Renascença como criadora de uma base da visão histórica


A convicção de que somente a Renascença teria criado os fundamentos de uma perspectiva histórica ao homem era de fundamental significado para estudos relacionados com Portugal. Aproximando-se ou mesmo parcialmente coincidindo no tempo a grande época dos Descobrimentos ao Renascimento, o início da consideração histórico-cultural de Portugal devia ter o seu início no Novo Tempo ou Era Moderna, não em períodos anteriores.


Um desenvolvimento linear da consideração histórica, partindo da Antiguidade e passando pela Idade Média, não correspondia ao desenvolvimento da própria consciência histórica do homem, sendo inadequada para compreendê-lo no mundo em que viveu. Também a consideração dos séculos seguintes devia partir da Renascença, não de épocas anteriores, pois isso representaria projetar concepções historiográficas posteriores no passado, sobretudo aquelas relativas a um progresso em decorrências.


Esse ponto de vista co-determinou a escolha do tema da obra de vida de Maria Augusta A. Barbosa, pois dirigia o seu olhar aos fundamentos da visão histórica. Co-determinou também a organização interna do seu trabalho, o evitar de uma exposição linear dos desenvolvimentos e da vida da personalidade estudada, uma das razões que para muitos dificulta a leitura e a compreensão da obra.


Essa compreensão histórica era de significado para a consideração da expansão portuguesa do mundo e da história de muitas das regiões descobertas e colonizadas, como o Brasil. Também esses países tinham o início de sua história não em épocas remotas, mas esta referenciava-se pelo Descobrimento, este caindo na Era Moderna.


Essa discussão ao redor da recusa em ver um desenvolvimento linear da História e iniciar considerações a partir da Renascença ou da Era Moderna marcou os encontros voltados á pesquisa musical na esfera luso e brasileira em Colonia em meados dos anos setenta.


A sugestão de Maria Augusta Alves Barbosa para que que o pesquisador açoriano Armindo Borges se dedicasse a Duarte Lobo 8156?-1646),  mestre-capela da Catedral de Lisboa, e não, por exemplo, a algum tema da antiguidade lusitana ou da Idade Média, reflete esse modo de pensar comum ao de Mersmann.


Não a existência ou não de fontes ou de dados mais seguros para a pesquisa foi o principal motivo para esse direcionamento da atenção aos séculos XV, XVI e início do XVII, mas sim concepções de história na tentativa de um procedimento adequado, o da não projeção de compreensões evolutivas ou de progresso em passado que não as teriam conhecido.


Essa discussão de então, uma vez que também foi levada de forma diferenciada e crítica, teria mais tarde repercussões também nos estudos e em cursos do editor desta revista, o que se manifesta na organização e no desenvolvimento de seus trabalhos referentes aos fundamentos da cultura musical no mundo extra-europeu. Estes partiram primeiramente da consideração histórica da época da expansão e somente a posteriori voltaram para trás no sentido de estudar os seus pressupostos. Somente na publicação da obra foram essas duas partes invertidas. Dessa forma, a leitura da respectiva publicação deveria começar pelo seu segundo volume (Grundlagen christlicher Musikkultur in der aussereuropäischen Welt der Neuzeit: der Raum des früheren portugiesischen Patronatsrechts, Musices Aptatio 1986-1987, Roma 1989).


Tais questões de perspectivas históricas e de início de consideração de decorrências foram implicitamente sugeridas na escolha do tema "Fundamentos da Cultura Musical do Brasil" para o Congresso Internacional de Musicologia realizado no Rio de Janeiro pelos 500 anos do Descobrimento da América. Aqui residiu também o foco principal da conferência inaugural proferida por Maria Augusta A. Barbosa.


Também a série de vários semestres dedicada ao complexo temático da música no encontro de culturas na Universidade de Colonia e de Bonn, e que teve como objetivo contribuir para a superação do eurocentrismo e auto-limitação européia da assim-chamada Musicologia Histórica partiu não da Antiguidade, mas sim da Era Moderna, retornando apenas nos últimos semestres ao passado mais remoto.


Esse procedimento, porém, não deixava de apresentar problemas, o que já tinha sido alvo de debates no Brasil. Tinha consistuido até mesmo um dos principais focos das preocupações á época das interações entre o compositor português Jorge Peixinho e o movimento da Nova Difusão, ou seja, em anos marcados pelos movimentos renovadores e revolucionários, pelas transformações políticas no mundo colonial português e em Portugal e que exigiam revisões de enfoques nos estudos culturais. 


Tanto a valorização da época dos Descobrimentos como a do próprio conceito de Renascença tinham sido características da literatura de propaganda do sistema político que chegava ao fim e havia marcado áreas disciplinares.


Nas conferências de Colonia, iniciadas em época marcada pelo impacto da Revolução em Portugal, sentia-se a necessidade de diferenciação de enfoques, ao mesmo tempo reconhecendo-se a plausibilidade do início da consideração histórica á época da expansão portuguesa e dos Descobrimentos. Essa plausibilidade era decorrente do fato de regiões então descobertas terem marco inicial de suas respectivas histórias no respectivo momento da chegada dos europeus. Por outro lado, não se desejava dar continuidade á argumentação da propaganda nacionalista que se procurava superar.



A arte surge por último entre os objetos de conhecimento histórico


A consideração da Renascença como criadora de uma base da visão histórica, justificando assim o início dos estudos de fundamentos na Era Moderna, não basta para elucidar o pensamento e o procedimento de M. A. Alves Barbosa e as discussões que então se desenvolveram. Deve-se aqui dar atenção ao fato de que, na tradição de pensamento em que a pesquisadora portuguesa se inseria, a Renascença criara as bases de uma visão histórica, desenvolvendo-se estas e transformando-se nos séculos seguintes. Nesse processo, a arte estaria em último lugar como objeto do conhecimento histórico. (H. Mersmann, op.cit. 3)


Lembrava-se, para justificar essa assertiva, que os textos sobre arte, desde o seu início, foram marcados por um estreito relacionamento entre a contemplação estética e a histórica. A doutrina das artes vinculou-se por séculos com a História das Artes. Ainda J.J. Winckelmann (1717-1768) via a Antiguidade não historicamente, mas sobretudo esteticamente. (op.cit. 4) Foi êle, porém, aquele que dirigiu o olhar à obra de arte, lançando as bases para as inquirições e reflexões de G. E. Lessing (1729-1781) e J. G. Herder (1744-1803). A partir dele ter-se-ia levantado a imagem do mundo de J. W. von Goethe (1749-1832) e de A. von Humboldt (1769-1859), e, mais tarde, em meados do século XIX, a visão histórica global de J. C.Burckhardt (1818-1897), W. Dilthey (1833-1911) e outros.


Corrente de pensamento remontante a Hermann Grimm (1828-1901)


Os argumentos de Mersmann, correspondentes aos de Maria Augusta A. Barbosa manifestavam a sua inserção  numa tradição de pensamento da qual um de seus principais vultos foi Hermann Grimm. Entre as principais concepções que indicam essa permanência do pensamento de Grimm encontram-se aquela que só a arte estaria em condições de manifestar o grau de florescimento de povos; ela sempre foi um testemunho vital do homem, uma expressão de seu tempo.


Grimm, filho do pesquisador de tradições orais e de cultura popular Wilhelm Grimm (1786-1859) e aluno do historiador Leopold von Ranke (1795-1886), fora desde 1873 professor de Nova História da Arte na Frierich-Wilhelms-Universität Berlin. O seu nome e a sua obra permaneceram particularmente vivos nessa universidade onde Maria Augusta A. Barbosa realizou os seus primeiros estudos na Alemanha e que também marcou a vida e o pensamento de seu colega H. Mersmann.


Grimm, casado com a filha de Bettina von Armin (1785-1859), encontrava-se muito próximo do pensamento de W. von Goethe, cuja memória e obra intensamente promoveu. Foi um dos co-fundadores da Sociedade Goethe e um dos editores das obras de Goethe. Autor de muitas publicações, entre as quais sobre a vida e obra de artistas, também escreveu sobre Goethe e temas correlatos.


Essa significado de Goethe abriu perspectivas para a superação do mal-estar causado pela focalização da Renascença como ponto de partida de considerações históricas referentes ao espaço luso e brasileiro, e mesmo extra-europeu em geral, devido à atenção dada a esse período e a desenvolvimentos resultantes dos Descobrimentos na literatura de propaganda nacional do passado.


A posição da música na História e na História das Artes


A partir dessa visão das decorrências, o pensamento representado por Mersmann passava à música, em particular à questão da notação e da leitura de sentidos do grafado visualmente. (op.cit. 4-5)


Lembrava que a música por séculos não foi registrada em notações, permanecendo assim no tempo e no espaço, não anotada, em realidade sonora fluída. O docente de executantes e intérpretes em Escola Superior de Música sempre salientava que mesmo no século XVIII a maior parte das obras tinham sido escritas para uma só realização, caindo posteriormente no esquecimento, conservada ou não em arquivos.


Esse fato demonstraria que nenhuma outra arte teria gasto tanto em força criadora do homem e, ao mesmo tempo, negado tanto a história.


As reflexões de Mersmann vinham de encontro a um dos principais problemas da pesquisa musical no espaço luso e brasileiro: o da falta de fontes anotadas, de perda ou destruição de partituras no passado. Muito se discutiu, nas conferências, se essa situação seria apenas devida à incúria de herdeiros e instituições, ou se deveria ser analisada como expressão de uma outra consciência histórica ou da prática mencionada de criar-se obras para uma só execução.


Lembrou-se que, contradizendo aparentemente essa prática, manuscritos do passado brasileiro apresentam traços de uso frequente, tornando-se até mesmo tradicionais no contexto respectivo. Essa contradição poderia talvez ser explicada pelo fato de não haver condições para a produção contínua de obras para uma só execução em meios mais modestos, não mantidos pela Côrte, pela nobreza ou pelo clero de posses, levando a seu repetido uso. Haveria aqui um fator a ser considerado nas relações entre tradição e inovação, tão discutidas no Brasil e que era um dos aspectos a serem considerados no programa de interações internacionais iniciado na Europa em 1974.


A questão dos limites ditados pelo material


Essas preocupações relacionavam-se com um outro tipo de questões também levantadas por Mersmann, segundo o qual todo o tipo de consideração histórica se defronta com os limites ditados pelo material, no caso, os sons nas suas relações com o visual. (op.cit. 7-8)


Quanto maior se torna a distância histórica, tanto menor seriam os indícios sintomáticos de desenvolvimentos que podem servir de apoio para a pesquisa. Apenas aparentemente o observador se encontra em terreno firme no espaço da cultura ocidental. Na história de todas as artes existiriam por longos períodos de tempo grandes vazios, o que dificulta ou mesmo impossibilita diagnoses.


A discrepância entre material e a visão histórica parecia não ser em nenhum outro caso tão grave como na linguagem dos sons, pela sua substância tão passageira. Como antigo pesquisador de cantos populares, familiarizado com a problemática da Pesquisa de Canções e da Volkskunde, Mersmann lembrava que se sabia de expressões de musicantes populares não-escritas ao redor de 1000, mas só 500 anos mais tarde, tendo os alaudistas fixado as suas danças em tabulaturas, é que datam fontes que o pesquisador hoje possui. Não se poderia avaliar, naturalmente, se esses testemunhos correspondem ao quadro geral de uma época tão anterior.


Não apenas a música popular, mas toda a esfera da música profana encontrava-se fora do campo de visão da história medieval. Quanto à música religiosa, procurar-se-ia reconstruir o passado a partir de poucos relitos ou traços indiretos, um intento difícil e que nem sempre tinha sucesso. A descoberta circunstancial do cânone de verão do século XIII, escrito por um monge inglês, mostrara que o cânone como princípio de estruturação musical já era há muito existente antes de  poder ser reconhecido pela primeira vez em missas de compositores dos Países Baixos. (loc.cit.)


O pesquisador, assim, apoiava-se na sua procura de conhecimento de fases remotas em poucas fontes. Perguntava-se sempre o que haveria fora do tão restrito centro das atenções e estaria sempre em dúvida se um documento traz à luz um aspecto essencial ou se representaria apenas um pequeno fragmento da música que então se praticava.


Outros limites surgiam para a música da relação entre a imagem anotada e a imagem sonora.


Também aqui Mersmann não via paralelos entre a música e as outras artes. Apenas para uma pequena parcela do século XIX passou a imagem sonora a ser idêntica à imagem anotada. Lembrava que ainda em meados do século XVIII as notações tinham representado antes esboços. Não as regras dos teóricos, mas descobertas circunstanciais mostrariam como a notação assim reduzida apenas se completava através da sua realização sonora real.


Mersmann salientava que aqui não se tratava apenas de questões superficiais ou da percepção de obras na sua aparência, mas também de conteúdos. Não se saberia, por exemplo no caso da música medieval, até que ponto era cantada ou tocada em instrumentos, sem falar em quais instrumentos. Procurou-se orientação em pinturas e plásticas da época, sem poder-se ganhar bases mais seguras.


Por isso, entre a imagem anotada e a imagem sonora impunha-se a elaboração, vista criticamente pelo cientista, mas que o músico e o amador necessitava.  Aqui falava Mersmann como músico prático e docente de uma Escola Superior de Música, onde sentia a necessidade de revisões de obras do passado para o uso de estudantes. Salientava que a consciência para qualidade e estilo da elaboração de música mais antiga apenas teria surgido em época relativamente tardia. Não se tratava apenas da música da Idade Média. A história das edições de Bach mostravam os riscos que a obra de arte corria em todas as épocas. A publicação do texto original de um prelúdio de Bach representava uma retomada de situações na História da Música na qual o intérprete tinha a total responsabilidade para uma própria configuração sonoroa. (op.cit. 8)


Também aqui porém haveria limites, e esses residiam na Musicologia. Como disciplina mais recente das Ciências Humanas de natureza histórica, ela não teria para Mersmann ainda investigado suficientemente o seu material, ao contrário da História da Arte. Sempre havia a possibilidade de novos achados, sempre constatavam-se incongruências entre métodos e interpretações. Se o historiador da arte podia conformar-se com uma visão científica, a imagem sonora viva da música exigia sempre a penetração de uma esfera na qual o conhecimento científico se fundia com a configuração musical viva. (loc.cit.)


Esta perspectiva do músico-pesquisador - que era primeiramente prático e a em segundo lugar pesquisador - diferenciava-se de forma sensível daquela dos pesquisadores luso e brasileiros que possuiam formação prático-musical mas eram em primeiro lugar voltados ao conhecimento científico. Reconhecendo a importância da imagem sonora por detrás da imagem visual do anotado, anteviam os problemas resultantes de posições orientadas pela praxis.


Como discutido e experimentado no Brasil, execuções que procuravam considerar a imagem sonora, tentando reconstruí-la através de conhecimentos obtidos da pesquisa empírica de tradições, levavam a resultados que não podiam corresponder a padrões atuais de apreciação musical e, assim, a exeucuções aptas a serem gravadas, levantando, assim outros problemas quanto à apreciação. Essa discussão do relacionamento entre a pesquisa histórica e a empírica na execução musical, que não podia ser mais simplesmente a da Prática da Execução Histórica convencional segundo os moldes europeus, vinculou-se àquela das relações entre teoria e prática e de concepções da história, sendo retomada em diferentes ocasiões nas décadas seguintes.


As artes e a idéia de uma transformabilidade em problemas sociológicos


Uma das principais características do pensamento que Maria Augusta A. Barbosa compartilhou com o seu mentor Hans Mersmann foi a da transformabilidade do enfoque da imagem que o homem tem da História. As visões modificam-se no decorrer do tempo. esse condicionamento também vale, e de forma especial para os problemas sociológicos. Esses problemas resultavam necessariamente das reordenações sociais dos séculos XIX e XX. A Sociologia ganharia os seus critérios da ordem social; uma Sociologia prática surgia como interação em outros sistemas referenciais, também na História da Música. (H. Mersmann, op.cit. 6-7)


Os quadros pastorais dos pintores franceses do século XVIII inseriam-se no seu meio como as áreas pastorais e as danças bucólicas da música da época. Também a História das Artes conhecia essa entrada da Sociologia, que penetrava profundamente na estrutura da obra. Alguns quadros de L. Cranach júnior (1515-1586) ou de outros pintures da época podiam ser compreendidos na sua dicção amena apenas a partir da relação do pintor de retratos de Côrte relativamente a seu objeto. Esse fato tornar-se-ia reconhecível no seu significado quando se considerasse a força com que pintores como Rembrandt (1606-1669) ou F. de Goya (1746-1828)confrontaram-se com as convenções de sua época. (op.cit. 7)


Uma atenção particular merecem as considerações relativas á investigação das ordens sociais do espaço histórico-musical no pensamento de Mersmann e de Maria Augusta A. Barbosa e que foram vistas sobretudo nos seus condicionamentos temporais. Aqui entendiam em primeiro lugar questões relacionadas com transformações sociais a serem consideradas quando se estuda a cultura conventual, cortês ou burguesa na música da Idade Média ou da passagem da aristocracia à burguesia como portadora de formas de fazer música no século XVIII. Um segundo caso diz respeito ao questionamento sociológico da obra de arte em si, para constatar-se as condições sociais sob as quais a música foi criada, executada e ouvida.


A projeção de problemas sociológicos penetraria segundo os pesquisadores a fundo na estrutura da obra de arte. Ela levaria p. e. à diferenciação de uma ópera escrita para a corte de Bayreuth e para uma feira de Hamburgo, que, surgidas numa mesma época, apresentavam profundos contrastes que não seriam reconhecíveis a partir de um questionamento exclusivamente musical. Na ópera de Corte encontram-se aberturas solenes, uma matéria mitológica representativa e um Ballett final dançado por membros da sociedade da Corte; na Opera popular mais leve encontram-se canções e divertimentos cômicos.


Tudo isso dizia respeito ainda ao material, mas as suas consequências alcançariam a fundo a própria linguagem da música. Também a música instrumental reagia como um seismógrafo às instabilidades do tempo no qual surgiu e soou.






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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (ed.)."A Arte como objeto de conhecimento histórico e a Renascença como criadora de uma base de visões. Ressonâncias de Herman Friedrich Grimm (1828-1901 ) ".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 148/7 (2014:2). http://revista.brasil-europa.eu/148/Arte-e-Historia.html