Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Marrocos.Foto 2006. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.



Marrocos.Foto 2006. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.



Marrocos.Foto 2006. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.



Marrocos.Foto 2006. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.



Marrocos.Foto 2006. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.



Marrocos.Foto 2006. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.



Marrocos.Foto 2006. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.


Marrocos (Marrakesh),
Fotos 2006. A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 148/14 (2014:2)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3085




Focalizando a Diocese norte-africana de Ceuta I e a cidade de Olivença II


A conquista de Ceuta e a análise de visões e imagens
brancos e negros, galos e mouros, Cristãos X Mouros

Maria Augusta Alves Barbosa (1913-2013)
e o estudo de processos culturais em relações internacionais XII










Este texto deve ser compreendido no conjunto de outros artigos desta edição da Revista Brasil-Europa dedicados à memória da Profa. Dra. Maria Augusta Alves Barbosa, falecida, centenária, em 2013.


Essa série de textos representa a tentativa de compreender o seu pensamento, as suas posições e trazer à consciência o seu significado para os estudos culturais, em particular para aqueles relacionados com Portugal, Brasil e Alemanha. Foi ela nada menos do que a criadora do primeiro Departamento de Ciências Musicais no âmbito universitário em Portugal, realizando assim um anelo que permanece em aberto em muitos países.

Essa série de textos representa também um ato de gratidão póstumo pelo papel que desempenhou desde 1975 nos esforços de interações internacionais que levaram à criação do I.S.M.P.S. e.V., do qual foi Presidente Honorária por Portugal. Esses textos devem ser compreendidos sobretudo à luz do escopo geral dos trabalhos divulgados na Revista Brasil-Europa do corrente ano, voltados que são à balanços e revisões de caminhos, a reconscientizações de objetivos e a análises do programa de estudos, contatos e iniciativas que teve o seu início em 1974 como exposto no primeiro número de 2014. (
Veja)


As edições do corrente ano consideram com base em materiais conservados nos acervos da A.B.E. e do I.S.M.P.S. e.V. sobretudo decorrências das décadas de 70 e 80 do século passado, caídas no esquecimento ou desconhecidas. Procuram contribuir a reaprumos, ao reconhecimento de possíveis desvios, ao evitar de repetições de projetos, iniciativas ou visões insuficientes de um desenvolvimento da história recente que já é há muito marcado por interações internacionais.



 
Marrocos.Foto 2006. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.
Nos encontros dedicados a questões relativas à cultura, à Educação Artística e à pesquisa musical no espaço cultural luso e brasileiro que tiveram lugar na Universidade de Colonia, a partir de 1975, constatou-se os importantes subsídios que ofereciam os estudos da pesquisadora portuguesa Maria Augusta Alves Barbosa que, há muito na Alemanha, preparava publicação de sua tese de doutoramento. (Veja)


Esses seus estudos, focalizando o Norte da África, em particular a Diocese de Ceuta nas suas relações com localidades continentais em regiões fronteiriças entre Portugal e Espanha, com outros países europeus e sobretudo com Roma, não podia deixar mencionar o processo de expansão portuguesa que teve o seu principal marco na conquista de Ceuta pelo rei D. João I° em 1415. 


Esses estudos serviram à consideração de contextos para a melhor compreensão do personagem central da sua tese, sendo tratados antes em notas e anexos. Como mencionado também em outros textos desta edição, esses anexos atingem dimensões que ultrapassam de muito essa função documental e complementar, constituindo em si estudos que permitem uma outra leitura da obra do que aquela sugerida pelo título. Contribuem, assim, a que obra ultrapasse um significado limitado aos estudos históricos convencionalmente restritos à Europa nas suas fronteiras continentais e à época tratada em contextos europeus, uma vez que ultrapassam esses limites. (Veaj )


Marrocos.Foto 2006. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.
A própria pesquisadora não quis entrar na sua obra em considerações sôbre as causas que explicariam a agressão portuguesa da conquista, referindo-se também antes de passagem ao confronto com a esfera islâmica do Norte da África, que faziam com que as localidades conquistadas permanecessem cercadas pelos "inimigos da fé".


O pensamento e o procedimento de Maria Augusta A. Barbosa, correspondente também àquele do seu colega e amigo Hans Mersmann (1891-1971), caracterizavam-se por emprestar um particular significado ao posicionamento do pesquisador, uma vez que a sua visão determinava o enfoque da imagem histórica que ganhava através do estudo de contextos, no caso, da música em elos e relações.


O posicionamento de Maria Augusta A. Barbosa revelava-se com evidência no pêso que dava à "questão de Olivença" na situação de tensões relacionadas com a integração dessa cidade na Espanha e as requisições de Portugal.


Essa visão da imagem ganha através de análises contextuais, explicável pelo seu sistema referencial português, não podia ser a dos alemães envolvidos confrontados com a problemática e correspondia apenas em parte àquela brasileira. Estes precisavam esforçar-se para colocar-se na posição de Maria Augusta A. Barbosa para compreender a sua visão da imagem histórica criada a partir de análises contextuais.


Esse esforço de compreensão empática no diálogo teve como resultado trazer à consciência a necessidade de uma maior diferenciação das concepções relacionadas com a visão da imagem histórica, pois incluia nas reflexões a instância daquele que procurava colocar-se à distância do que visualizava e de seus próprios posicionamentos.


Ceuta na Antiguidade - interações de imagens do homem e regiões


A presença e a contribuição de renomados especialistas da Antiguidade e da Idade Média, em particular Heinrich Hüschen, trouxe à consciência o significado de Ceuta (Seupta) na Antiguidade. 


Edificada pelos romanos às margens do mar às "Colunas de Hércules", teve o seu antigo significado fundamentado no fato de ser cidade das mais importantes da Mauritânea, ou seja, cidade por excelência dos mouros. Situava-se na parte mais ocidental da região do Norte da África, nos fins da Mauritania (hoje território de Marrocos), às margens do "Estreito Gaditano", limitando-se com o Oceano Atlântico no Ocidente.


O referencial, portanto era outro, o posicionamento do observador em Roma - ou na Grécia e Ásia Menor - levava-o a ver nessa parte da Mauritania uma extrema região do Ocidente, com todas as suas negativas conotações. 


Essa sistema referencial da Antiguidade ter-se-ia mantido no edifício cultural, subjacente a expressões e reinterpretado segundo a história cristã e seria então aquele que determinara a visão dos portugueses que realizaram o ato de conquista de Ceuta, abrindo a época da expansão. Essa visão não partiria assim primordialmente de motivos materiais da atualidade portuguesa da época, mas sim estariam fundamentadas em imagens transmitidas culturalmente.


Como especialista em St. Isidoro de Sevilha (560-636) e de suas Etymologiarum sive originum libri XX, Heinrich Hüschen chamou a atenção às considerações relativa à antiga Mauritânea e aos mouros nessa obra.


Esse termo era, desde a Antiguidade, relacionado com a cor de pele de seus habitantes, que teriam sido denominados segundo o termo grego designativo do negro, mauron. Como a exposição de Isidoro de Sevilha demonstra, via-se na Mauretânea um contraste com a Gália, uma vez que esta devia a sua denominação à cor branca de seus habitantes.


Essa tradição explicativa de cunho etimológico sugere a existência já antiga de uma tensão baseada na cor da pele de habitantes de diferentes zonas do mundo então conhecido e que determinava ou refletia concepções de uma Etnologia e Antropogeografia simbólica.


Como então o editor desta revista com base nos estudos das tradições brasileiras lembrou, a consideração da oposição sugerida pelo contraste entre branco e negro da elucidação de Isidoro de Sevilha pode abrir novas perspectivas para a compreensão de fundamentos culturais das lutas entre cristãos e mouros que tanto marcaram a história da Idade Média e que continuaram a ser representadas em tradições através dos séculos. Essa tradição  relacionava explicitamente os brancos com os galos, cujo papel no edifício simbólico-cultural passaria então a ser assumido pelos francos, compreendendo-se aqui o papel desempenhado pelo Imperador Carlos Magno (747/8-814). Por outro lado, de forma hoje sentida como questionável, ter-se-ia uma identificação de brancos com cristãos.


A exposição de S. Isidoro permite ainda reconhecer outras conotações da linguagem de imagens. Assim, tratando da Mauritania Tingitania, denominada segundo a cidade de Tingi (Tânger), capital daquele que era o último da África, tendo ao norte o estreito gaditano, ao oeste o oceano atlântico e ao sul os povos dos gaulados, nômades que chegavam até o oceano Hespérico, diz que essa região era fecunda em feras, macacos, serpentes e avestruzes. Tinha tido no passado elefantes, que à época de Isidoro eram conhecidos apenas da Índia. (San Isidoro de Sevilla Etimologías II (XI--XX), ed. J. O. Reta e M. A. M. Casquero, 2a. ed., Madrid 1994, XIV10; 11; 12)


Essas palavras sugerem que a região e seus habitantes levantavam associações com a vida animal, o que corresponderia também às associações do homem carnal da tradição cristã com o negro da concepção tripartida do homem: o do baixo, o dos altos e aquele intermediário, que se movimenta entre o baixo e o alto. (Veja)


A exposição de S. Isidoro reflete uma situação criada com a divisão da Mauritania Cesariense por Diocleciano (244-313), uma vez que fala da Mauritania Sitifense, como a primeira, a mais oriental. Esta, juntamente com a restante Mauritania Cesariense integraram a diocese da África, sendo que a Tingitana passou a integrar a diocese da Espanha.


Se a localidade de Seupta já tinha tido um remoto passado cristão sob os godos, foi conquistada pelos muçulmanos, a êles se submetendo, de modo que o ato português podia ser compreendido em termos de uma Reconquista por diversas razões. Com base na antiga tradição, poder-se-ia analiser o ato de conquista dos portugueses como prosseguimento de um processo mais amplo, desempenhando um papel dos brancos ou dos galos do edifício de imagens.




A imagem de Ceuta na Idade Média: riqueza e foco de riscos


Na Idade Média, Ceuta transformara-se em importante posto comercial, de artesanato e produção, chave de transações entre a África e a Europa, ali sendo comercializados produtos vários, sobretudo ouro e especiarias vindas de várias regiões do Oriente, assim como objetos manufaturados. Como os europeus não podiam penetrar no mundo islâmico e os muçulmanos em terras da Cristandade, os intermediários teriam sido comerciantes judeus.


Para além do perigo que representava a curta extensão do Estreito para uma entrada dos muçulmanos na Europa, dos arredores de Ceuta saíam incursões de ladrões e contrabandistas a localidades da costa continental de Portugal e Espanha,




Maria Augusta A. Barbosa, em nota, reproduz uma descrição que, ainda que muito posterior à conquista da cidade. traz à consciência a sua extraordinária importância: a Historia de la Ciudad de Ceuta de D. Jeronimo de Mascarenhas, de 1648, (Ed. Afonso Dornelas, I. Série: Textos Históricos, Lisboa, 1918, 95-96).


Esse autor salienta que o fato dos muçulmanos dominarem o estreito, tornando tributárias as naves das diferentes nações que por ali passavam, haviam trazido grandes danos para o comércio dos portos espanhóis. Como a pesquisadora observava, D. Jeronimo de Mascarenhas revelava na sua exposição o seu posicionamento do lado espanhol.


Estando defronte ao reino de Granada, de Ceuta provinham reforços e auxílios aos mouros no continente. Era, assim, designada como "chave da Cristandade" e terror da Espanha.


Baseando-se em afirmação de Juan de Leon, lembra que fora a mais formosa cidade e a mais populosa da Mauritânia, pelos seus edifícios, templos e colégios, onde se ensinavam várias ciências e disciplinas, assim como pelos profissionais que lavravam obras em ouro, prata, seda e lã, levadas a todas as regiões do mundo. Seus arredores eram frescos e aprazíveis, cultivados em várias quintas, com pomares e vinhedos dos quais ganhavam as passas que serviam de vinho, de uso proibido pela religião. Era, pela sua localização, o mais frequentado porto da África e Europa, concorriam as nações com todo gênero de aromas, drogas e mercadorias de vários lugares da África e da Alexandria vindos da India e de outras partes orientais, assim como da Itália, França e Espanha. Assim teriam sido grandes os bens ganhos pelos portugueses com a conquista, sendo imortal a sua glória. (op.cit., 54)


Transformação da mesquita de Ceuta em igreja de Nossa Sra. da Assunção


Para além de todas as razões econômicas e estratégicas, a justificativa última do ato bélico fora, segundo o quadro assim descrito, de natureza religiosa, da política de nações cristãs e eclesiásticas no contexto mais amplo europeu.


Esse fato é demonstrado pela importância dada à transformação da mesquita local em igreja logo após a conquista, sendo dedicada a Nossa Senhora da Assunção. Também citando D. J. Jeronimo de Mascarenhas, que oferece uma imagem brilhante da cerimônia e das festividades, traz á consciência indiretamente o extraordinário significado religioso visto pelos cristãos na tomada de Ceuta.


Segundo o seu texto, citado por Maria Augusta A. Barbosa, na Sexta-Feira após a vitória, a 23 de Agosto, o rei ordenou que, no domingo o capelão-mor tivesse disposta a mesquita grande para que se ouvisse a missa e o sermão. Todos os capelães e muitos clérigos do exército, em grande número, a reconsagraram com grande magestade e riqueza de ornamentos. O ato de bendição foi encerrado com o hino Te Deum Laudamus, "con sonoro estrepito", acompanhado com o fragor de mais de 200 trombetas do exército e grande número de chirimias, tambores e outros instrumentos militares. Também não faltaram sinos, tendo os cristãos ali encontrados dois deles roubados pelos mouros anos antes da cidade de Lagos no Algarves. (op.cit., 55, nota 4)


Essa citação em nota na obra de Maria Augusta A. Barbosa mereceu considerações mais diferenciadas a partir de conhecimentos desenvolvidos na pesquisa de tradições culturais no Brasil pelo editor desta revista, um assunto que voltou a ser frequentemente considerado sob diversas perspectivas nos anos que se seguiram.


A dedicação da antiga mesquita a igreja à Nossa Senhora da Assunção, pouco dias após a conquista ocorrida a 21 de agosto, as festas do domingo de 25 de agosto, trazem de imediato á consciência dos estreitos elos religiosos do empreendimentos com o grande período festivo constituído pela festa da Ascensão de Nossa Senhora do 15 de agosto, uma das mais importantes festas de Portugal, sobretudo de regiões litorâneas.


O espírito e o significado da festa, as suas imagens e expressões festivas podem contribuir para que se compreenda o extraordinário papel desempenhado pela música militar no empreendimento, a participação de tão grande número de instrumentos de metal e tambores, o que teria exigido grandes preparativos e dispêndios.


Tudo indica assim, que houve um programa fundamentado em concepções marianas e na tradição religiosa. Apesar de ser dirigido ao Sul a partir de Portugal, culturalmente teria significado um movimento aos altos. A ação de transpassagem do mar do Estreito e a posse de Ceuta corresponderia nessa visão à subida dos mares às alturas, um movimento de lutas ao ápice. Esse caminho aos altos seria, então atribuído à ação do Espírito Santo; no ano natural, corresponderia à parte ascensional cuja principal festa tinha sido Pentecostes e que alcançava o seu ponto alto à época em se deu a conquista de Ceuta.


Considerar essas dimensões culturais do empreendimento faz compreensível a aparente contradição de ter sido esse ato de violência praticado por D. João I°, que como Maria Augusta A. Barbosa salientou no seu trabalho e já acima mencionado, foi um dos mais cultos reis da História de Portugal, tendo-se dedicado à poesia após a conquista, sendo autor de um Livro de Montaria, uma das principais obras da literatura portuguesa do século XV. (op. cit., 55, nota 3)


Em outros documentos levantados e considerados, a pesquisadora demonstrou o significado eclesiástico global da reconsagração da mesquita em igreja dedicada a Maria para sé catedral da nova Diocese (op.cit. 55-57, notas 5, 6, 7). Dos termos desses documentos, que tratam indiferentemente de transformação de mesquita ou sinagoga, poder-se-ia concluir que a imagem básica dessa metamorfose residiria naquela da tensão Sinagoga/Igreja, ou seja, justificava-se o ato pelas graças que trariam aos muçulmanos e judeus que, convertidos, se integrassem na Ecclesia.


Estudos culturais e desenvolvimentos no Catolicismo alemão dos anos 70


Os diálogos de meados dos anos setenta foram marcados por interações entre os conhecimentos obtidos pelo amplo estudo histórico de fontes de Maria Augusta A. Barbosa e aqueles trazidos do Brasil da pesquisa de expressões tradicionais de lutas e combates de cristãos e mouros e similares, nas suas múltiplas versões.


As atenções foram dirigidas à procura de um ponto de observação distanciado na consideração da visão de imagem histórica criada a partir da análise de elos e relações e que levou à análise de antiga visão que se encontraria subjacente àquela dos portugueses que conquistaram Ceuta. Tratava-se, por último, de dar continuidade às reflexões iniciadas no Brasil e que procuravam uma renovação de perspectivas através de um direcionamento das atenções a processos.


Esse caminho promissor das reflexões foi porém perturbado por desenvolvimentos e iniciativas que atingiram mais diretamente as discussões concentradas em Colonia e que eram resultado do significado e da potência do Catolicismo nessa cidade alemã e nas suas instituições.


Paradoxalmente, e inicialmente de forma não percebida, os esforços de análise do edifício cultural de fundamentação religiosa nas suas relações com decorrências históricas não vinham de encontro a intentos daqueles preocupados com a perda do patrimônio cultural e sobretudo sacro-musical em consequência do Concílio Vaticano II.


O caminho que se abriu para a harmonização de intentos aparentemente contraditórios, o da conservação e promoção do herdado e a obediência às prescrições conciliares foi a do direcionamento dos intuitos renovadores a questões pertinentes ao mundo extra-europeu.


Em visão retrospectiva, esses intuitos e iniciativas da segunda metade da década de 70 revelam-se como expressões de uma política cultural de personalidades da hierarquia e do pensamento do Catolicismo conservador refletida e que teve a sua expressão máxima no Congresso Internacional de Música Sacra realizado em Bonn e Colonia no ano do centenário do completamento de sua catedral em 1980. (Veja ).


Essa política, que dirigia as atenções renovadoras do Concílio antes ao mundo extra-europeu, distanciando-as da Europa preocupada com o seu patrimônio, não poderia deixar de ser efetivada sem uma fundamentação científica que apenas a Etnologia - e no caso da música a Etnomusicologia - podia oferecer. A cooperação de representantes dessa área disciplinar apenas pode ser compreendida devido aos problemas resultantes da mistura de critérios metodológicos, de determinação de objetos de estudos da divisão da Musicologia no seu todo, e de concepções que nelas separavam o europeu do extra-europeu.


Confrontava-se, assim, na Alemanha, de forma muito mais intensa do que no Brasil, com o mesmo problema já há muito constatado no Brasil e que exigia a revisão de orientações disciplinares preconizando antes uma orientação a processos. Na Alemanha, porém, devido ao poder e à influência da Igreja no Estado e nas instituições - insuspeitada em geral no mundo latino - esses problemas adquiriram uma dimensão político-universitária uma vez que fatores confessionais eram levados em consideração na proporção de católicos ou protestantes em cátedra e posições de relêvo nas universidades.


Não apenas problemas próprios da própria divisão disciplinar, daqueles decorrentes do desconhecimento de expressões tradicionais ibéricas, do próprio folclore mais antigo de regiões católicas da Alemanha e da literatura em português e em espanhol, mas sim também interesses de política universitária levaram a que etnomusicológos se fechassem ou se recusassem a reconhecer os estreitos elos de imagens e sentidos de expressões introduzidas em passado já remoto em regiões colonizadas e missionadas com processos de expansão do Ocidente cristão medieval.


Por todos os meios voltados a defender a separação entre o europeu e o extra-europeu, viam nas expressões tradicionais vivas na América Latina, em particular aqui também no Brasil, transplantações da África, instrumentalizadas por missionários através da integração no calendário católico de mascaradas, baseando-se aqui, em lugar de análises mais aprofundadas, sobretudo numa suposta evidência da cor de pele de seus protagonistas, um critério que se supunha há muito superado e que agora experimentava uma reedição sob novos argumentos.


Essa problemática, que em crescente intensidade e em discussões conflitantes levava a tensões com etnomusicológos que posteriormente assumiriam posições de particular influência, foi tratada em intensa correspondência com pesquisadores no Brasil, em particular com Rossini Tavares de Lima, presidente da Associação Brasileira de Folclore, sendo as cartas discutidas com Maria Augusta A. Barbosa e outros participantes das reflexões.


Rossini Tavares de Lima mostrava-se preocupação pelo retrocesso em profundidade analítica de expressões tradicionais, comentando em cartas a estadia e as atividades de um pesquisador que tornou-se conhecido pelo fato de interpretar expressões conhecidas e estudadas de representações de combates, coroações e reinados do passado europeu, em particular também daquelas reconhecidas como atualizações contextualizadas da luta entre cristãos e mouros como extensões culturais africanas.


A constatação desses êrros interpretativos, que representavam um retrocesso nos conhecimentos, assim como uma questionável instrumentalização da área disciplinar da Etnomusicologia a serviço de preocupações religioso-culturais do período pós-conciliar levou a que brasileiros presentes no Congresso Internacional de Música Sacra em Bonn, em 1980, propusessem a realização de um Simpósio Internacional dedicado ao tema Música Sacra e Cultura Brasileira.


Este devia possibilitar aos europeus presenciar diferentes expressões culturais tradicionais e obras sacro-musicais das diferentes épocas na sua respectiva contextualização histórico-cultural, trazendo á consciência os processos históricos em que se inscreveram. Para a preparação das discussões no Brasil, solicitou-se a pesquisadores de expressões relacionadas com o tema a especialistas brasileiras, tratadas sob o conceito condutor de Recepção cultural.


Já para o primeiro dia dos trabalhos programou-se em extraordinária conjunção de forças uma jornada a uma cidade marcada por passado colonial, onde expressões tradicionais mantidas vidas de representações de lutas e de coroações se relacionavam com a ereção do Império do Espírito Santo e tradições conhecidas dos Açores, demonstrando o significado de concepções e imagens relacionadas com a Terceira Pessoa da Trindade no conjunto das manifestações.


A programação tinha assim fundamentalmente um sentido esclarecedor e de correção dos êrros interpretativos, partindo-se ainda da suposição que o poder dos argumentos e da evidência da observação empírica pudessem levar ao reconhecimento dos problemas que se colocavam com insustentáveis posições e interpretações.


Em encontro prévio realizado em Lisboa, discutiu-se a programação e os meios a serem empregados nessa oportunidade única no sentido de divulgação e efetivação dos resultados das reflexões das conferências de anos anteriores de Colonia e que tinham sido marcadas por intensas cooperações.


Em visão extraordinariamente realista da situação, Maria Augusta A. Barbosa negou-se a ir ao Brasil e participar do evento, prevendo que não haveria mudanças de posicionamentos, uma vez que interesses outros estavam em jogo, sendo estes antes de natureza político-cultural e político-universitária.


O evento realizado no Brasil deverá ser considerado em pormenores em outra edição desta revista.




Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.). "Focalizando a Diocese norte-africana de Ceuta I e a cidade de Olivença II. A conquista de Ceuta e a análise de visões e imagens: brancos e negros, galos e mouros, Cristãos X Mouros ".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 148/14 (2014:2). http://revista.brasil-europa.eu/148/Conquista-de-Ceuta.html