Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Stuttgart. Foto 1975. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.


Stuttgart. Foto 1975. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.


Stuttgart. Foto 1975. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.


Stuttgart. Foto 1975. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.


Stuttgart. Foto 1975. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.


Fotos: Stuttgart 1975. A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 148/12 (2014:2)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3083




O português Vincente ou o "Vincente Lusitano" na esfera da Reformação na Europa Central
estudos contextualizadores e empatia em situações transversas
Recordando uma viagem a Stuttgart em 1975




Maria Augusta Alves Barbosa (1913-2013)
e o estudo de processos culturais em relações internacionais X





Este texto deve ser compreendido no conjunto de outros artigos desta edição da Revista Brasil-Europa dedicados à memória da Profa. Dra. Maria Augusta Alves Barbosa, falecida, centenária, em 2013.


Essa série de textos representa a tentativa de compreender o seu pensamento, as suas posições e trazer à consciência o seu significado para os estudos culturais, em particular para aqueles relacionados com Portugal, Brasil e Alemanha. Foi ela nada menos do que a criadora do primeiro Departamento de Ciências Musicais no âmbito universitário em Portugal, realizando assim um anelo que permanece em aberto em muitos países.

Essa série de textos representa também um ato de gratidão póstumo pelo papel que desempenhou desde 1975 nos esforços de interações internacionais que levaram à criação do I.S.M.P.S. e.V., do qual foi Presidente Honorária por Portugal. Esses textos devem ser compreendidos sobretudo à luz do escopo geral dos trabalhos divulgados na Revista Brasil-Europa do corrente ano, voltados que são à balanços e revisões de caminhios, a reconscientizações de objetivos e a análises do programa de estudos, contatos e iniciativas que teve o seu início em 1974 como exposto no primeiro número de 2014. (
Veja)


As edições do corrente ano consideram com base em materiais conservados nos acervos da A.B.E. e do I.S.M.P.S. e.V. sobretudo decorrências das décadas de 70 e 80 do século passado, caídas no esquecimento ou desconhecidas. Procuram contribuir a reaprumos, ao reconhecimento de possíveis desvios, ao evitar de repetições de projetos, iniciativas ou visões insuficientes de um desenvolvimento da história recente que já é há muito marcado por interações internacionais.



 

Como tratado sob diversos aspectos em outros textos desta edição da Revista Brasil-Europa, a obra de Maria Augusta Alves Barbosa "Vincentivs Lvsitanvs: um compositor e teórico-musical português do século XVI "(Lisboa: Secretaria de Estado da Cultura: Direcção-Geral do Património Cultural, 1977 ) possui um significado de especial relevância para os estudos de processos culturais.


Esse significado não foi em geral suficientemente reconhecido, em parte devido aos problemas oferecidos pelo idioma, em parte pelo fato do seu título sugerir uma obra de interesse biográfico e histórico-musical no sentido convencional do termo, em parte pela complexidade de sua organização interna, que exige a leitura de longos anexos em diferentes línguas, notas e observações.


Um dos aspectos que justificam esse significado resulta do fato de ter a autora dirigido a sua atenção a um músico português que surge como singular pela sua origem, cor de pele, ascensão social e sobretudo pela sua conversão ao Protestantismo, o que explica os seus elos com regiões européias marcadas pela Reformação.


As relações entre Portugal e outros países europeus, entre êles a França, os Países Baixos e a Itália já tinham sido consideradas em estudos de outros autores, sendo então objeto de pesquisa mais especializada de Armindo Borges relativamente a elos entre Flandres e a polifonia vocal em Portugal (Veja). Essas relações eram e são explicadas em geral pela existência de contatos comerciais entre Portugal e outros regiões, em particular aquelas de importantes portos, como Antuérpia, ou entre as famílias reais.


No caso de Vicente Lusitano tem-se um caso especial de contexto de relações luso-centroeuropéias, aquele do movimento reformatório. O significado da conversão do músico português, que se projetara nos mais altos círculos da Igreja, foi salientado por Maria Augusta Alves Barbosa já no primeiro capítulo que imediatamente segue àqueles que tratam de fontes biográficas da literatura mais antiga e de fontes arquivárias na Alemanha, abrindo assim propriamente a sua obra.


O descobrimento de um testemunho da atuação de Vicente Lusitano na Alemanha após a sua presença na Itália representara uma surprêsa para a pesquisadora e marcara fundamentalmente os seus estudos.


Uma indicação no sentido de considerar com mais atenção os arquivos do antigo Ducado de Württemberg devia a seu orientador de doutoramento, Karl-Gustav Fellerer (1902-1984). Este lembrou-se de um artigo publicado em fins do século XIX nos cadernos quadrimensais de história regional de Württemberg sôbre a música na Côrte do Duque Christoph (Württembergische Vierteljahrshefte für Landesgeschichte, nova série VII, Stuttgart 1898, 160, cit. op.cit. 29,  Anmerkung 1).



Esse foi o motivo que levou a autora a dirigir-se várias vezes a Stuttgart, ali fazendo estreitos contatos. Esses elos com instituições e pesquisadores locais explicam que fosse convidada, em 1979, oficialmente a vir de Lisboa para dar conferências em Stuttgart, época na qual não eram fáceis viagens de Portugal ao Exterior. Nessa cidade, a autora fizera pesquisas no Arquivo Principal do Estado, no Arquivo Municipal, no Arquivo da Igreja do Estado e na Coleção Gráfica da Galeria do Estado.


Em 30 de dezembro de 1978, Maria Augusta A. Barbosa, escrevia informando que dera duas conferências em Stuttgart, por mandado da Secretaria de Estado da Cultura, para a qual já tinha as autorizações para deslocar-se, menos licença para a conversão de escudos em marcos, o que impossibilitava de sair do país.





Recordando viagem de fins de 1975 a Stuttgart


Encontrando-se em fins de 1975 em fase de preparação para a edição de sua tese, Maria Augusta A. Barbosa viu-se confrontada com a necessidade de ir mais uma vez a Stuttgart para rever dados e procurar novos indícios documentais. Tendo o editor desta revista podido acompanhá-la no projeto, cumpre relembrar algumas das reflexões de então com base na releitura da sua obra.




Uma consideração que conduziu as reflexões - e que era resultado de experiência de pesquisas com "mestres menores", de grupos sociais desprivilegiados no Brasil -   dizia respeito à dúvida se o Vicente Lusitano que surge na Côrte do Duque Christoph de Württemberg podia ter a sua imagem adequadamente criada a partir de documentos e dedicatórias em obras. Uma imagem que o apresentasse de forma por demais nobilitada obscureceria justamente o extraordinário caminho dessa pessoa de modestas origens que surge em Württemberg à procura de emprêgo  em fuga da Inquisição.


Esse Vicente Lusitano ofereceu os seus serviços ao Duque em Stuttgart entre o 30 de maio e o 2 de Junho de 1561, fato do qual Maria Augusta A. Barbosa encontrou duas fontes: um registro de pagamento por cantos que o compositor entregara ao Duque e uma carta, na qual o ex-Bispo Petrus Paulus Vergerius o recomendava ao Duque. (op.cit. 15)


Já a leitura desses documentos, incluidos em fac-simile e em texto na sua obra, demonstram que só uma erudita como a pesquisadora portuguesa, com os seus conhecimentos de paleografia, leitura de manuscritos, do latim e do antigo alemão os poderia ter descoberto, lido e analisado.


A conversão do sacerdote e músico português ao Protestantismo


Essa última fonte é que revelou a Maria Augusta que Vicentius Lusitanus tinha-se convertido ao Protestantismo.


Nela, o músico que havia sido padre, mencionado já como músico italiano, passando o cognome pátrio a constituir uma espécie de nome familiar, era citado juntamente com a sua mulher e designado como "vir christianus", uma formulação que o ex-Bispo Petrus Vergerius utilizava apenas para protestantes convictos.


Uma das especulações então feitas nos diálogos informais na viagem de Stuttgart era a de se Vicente já teria tido a sua mulher antes ou depois da conversão.


No primeiro caso, indicaria uma certa liberdade do ainda padre, levantando a hipótese de ter-se convertido premido pela sua situação moral, casando-se.


Seria possível, porém, que o tivesse feito apenas após a sua entrada no meio reformado como comprobatória da convicta conversão na sua qualidade de padre católico.


Como então aventado, nada impediria supor que, crescido provavelmente como órfão em instituição eclesiástica e seguindo a carreira sacerdotal talvez por ser esta o único caminho aberto á ascensão social, tivesse sido não demasiadamente rígido quanto a prescrições morais.


Entre as razões que teriam levado a que o renomado ex-Bispo Petrus Paulus Vergerius recomendasse o Vicente português ao Duque de Württemberg, uma delas teria sido possivelmente a sua boa imagem do músico ganha através do Conde de Thiene. O encontro pessoal com P.P. Vergerius deu-se em 30 de Maio ou 1 de Junho de 1561 em Baden-Baden, quando então obteve a carta de recomendação.


Maria Augusta A. Barbosa supunha até mesmo ter sido possível que o próprio Vicente tivesse levado pessoalmente a carta de apresentação ao Duque. Já no dia 2 de Junho este recebia uma soma em pagamento por composições que entregara.


Uma das questões que preocupava a pesquisadora era se esse honorário devia ser visto como simples registro atrasado de uma soma que o compositor já tinha recebido na Páscoa - segundo Vergerius -, ou se se tratava de um segundo pagamento, uma espécie de recompensa pela sua longa viagem e pela decepção sofrida ao não ser aceito.


Uma notícia escrita pelo próprio Duque na carta de Vergerius indica que este mandou que o recomendado viesse, êle poderia ser honrado de alguma forma, não seria, porém, aceito e não teria autorização de permanência (op.cit. 24).


Das razões da recusa do Duque em empregar o português


Alves Barbosa levanta a questão dos motivos pelos quais o Duque Christoph não quis dar emprêgo e autorização de permanência ao Lusitano.


Como as suas composições foram bem pagas e o seu motete Beati omnes copiado em um código para uso da Capela da Côrte, essa negação não podia ter tido razões musicais.


Entre as eventuais razões dessa atitude do Duque, poder-se-ia pensar numa falta de lugar na Capela e desconfianças por parte do Duque com relação ao Conde Julius de Thiene ou com fugitivos da Itália em geral. O Duque, que nem o quis receber aquele que conhecia como "músico italiano" de "nação lusitana" pela carta de P.P.Vergerius.


Vicente Lusitano surge, assim, como estrangeiro "com passado migratório", um músico italiano de origens portuguesas.


A pesquisadora supõe até mesmo que o Duque tivesse passado por uma difícil situação na tomada de sua decisão, uma luta interna, uma vez que sempre procurava ajudar os seus correligionários de fé, em particular aqueles que estivessem em perigo. (pág. 24)


Como observou em nota, Maria Augusta A. Barbosa pensava também no mau renome do Conde Julius de Thiene, uma vez que matara a sua nora por motivos morais ou pecuniários e não se sabia bem da causa da morte de sua primeira mulher, Eleanor. (op.cit.35, nota 17).


A autora, procurou, na sua obra, colocar-se empaticamente na situação do músico em Stuttgart: com mulher, desempregado, sem autorização de permanência, sem dinheiro, não podendo retornar à Itália, onde cairia nas mãos da Inquisição como padre herético e casado. Entre as possibilidades imaginadas por Alves Barbosa, êle poderia ter voltado a seu amigo em Strassburg, o Conde Julius de Thiene. Apesar de suas intensas investigações, porém, nada pôde encontrar que fundamentasse essa suposição. Êle poderia, segundo ela, ter mudado o seu nome devido à perseguição por parte da Igreja Católica (pág. 26).


Vicente não teria podido retornar à Itália por correr perigo de vida. Um retorno não podia ser deduzido da impressão do madrigal "All'hor ch'ignuda" em Veneza, em 1562. Como a sua Introdutione tinha sido impressa em 1558, tudo  fazia supor que Vicente tivesse passado os últimos tempos de sua estadia na Itália no Norte italiano. Poderia ter ali estado com o Conde Julius, pois este permaneceu no Exterior até junho de 1557. Este tendo em 1560 solitado o direito de cidadania em Württemberg, não a obteve, alcançando apenas uma permissão de residência para êle, sua segunda mulher e filhos. (op. cit. pág. 28)


Julius de Thiene tornou-se um auxiliar daqueles que, conversos, emigravam da Itália devido à Inquisição. Houve, assim, uma corrente emigratória do Norte da Itália para a esfera de língua alemã, sobretudo de cidades que haviam sido mais alcançadas pela Reformação. Esta propagara-se em meios acadêmicos e artísticos da Universidade de Pádua e na região de Veneza, cidade que, pelo seu porto, era cosmopolita e obrigada a manter uma certa tolerância, impedindo de início ações mais severas da Inquisição.


Uma outra possibilidade, talvez a mais plausível vista pela pesquisadora para o errático Vicente seria ter-se transferido à França, onde poderia ter permanecido até o fim de sua vida. O fato de supor-se que o Anonymus Esp. 219 seja se sua autoria poderia corroborar essa hipótese.


Os elos de Vicente Lusitano na Côrte de Württemberg permitiram que se conservasse uma cópia de seu motete Beati omnes. A autora dedica, em outra parte de sua obra, pormenorizadas considerações a respeito dessa obra.


Para poder chegar a essas conclusões e fundamentar suposições com base documental e à procura de outros indícios, Maria Augusta A. Barbosa sentiu-se obrigada a desenvolver pormenorizadas investigações a respeito dos protagonistas do episódio de Württemberg. Desses trabalhos resultaram extensos textos de alto interesse histórico que são adjuntos ao capítulo respectivo na forma de observações. No Arquivo Central do Estado, percorreu os registros de pagamentos feitos pela Côrte de Württemberg à procura de ordens de pagamento e recibos. Nessas pesquisas, pôde constatar que outros compositores, alemães e estrangeiros, ofereciam ao Duque Christoph, recebendo honorários. Comparando o pagamento dado aos vários compositores, chega à conclusão que Vicente Lusitano foi bem pago pela sua ou pelas suas obras.


Um bispo e diplomata pontifício convertido como personalidade-chave


Uma atenção especial dedicou M. A. Alves Barbosa à personalidade e à vida de Petrus Paulos Vergerius, o bispo converso que recomendou Vicente Lusitano ao Duque. Italiano, nascido em 1498 em Capodistria, de família de bens, estudou Jurisprudência em Pádua, atuando posteriormente como advogado em Verona, Pádua e Veneza; o seu irmão Aurélio era Secretário do Papa Clemente VII (1478-1534) em Roma.


Transferindo-se para Roma, conquistou a confiança e a admiração de Clemente VII e Paulo III (1468-1549), sendo enviado em missões diplomáticas ao Exterior, em particular para solucionar questões relacionadas com a propagação do Luteranismo. Numa dessas missões, teve um encontro pessoal com Martinho Lutero (1483-1546) no Castelo de Wittemberg (1535). Em 1536, foi consagrado Bispo, com título da localidade Modrush, na Croácia, assim como de Capodistria.


Após uma viagem diplomática à França e participação no colóquio de Worms, retornou à sua diocese com doutrinas que não pareceram suficientemente ortodoxas ao Papa Paulo III. Negando a seguir ordem pontifícia no sentido de esclarecer as suas convicções, o Bispo P.P. Vergerius apenas mostrou-se disposto a apresentá-las perante o Concílio Tridentino; este, por sua vez, negou-se a ouví-lo.


Em 1549, abandonou a Itália devido ao risco de perseguições, fixando residência na terra dos Graubünden, onde a Reformação já se encontrava enraizada. Excomunicado em 1543 como adepto de Lutero, foi chamado, em 1553 pelo Duque Christoph à Turíngia, onder serviu de Conselheiro Ducal.


Passou a realizar viagens por toda a Europa Central, contribuindo para o estabelecimento ou fortalecimento de rêdes na esfera da Reformação, servindo, ao mesmo tempo, devido a seus antigos contatos com o Vaticano, como informante do que acontecia em Roma. Tornou-se um protetor dos conversos que emigravam do Norte da Itália, sendo nesse contexto que deve ser vista a carta de recomendação que escreveu a favor de Vicente Lusitano. (op.cit. 30)


O significado da música na Côrte de Württemberg


Tivesse Vicente Lusitano sido aceito na Côrte de Württemberg, estaria empregado numa das Capelas de Côrte de maior renome na Europa Central. Esse intento de Vicente demonstra aqui mais uma vez os seus ímpetos de ascensão: após ter subido a altas esferas diplomáticas e eclesiásticas, almejava agora uma colocação numa das principais instituições musicais da Alemanha.


O significado dessa Capela foi pormenorizadamente estudado por Maria Augusta Barbosa no contexto de suas pesquisas à procura de indícios. Talentosos músicos, cantores e instrumentistas ali atuavam e o mestre-capela exercia também a função de ensinar os meninos cantores.


Representantes do Duque eram enviados a outras regiões e mesmo ao Exterior à procura de músicos de excelência para a Capela, apesar dos grandes custos que causava à Côrte. Assim, a Capela gozava de renome internacional e muitos músicos procuravam nela alcançar um posto, enviando composições como provas.


Silenciamento de nomes daqueles que se tornam indesejáveis pela Igreja


A conversão de Vicente Lusitano ao Protestantismo tornou-se provavelmente conhecida na Itália. A autora baseia-se aqui em menção de Francisco da Cruz, segundo a qual a sua Introdutione Facilissima teve a permissão de ser divulgada, cortando-se, porém, o nome de seu autor. Esse fato correspondia à prática do Index Librorum Prohibitorum realizado na segunda sessão do Concílio de Triento, segundo a qual livros de autores heréticos podiam ser difundidos se não contivessem nada de suspeito.


Maria Augusta A. Barbosa dedicou-se ao estudo da Inquisição, em particular no Norte da Itália, região mais próxima da esfera alemã e de maiores contatos comerciais com a Alemanha. O controle inquisicional atingia casas de venda de livros, editoras e mesmo bibliotecas particulares. Já em 1548 efetuaram-se dois Autodafés, nos quais caixas contendo livros foram queimadas. Esse procedimento criava uma situação de mêdo entre aqueles que possuiam livros, que por conta própria então destruiam obras de autores suspeitos de suas bibliotecas.


Isso poderia explicar o fato de terem-se conservado tão poucas obras de Vicente Lusitano. Uma esperança tinha depositado a pesquisa no arquivo particular da Casa Collona, mas este encontrava-se ainda encaixotado desde a Segunda Guerra e, portanto, inacessível. Também na Alemanha perderam-se obras do compositor português.


Como salienta em longa nota na sua obra, a Inquisição era particularmente severa no caso da apostasia de sacerdotes. Essa atitude tornara-se ainda mais rígida após a bula de Paulo IV "Cum ex apostolatus officio", de 1559. (op.cit. 34)


O papel da família Thiene no movimento reformatório do Norte da Itália


Uma pesquisa particularmente extensa dedicou M. A. Alves Barbosa ao Conde Giulio de Thiene, com base em documentos inéditos, sobretudo de arquivos de Strassburg. Logo após a apresentação de sua dissertação, publicou-se um estudo a respeito da ação da familia Thiene no movimento reformatório em Vicenza (G. Mantese, "La famiglia Thiene e la Riforma protestante a Vicenza nella seconda metà del sec. XVI", Odeo Olímpico; Memoria dell'Accademia Olimpica, Vicenza 1960-1970, 81-186, cit. op. cit. 40). Segundo ela, os documentos inéditos considerados na sua obra e nessa publicação completavam-se, mas não substituiam-se reciprocamente. Dos documentos levantados por G. Mantese, a pesquisadora tomava conhecimento que o Conde Giulio de Thiene estivera em Lyon e que pelo menos a partir de 1570 passara a residir em Genebra. Por esse motivo, pesquisas futuras sôbre Vicente Lusitano deviam considerar essas duas cidades.(op.cit. 42)


Foi com base nessa situação das fontes encontradas em Stuttgart que Maria Augusta Alves Barbosa reconheceu a necessidade de uma consideração especial da conversão de Vicente Lusitano no contexto da difusão do Protestantismo no Norte da Itália.


Ela inicia a sua exposição lembrando que já a partir de 1527 constatou-se movimentos em Brescia, que se voltavam a duas direções o Luteranismo e aquele dos Valdenses. Apenas a partir de 1542, com a introdução da Inquisição em Roma segundo modêlo ibérico, é que teve início um controle mais intenso e ações de repressão da Igreja.


Devido à proximidade aos países de língua alemã, o Norte da Itália passou a ser alvo de atenção. Veneza desempenhava aqui papel de importância, uma vez que, como porto marítimo, necessitava manter uma maior tolerância para que o comércio não fosse prejudicado.


O controle inquisitorial local foi intensificado a partir do Pontificado de Júlio III (1487-1555), em 1550. Constatou-se então que a nova doutrina já se propagara em amplos círculos da população, sobretudo entre a nobreza.


Thiene, uma localidade próxima de Vicenza, era, em 1551/52, possuia uma maior concentração de protestantes, luteranos entre os nobres e batistas no povo.


A Reformação em meios acadêmicos de Pádua e a tolerância cosmopolita de Veneza


Em Pádua, onde havia muitos estudantes alemães, o movimento reformatório difundira-se entre os acadêmicos. Uma personalidade destacada de Pádua foi Matteo Gribaldi-Mofa, jurista, professor que se dedicava em especial aos estudantes alemães. Abandonando Pádua após ter sido dispensado devido às suas convicções religiosas pelo Dodge, transferiu-se para Zürich em 1555. Ali, através de P.P. Vergerius, assumiu uma cátedra na Academia de Württemberg em Tübingen, tornando-se conselheiro do Duque, com êle, porém, desentendendo-se posteriormente por questões doutrinárias. (op. cit. 443-449)


Como a pesquisadora menciona, tanto em Pádua como em Veneza atuavam diferentes correntes reformadas, prevalecendo a dos luteranos e a dos huguenotes. Devido à necessária liberdade de comércio da cidade portuária, a cidade passou a receber estudantes alemães luteranos e huguenotes franceses, oferecendo proteção contra a Inquisição.


Essa situação tornaria, segundo ela, compreensível a conversão de Vicente Lusitano ao Protestantismo, sabendo-se também que teria estado em Pádua.


Maria Augusta Barbosa, porém, não pôde encontrar as necessárias fontes documentais para esses faos, pois os arquivos de Pádua foram em grande parte destruídos. Também em Veneza nada encontrou. Como o músico português procurou refúgio na Alemanha, provavelmente tenha passado para o Luteranismo em Pádua. Por outro lado, os seus elos com o Conde de Thiene, também luterano, indicariam a região de Vicenza. (op.cit.46)


Estudos contextuais de elos e relações e empatia do pesquisador


Para que houvesse uma mais viva tomada de consciência da singularidade da presença do Vicente português na Côrte de Württemberg no século XVI, permitiu-se uma espécie de encenação lúdica .(Veja título desta página)


Esse procedimento não foi expressão de simples jocosidade, mas sim de tentativa de deslocamento empático a uma situação que merecia ser considerada sob outros aspectos do que aqueles derivados de uma imagem derivada do estudo de fontes de arquivo ou de uma cultura acadêmica ou institucional.


Estas favoreciam a visão de um personagem nobilitado sob diferentes aspectos, fazendo-se esquecer que Vicentivs Lvsitanvs era um estrangeiro, de côr de pele escura, de origens desconhecidas sul-européias-norte-africanas, que alcançara renome na música sacra católica na esfera da sua mais alta instituição, e que, converso, procurava emprêgo no severo Ducado reformado de Württemberg. De início, essa tentativa de rever a imagem do português Vincente criada pela erudição contrariava a visão de Maria Augusta A. Barbosa.


No seu trabalho, desenvolveu amplas explanações críticas a textos do eminente musicólogo norte-americano Robert Stevenson (1916-2012) e que pareciam em parte exageradas e pouco justificáveis. Explicava-se porém essa posição de Maria Augusta A. Barbosa pelo fato de entender no texto de Stevenson insinuações a respeito do teor da amizade entre Vincentius Lusitanus e o filho do diplomata português no Vaticano, o que explicaria a ida do músico a Roma e a sua entrada em círculos elevados da sociedade. Procurou-se, assim, relativar essa crítica de Maria Augusta A. Barbosa chamando a sua atenção para as próprias concepções historiográficas que caracterizavam o seu pensamento e aquele de Mersmann: a instabilidade ou diversidade de visões da imagem histórica criada pela análise de elos e relações.


Não considerar empáticamente a situação do Vincente português, nobilitando a sua imagem, significaria roubar-lhe extraordinário interesse histórico-cultural e mesmo talvez prejudicar uma possível compreensão do fato do Duque ter-se negado a contratar o português. A necessária manutenção da seriedade e do rigor da pesquisa não deveriam ser sentidos como opostos a uma atitude do pesquisador sensível para a estranheza da situação, os seus aspectos curiosamente singulares, ultrapassante de normas e esferas sociais.


Esse procedimento não era arbitrário, mas fundamentado no programa desenvolvido no Brasil de interações culturais e que passou a ser realizado a partir de 1974.


A orientação dirigida a processos - não a esferas categorizadas da cultura erudita ou popular - procurava criar novas bases para o relacionamento entre a pesquisa histórica e a empírica. Sendo a sociedade fundada em 1968 (Nova Difusão) dirigida não apenas à renovação de concepções mas também da prática, tratava-se de cuidar da apresentação refletida de obras, procurando meios para expressar os seus respectivos contextos através de meios visuais, gestos e encenações.


As reflexões levaram também ao relacionamento entre a pesquisa histórico-musical de fontes e a empírica de tradições musicais na própria realização sonora das obras. Essas reflexões relacionavam-se com a questão da leitura de notações e de partituras, com o problema do não-escrito e dos êrros ou pretensos êrros de escrita e de harmonia.


Para a exercitação na prática dessa proposta de consideração de resultados da pesquisa empírica de tradições na pesquisa histórico-musical de fontes do passado fundou-se um coro e orquestra de experimentação (Coro e Orquestra de Música Sacra Paulista).


Nas suas atividades, emprestava-se particular cuidado a que também elementos de antigas famílias de músicos nele participassem, apesar de sua idade avançada; procurava-se, nas tradições populares, elementos de colocação de voz, práticas instrumentais e de interpretação que, independentemente das normas válidas de qualidade de execução da atualidade, possibilitassem uma realização criativa de realidades sonoras por detrás daquela grafada nas partituras.


Os debates através das décadas, levaram por último a uma sessão especialmente dedicada a problemas de Execução Musical sob a perspectiva teórico-cultural, substituindo a "Prática de Execução Histórica" convencional no Congresso Brasil-Europa 500 anos: Música e Visões, em 1999.


Como Maria Augusta Alves Barbosa salientou na sua obra, os estudos de contextos não são apenas suplementares ou secundários no tratamento de um determinado tema. Em muitos casos, como no de Vicente Lusitano, a obra tornou-se quase que exclusivamente um estudo de contextos, pois poucos são os dados documentados alcançados, apesar das pesquisas de arquivos. Essa posição correspondia ao intento de, através da análise de elos e relações contextuais, chegar-se a uma imagem, sendo esta visualizada pelo pesquisador a partir de seu próprio condicionamento atual.


A percepção e a revelação de contextos exigem, porém, não apenas conhecimentos históricos do pesquisador, mas sim também sensibilidade para um deslocamento mental à situação do protagonista ou época de seus estudos. Tentativas de contextualização relacionam-se, assim, estreitamente com esforços de empatia.


Com o deslocamento mental e emocional do pesquisador á situação que estuda, novas perspectivas podem ser abertas. Para favorecer esses esforços empáticos, recursos dos mais diversos serviram de auxílio nessas tentativas, sobretudo visuais e encenatórios. Isso levava, no caso de Vincente Lusitano, à tentativa do observador em se deslocar a uma situação sob muitos aspectos marcada por contradições, paradoxias, estranhas mudanças e transpassagens, uma transversalidade que correspondia ao termo alemão "schräg".


Essas tentativas de encenações ou performações, ainda que a-históricas, foram feitas com a intenção de contribuir a que o pesquisador tomasse consciência êle próprio da sua posição mental e emocional e do papel que esta desempenha na apreciação do seu objeto de estudos. Essa intenção correspondia também àquela de Mersmann, que no final de sua obra afirma que o questionamente passa da música ao observador que, perante a complexidade das questões que trata, toma consciência do caráter fragmentário dos seus intentos. (op.cit. 307)





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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.)."O português Vincente ou o "Vincente Lusitano" na esfera da Reformação na Europa Central. Estudos contextualizadores e empatia em situações transversas ".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 148/12 (2014:2). http://revista.brasil-europa.eu/148/Contexto-e-empatia.html