Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Lisboa 2012. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.



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Lisboa 2012. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.


Fotos: Lisboa 2012. A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 148/5 (2014:2)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3076




História e visões de imagens históricas: mutabilidade de enfoques
Diferenciando assertivas de Jacob Christoph Burckhardt (1818-1897)

Maria Augusta Alves Barbosa (1913-2013)
e o estudo de processos culturais em relações internacionais III









Este texto deve ser compreendido no conjunto de outros artigos desta edição da Revista Brasil-Europa dedicados à memória da Profa. Dra. Maria Augusta Alves Barbosa, falecida, centenária, em 2013.


Essa série de textos representa a tentativa de compreender o seu pensamento, as suas posições e trazer à consciência o seu significado para os estudos culturais, em particular para aqueles relacionados com Portugal, Brasil e Alemanha. Foi ela nada menos do que a criadora do primeiro Departamento de Ciências Musicais no âmbito universitário em Portugal, realizando assim um anelo que permanece em aberto em muitos países.

Essa série de textos representa também um ato de gratidão póstumo pelo papel que desempenhou desde 1975 nos esforços de interações internacionais que levaram à criação do I.S.M.P.S. e.V., do qual foi Presidente Honorária por Portugal. Esses textos devem ser compreendidos sobretudo à luz do escopo geral dos trabalhos divulgados na Revista Brasil-Europa do corrente ano, voltados que são à balanços e revisões de caminhos, a reconscientizações de objetivos e a análises do programa de estudos, contatos e iniciativas que teve o seu início em 1974 como exposto no primeiro número de 2014. (
Veja)


As edições do corrente ano consideram com base em materiais conservados nos acervos da A.B.E. e do I.S.M.P.S. e.V. sobretudo decorrências das décadas de 70 e 80 do século passado, caídas no esquecimento ou desconhecidas. Procuram contribuir a reaprumos, ao reconhecimento de possíveis desvios, ao evitar de repetições de projetos, iniciativas ou visões insuficientes de um desenvolvimento da história recente que já é há muito marcado por interações internacionais.



 
Lisboa 2012. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.
Maria Augusta Alves Barbosa, uma dos mais significativas personalidades entre os representantes de Portugal em meios universitários da Alemanha no período pós-guerra, criadora do primeiro Departamento de Ciências Musicais em universidade portuguesa, membro da Sociedade Brasileira de Musicologia, Presidente de honra por Portugal do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa de 1985 até o seu falecimento em 2013, com cem anos, deixou, na verdade, uma única obra de maiores dimensões publicada: a sua tese de doutoramento:


Partindo da música, similaridades com o a História como decorrência no tempo se impõem já numa primeira aproximação à obra. Tal como a música sempre fluindo, captável acusticamente apenas no transitório momento que soa, imediatamente deixando para si desenvolvimentos anteriores e correndo ao que se segue, configurando porém no seu todo a obra musical, assim pode ser vista a História nesse paralelo, e assim viu Maria Augusta A. Barbosa a cultura musical portuguesa em momento privilegiado do século XVI.


Para a compreensão do pensamento de Maria Augusta A. Barbosa, torna-se necessário considerar os seus pressupostos, ou seja, as correntes em que se inseriu, em particular as alemãs. Em primeiro lugar deve ser lembrado o músico e pesquisador musical Hans Mersmann (1891-1971), que, como ela, atuou em Berlim e em Colonia, mantendo durante todas as décadas relações de sintonia de pensamento e visões.


Tratando-se de obra de natureza histórica, apesar de partir fundamentalmente da música, cumpre considerar na sua leitura logo após as concepções relativas à música como ponto de partida as visões da História da sua autora.


Corrente de pensamento historiográfico que remonta a J. Ch. Burckhardt (1818-1897)


Citando o erudito suíço Jacob Christoph Burckhardt (1818-1897), grande nome da História Cultural e, em particular da História das Artes, professor de Heinrich Wölfflin (1864-1945) na sua "História da Música na Cultura Ocidental" ((Musikgeschichte in der Abendländischen Kultur, Kassel, Basiléia, Londres: Bärenreiter, 3a. ed.), Hans Mersmann revela a sua inserção em determinada corrente de pensamento historiográfico.


Esse significado de Burckhard não explica apenas o fato de ter sido êle o autor da obra A Cultura da Renaissance in italien (1800), publicação relevante não só no contexto do entusiasmo pela Itália e pela cultura da Renaissance em fins do século XVIII e XIX, mas também para a consideração da obra de Maria Augusta A. Barbosa.


Burckhard via na Renascença não só o fim da Idade Média, - com as transformações fundamentais nas relações entre a Igreja e o Estado -, como um periodo configurador do Homem individual.


Essas concepções relativas à formação da Individualidade na era Moderna podem ser percebidas no vulto de Lusitanus reconstruído por M. A. Alves Barbosa. Também podem ser detectadas na sua concepção relativa à cultura musical portuguesa configurada nessa época, ainda que esta tivesse as suas pré-condições no passado e se encontrasse continuamente decorrendo em direção ao futuro.


Tais concepções de Burckhardt, elas próprias de cunho especulativo histórico-filosófico, se opunham a uma imagem da História antes de fundamentação teológica, na qual, como decorrência temporal, com os seus ciclos, refletiria um processo histórico que se desenvolveria continuamente e, para além, deste, o Eterno imóvel, origem de todo o movimento e do movimentado.


Para Burckhardt, seria um mistério o sentido e o objetivo da História e da existência, partindo antes da natureza do homem. Compreende-se, assim, que a individualização que via na passagem da Idade Média tardia à Renascença, decorrente de mudanças estruturais das relações entre Igreja e Estado, surgisse como marco nessa concepção mais ampla de compreensão do tempo e da história, distinta da tradição religioso-filosófica.


Pelo significado da obra de Burckhardt, que determinou a visão e mesmo o uso do termo Renascença na História das Artes, da História da Cultura em Geral, a ela apenas correlando em significado a valorização do Humanismo como expressão da esfera mais alta da cultura por Georg Voigt (1827-18919), outro vulto da pesquisa da Renascença, não poderia ter deixado de ser obra básica tanto para Hans Mersmann como para Maria Augusta A. Barbosa.



História e imagem da história: a transformabilidade de enfoques de imagens de decorrências


Mersmann parte de citação de Jacob Burckhards, segundo a qual "somente do estudo do passado ganhamos um padrão da velocidade e da força do movimento, no qual nós mesmos estamos inseridos; a História é em todo caso a menos científica de todas as
ciências, apenas que ela transmite muito digno de conhecimento; precisão rigorosa de conceitos pertencem à lógica, mas não à História, onde tudo é instável e se encontra em perenes transições e misturas."


Diferenciando, ou mesmo em parte corrigindo essa afirmação, Mersmann afirma que o instável ou flutuante não diz tanto respeito à história em si, mas à imagem que dela se tem. (op.cit. 2)


Era a imagem que o homem tinha da História que estava em constante transformação. Ela resultava da interação dos fatos históricos e da visão do observador. As exposições dos historiadores demonstravam elas próprias que não havia consenso quanto a decorrências e fatos.


Para Mersmann, a primeira parte da afirmação de Burckhardt podia até mesmo ser invertida: da velocidade e força de nosso tempo é que se ganha o padrão de medida e de ordenação do passado. As ordenações do decorrer temporal decaem e ressurgem; elas não podem ser tomadas, precisam sempre ser de novo conquistadas. Assim, Mersmann distanciava-se da definição convencional de História como um dar sentido ao passado, como teria sido típico do sécuio XIX.


Transpondo assim a transitoriedade da realidade objetiva àquela vista pelo homem, Mersmann segue aqui caminho coerente com as suas concepções relativas à música, pois também nelas acentua o aspecto do músico e daquele que ouve uma obra, que cria dentro de si a imagem de uma força original, da alma, que movimenta, pairando, sobre as suas "tenebrosas" correntezas. (loc.cit.)


Nesse sentido, para Mersmann, a História transformava-se em visão do mundo atual e do tempo presente.


A força e a velocidade do movimento citado por Burckhardt partia da imagem do observador do presente e projetava-se no passado. A ordenação das decorrências modificar-se-ia, surgindo continuamente a necessidade de novas construções.


Mersmann não queria interpretar o passado, mas sim compreendê-lo, tentando ir além dos limites prismáticos determinados pela sua própria situação. O tempo presente parecia-lhe particularmente adequado para essa ordenação histórica, pois possuía uma herança que era muito maior do que aquela de gerações anteriores.


Ordenações do decorrer histórico não existem a priori - nem evolução ou progresso


No seu pensamento, não há a priori ordenações e medidas na decorrência histórica. Também não mais totalmente válida parecia-lhe a idéia de uma evolução, própria de historiografia mais antiga. Ainda que o pensamento morfológico evolutivo fosse instigante, formas não podiam ser transplantadas a decorrências históricas.


Mersmann colocava-se contrário à idéia de progresso que o Iluminismo sustentara e que intervenira na historiografia. Seria uma tarefa do tempo libertar-se dessa concepção.


Mersmann procurava também não confrontar-se com a história de uma arte com o questionário de categorias pré-determinadas.


O pesquisador não podia aproximar-se da história de uma arte segundo um catálogo de questões, mas devia ganhar os seus padrões do próprio objeto de obeservação. Apenas restava de todas as seguranças a continuidade histórica, uma lei, que Mersmann compreende no sentido de continuidade plena de sentidos de tudo o que decorre. (loc.cit.)


Similares concepções na obra de Maria Augusta A. Barbosa


A pesquisadora portuguesa abre a sua obra com uma citação que levanta questões similares, ainda que proveniente de fonte portuguesa do século XVII, que diz (em versão atualizada):


"...e no que toca à história, se no que passa em nossos tempos, e o que mais é, diante dos nossos olhos, são tantas opiniões, que nenhuma couse se pode quase saber com infalível certeza, demasiado rigor é querer que se dê em coisas tão antigas a firmeza, que nas presentes se não alcança." (Manoel Severim de Faria, Notícias de Portugal, offerecidas a elrey N.S. Dom Joaõ o IV ... Anno 1655. Lisboa, Na officina Craesbeeckiana, p. 283)


Com essa citação, Maria Augusta A. Barbosa indica não apenas antecipadamente que o seu estudo se desenvolve ao redor de incertezas e não oferece soluções definitivas, guardando sempre o cuidado de não sugerir seguranças e salientar hipóteses como tais, mas sim revela as concepções historiográficas que a norteavam.


Na sua percepção aguçada, percebeu ao ler a antiga fonte portuguesa uma compreensão da História e do seu estudo que antecipava de muitos séculos não só a opinião do seu colega Hans Mersmann e que corrigia a de Burckhardt, como a da própria tradição de pensamento a ^le remontante.







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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (ed.)."História e visões de imagens históricas: mutabilidade de enfoques. Diferenciando assertivas de Jacob Christoph Burckhardt (1818-1897) ".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 148/5 (2014:2). http://revista.brasil-europa.eu/148/Historia-e-visoes.html