Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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©A.A.Bispo


Convento dos Capuchos. Peninha 1991©A.A.Bispo


Convento dos Capuchos. Peninha 1991©A.A.Bispo


Convento dos Capuchos. Peninha 1991©A.A.Bispo


Convento dos Capuchos. Peninha 1991©A.A.Bispo


Convento dos Capuchos. Peninha 1991©A.A.Bispo


Convento dos Capuchos. Peninha 1991©A.A.Bispo


Convento dos Capuchos. Peninha 1991©A.A.Bispo


Convento dos Capuchos. Peninha 1991©A.A.Bispo


Convento dos Capuchos. Peninha 1991©A.A.Bispo


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Fotos: Convento dos Capuchos 1991 e Tejo 2012. Titulo e retrato: Rio de Janeiro 1992. Titulo: com o editor e D. J. Evangelista Enout, OSB. A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 148/3 (2014:2)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3074







Uma mulher como personalidade-chave despede-se

Aproximações a seu caráter, proceder científico e pensamento
a partir de seus mentores alemães e antecessores portugueses


Maria Augusta Alves Barbosa (1913-2013)
e o estudo de processos culturais em relações luso-brasileiras I








Este texto deve ser compreendido no conjunto de outros artigos desta edição da Revista Brasil-Europa dedicados à memória da Profa. Dra. Maria Augusta Alves Barbosa, falecida, centenária, em 2013.


Essa série de textos representa a tentativa de compreender o seu pensamento, as suas posições e trazer à consciência o seu significado para os estudos culturais, em particular para aqueles relacionados com Portugal, Brasil e Alemanha. Foi ela nada menos do que a criadora do primeiro Departamento de Ciências Musicais no âmbito universitário em Portugal, realizando assim um anelo que permanece em aberto em muitos países.

Essa série de textos representa também um ato de gratidão póstumo pelo papel que desempenhou desde 1975 nos esforços de interações internacionais que levaram à criação do I.S.M.P.S. e.V., do qual foi Presidente honorária por Portugal. Esses textos devem ser compreendidos sobretudo à luz do escopo geral dos trabalhos divulgados na Revista Brasil-Europa do corrente ano, voltados que são à balanços e revisões de caminhos, a reconscientizações de objetivos e a análises do programa de estudos, contatos e iniciativas que teve o seu início em 1974 como exposto no primeiro número de 2014. (
Veja)


As edições do corrente ano consideram com base em materiais conservados nos acervos da A.B.E. e do I.S.M.P.S. e.V. sobretudo decorrências das décadas de 70 e 80 do século passado, caídas no esquecimento ou desconhecidas. Procuram contribuir a reaprumos, ao reconhecimento de possíveis desvios, ao evitar de repetições de projetos, iniciativas ou visões insuficientes de um desenvolvimento da história recente que já é há muito marcado por interações internacionais.



 
Maria Augusta Alves Barbosa no Rio, 1992©A.A.Bispo
Nas últimas décadas tem-se dado atenção à justa revalorização da mulher e do papel que exerceu e exerce no desenvolvimento do pensamento e das artes, no passado muitas vezes silenciado. (Veja)


Foram muitas vezes apagadas ou diminuídas quanto à sua contribuição a desenvolvimentos, quanto às atividades que foram obrigadas a exercer com muito esforço de reserva e auto-controle.


Foram muitas vezes apenas aparentemente respeitadas como ato de cortesia, cavalheirismo ou de proteção patriarcal, na verdade ignorada, combatidas e passadas para trás nas suas iniciativas. Colegas, por vezes por elas próprias apoiados e promovidos, que mesmo nada teriam alcançado sem o seu auxílio, assumiram e procuram entrar na história com os méritos que lhe seriam devidos.


Conhece-se numerosos casos de instituições e projetos que, sem o papel exercido por mulheres na sua idealização, na sua preparação e realização não teriam sido possíveis. Permanecendo veladas por detrás do cenário de desenvolvimentos, resgatar os seus nomes e corrigir as imagens criadas é não apenas ato de justiça póstuma como de necessidade para o desenvolvimento adequado a pesquisa e da respectiva análise de rêdes profissionais.


Constata-se que esse silenciamento em vida e os obstáculos colocados às sua realizações, que nem sem foram sutís,  de modo que mesmo mulheres de extraordinária energia, tenacidade e absoluta dedicação a seus ideais tiveram por fim que dobrar-se aos fatos, a subordinar-se a situações.


Esfe foi o caso de Maria Augusta Alves Barbosa, personalidade de intelectual e pesquisadora portuguesa de excepecional capacidade, visões e fibra realizadora.


Conseguindo impor-se e ser respeitada na Alemanha, manteve concomitantemente por décadas a chama acesa de seus elos emocionais e de absoluta lealdade para com Portugal, chegando apenas no fim da sua vida profissional a realizar um plano de vida: a criação da primeira instituição de estudos cientificos da música em universidade portuguesa, o Departamento de Ciências Musicais da Universidade Nova de Lisboa.


O fato de ter conseguindo como estrangeira ser tão altamente considerada na Alemanha merece ser valorizado, uma vez que até hoje - e muito mais à sua época - é muito mais rara do que no Brasil a presença feminina em círculos influentes da cultura e das ciências.


Se na atualidade tanto se discute na Alemanha a criação de uma quota que obrigue por lei a integração de mulheres em quadros de liderança em empresas e instituições alemãs, devido às barreiras invisíveis que impedem a sua ascensão a postos de influência, tanto mais o era nas décadas em que Maria Augusta Alves Barbosa viveu no país.


Depois de ter conseguido impor-se pela sua capacidade e personalidade perante alemães assim tão imbuídos de atitude e consciência de papel de predominância masculina na própria Alemanha, jamais pensara Maria Augusta Alves Barbosa que teria de enfrentar similares situações no seu próprio país, a quem tanto serviu em fidelidade e idealismo, restando-lhe apenas guardar a sua dignidade e "habituar-se aos factos". O seu idealismo era tão grande que, apesar de sua avançada idade, passaria então a lecionar mesmo sem honorários na Universidade de Coimbra.


A intensa correspondência com que manteve com colegas e instituições na Alemanha, em particular também com a diretoria do ISMPS (Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.) oferece hoje um panorama de desenvolvimentos das décadas de 80 e 90 em Portugal.


A pesquisa futura, quando os protagonistas envolvidos já não mais estiverem vivos, encontrará neste acervo um manancial rico de nomes e fatos para correção da história de desenvolvimentos que estão à base de situações atuais.


Uma aproximação à posição da pesquisadora na Alemanha


Aquele que entrava no Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia, em 1974 ou 1975, surpreendia- se ao ver que no corredor que levava da sala de espera e do secretariado à biblioteca, quase defronte ao gabinete do diretor, encontrava-se o escritório de uma pesquisadora portuguesa, e que este era até mesmo mais amplo do que os demais.


Essa posição privilegiada acentuava-se pela proximidade do escritório do ex-diretor do Instituto e reitor da Universidade, Prof. Dr. Karl Gustav Fellerer (1902-1984), uma das principais e mais influentes personalidades da Musicologia alemã. Fellerer fora o orientador de doutoramento de Maria Augusta A. Barbosa e continuava a acompanhar os seus trabalhos, iniciativas e projetos relativos a Portugal.


Fellerer faria o mesmo com os projetos do editor desta revista relativos ao Brasil, integrados em programa de interações internacionais originado no Brasil e patrocinado pelo Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) desde 1974, uma das instituições que também possibilitaram os trabalhos de Maria Augusta A. Barbosa na Alemanha.


Com a sua experiência na organização institucional da Musicologia, e sobretudo com os problemas relacionados com a aceitação e implantação da pesquisa musical como área científica, apta a ser integrada nas Ciências Humanas, Fellerer incentivou e orientou tanto projetos de fundação de sociedades de musicologia no Brasil e em Portugal, como também e sobretudo o projeto de ereção do primeiro departamento de Ciências Musicais em Portugal e o da criação de um instituto de musicologia em condições universitárias similares no Brasil.


Também defronte da sala de Maria Augusta A. Barbosa situava-se a sala do Prof. Dr. Heinrich Hüschen, sucessor de Fellerer na direção deste maior instituto de musicologia da Alemanha. Se Fellerer era um dos maiores nomes de professores católicos, Hüschen era um dos mais destacados dos musicólogos evangélicos, ambos grandes vultos da assim-chamada Musicologia Histórica, ambos dedicando-se sobretudo à Antiguidade, Idade Média e Renascença.


Hüschen foi o grande colega de Maria Augusta A. Barbosa no Instituto, amigo e confidente, com ela tratando questões até mesmo internas da área e da universidade, entre elas a de orientações de doutorandos em temas relacionados com o mundo latino. Ia frequentemente à sua sala ou encontravam-se no fim do dia para jantarem em tradicional restaurante no bairro de Lindenthal, encontros que se tornaram de costume e no decorrer dos quais muitas questões relativas a Portugal e Brasil foram tratadas.


Hüschen foi orientador do editor desta revista e assumiu, por sugestão de Maria Augusta . Barbosa, a orientação do doutoramento do Pe. Armindo Borges, que estudara no Pontificio Istituto di Musica Sacra e na Escola Superior de Música de Colonia, e que trazia um projeto cultural e educativo ainda de seus tempos de juventude nos Açores, 


Havia, assim, um intenso relacionamento entre aqueles professores alemães e os pesquisadores de Portugal e do Brasil e muitas das questões dos projetos foram tratadas conjuntamente em conferências que se realizavam na sala de Maria Augusta A. Barbosa, onde esta possuia provavelmente o maior fichário bibliografico referente a Portugal e ao Brasil da Alemanha. A elas concorreram outros professores e estudantes de seminários de diferentes áreas, lembrando-se aqui que a Universidade de Colonia sedia antigo Instituto Português- Brasileiro, possuidor de uma das maiores bibliotecas especializadas da Europa.


Mesmo que após alguns anos tivesse que passar para um escritorio menor, M.A. Alves Barbosa, sempre teve a sua sala própria na ala da Musicologia Histórica, ao lado daqueles responsáveis pela direção do Instituto e seus assistentes,.Sempre pôde trabalhar diretamente junto à biblioteca, uma das maiores da área do mundo, cujo acervo era devido em grande parte ao trabalho do seu mentor K.G. Fellerer.


Maria Augusta A. Barbosa epresentava assim um caso excepcional no Instituto, uma vez que não pertencia ao corpo docente, não tendo obrigações de ensino, ali atuando apenas para a preparação da sua tese para a publicação, apresentada poucos nos antes, em 1970, e para o desenvolvimento de suas próprias pesquisas. Era, assim, a única que se dedicava total e livremente à pesquisa.


Essa posição privilegiada manifestava-se no seu tratamento pela direção e pelos demais professores, com os quais convivia em relações quase que de mesmo nível hierárquico e de amizade. Explicava-se essa situação pelo fato de ser a pesquisadora portuguesa já há anos - décadas - licenciada de sua posição de professora no Conservatório Nacional de Lisboa. Esse seu longo afastamento tinha sido possibilitada pelos diretores da instituição, Dr. Ivo Cruz e Prof. José Lúcio Mendes. Assim como ela própria, seria o filho do diretor do Conservatório, Dr. Manuel Ivo Cruz, aqueles que mais contribuiriam posteriormente para os trabalhos centralizados na Alemanha - o futuro ISMPS - e o Brasil, representando verdadeira ponte cultural e pessoal.


Esse longo afastamento do seu cargo, sancionado pelo Instituto de Alta Cultura e pelo Ministério de Cultura de Portugal, e sobretudo o alcance de repetidos apoios de financiamento por parte do mencionado DAAD e da Fundação Calouste Gulbenkian, foram apoiados pelo Embaixador de Portugal na Alemanha, Dr. Manuel Homem de Mello.


Esse relacionamento próximo de amizade com o representante de Portugal e mesmo o empenho da Embaixada no prosseguimento do trabalho de Maria Augusta A. Barbosa conferiam a ela uma posição especial no âmbito da universidade, o que explicava também as características excepcionais do seu tratamento.


Maria Augusta Alves Barbosa encontra-se certamente entre os pesquisadores que mais longo tempo estudaram na Alemanha e mais longo tempo levaram para a preparação de sua dissertação de doutoramento.


Johannes Wolf (1869-1947), orientação filológica, rigor paleográfico e arquivístico


O início de seus estudos dera-se há muitos anos atrás, em Berlim, na Friedrich-Wilhelm-Universität, conhecida a partir de 1946 como Humboldt-Universität. O seu grande desejo sempre tinha sido o de estudar com Johannes Wolf (1869-1947), o grande nome dos estudos da Notação, então já também de idade avançada, afastado como emérito há anos da Universidade, porém ainda muito ativo na vida acadêmica, sobretudo da Sociedade de Musicologia alemã.


A intenção de Maria Augusta A. Barbosa de poder estudar com J. Wolf explica-se pela sua atuação como professora de História da Música no Conservatório Nacional de Lisboa. Em repetidas ocasiões salientou que J. Wolf já não desejava ter alunos, e só por insistência e garantindo que dedicar-se-ia seriamente aos estudos é que foi aceita; Wolf teria segundo ela sempre afirmado que não estava disposto a perder tempo com aqueles que não se entregam totalmente aos estudos.


Essa absoluta dedicação aos estudos e uma seriedade sem compromissos à correção e exatidão, essa profunda antipatia à superficialidade, à auto-propaganda e a sensacionalismos recebida de Wolf marcou-lhe toda a sua vida e suas atividades futuras. Maria Augusta A. Barbosa inseriu-se através desse seu professor em corrente histórica que remontava a fase fundamental da história da pesquisa musical na Alemanha. 


Foi sobretudo uma orientação filológica e um particular interesse por questões de paleografia, notação gregoriana, polifônica e, em menor escala, instrumental, que marcaram essa fase de seus estudos e a sua concepção e prática do trabalho acadêmico. O seu estudo de complexas questões relativas á música polifônica, em particular da Ars Nova, levou-a a aprofundar-se em problemas teóricos, dirigindo-lhe a atenção à época fundamental de transição do pensamento e da concepção musical da Idade Média à Renascença.


Os anos dedicados a estudos paleográficos e de notação em geral, assim como a tradição filológica da musicologia podem explicar certos aspectos do trabalho e mesmo da personalidade de Maria Augusta A. Barbosa como musicológa e professora, e que a muitos podiam parecer exageradamente severos ou mesmo pedantes: um cuidado pela exatidão, disciplina e pelo rigor no pensar e no agir, pela comprovação cuidadosa de dados de fontes, mesmo à custa da produção intelectual.


Explica-se assim, que Maria Augusta A. Barbosa não se tenha adaptado ao processo de aceleração por que passou a prática universitária, ao papel que passou a assumir a quantidade quanto a publicações e gravações na prática acadêmica, e, sobretudo, à absurda importância concedida à frequência de citações de títulos em avaliações, o que abre portas a estrategias que prejudicam a dignidade do trabalho cientifíco.


Maria Augusta A. Barbosa não aceitou sobretudo a falta de seriedade que representa a repetição ou reprodução de conhecimentos, nas suas palavras o "moer o que já está moído", vendo como procedimento altamente reprovável se feito conscientemente, não só por nada trazer ao avanço real dos conhecimentos, como também por indicar intenções questionáveis de tomada de posse de temas e, assim, de intuitos de poder. Nada podia haver mais dubioso para Maria Augusta A. Barbosa do que pesquisadores que se apresentam continuamente em jornais ou em programas de emissoras a serviço da auto-promoção. Lamentava constantemente o uso da Musicologia para fins de propaganda pessoal por parte de pesquisadores por demais vaidosos ou ávidos de poder.


Assim como o seu professor J. Wolf, que também foi bibliotecário e inspetor de arquivos e acervos, Maria Augusta A. Barbosa foi sempre uma incansável pesquisadora de bibliotecas e arquivos, procurando levantar fontes bibliográficas não conhecidas ou devidamente consideradas e dirigindo toda a sua atenção à correção em citações.


Foi essa influência de Wolf que levou a que formasse o referido acervo de fichas com indicações bibliográficas de fontes portuguesas, de referências de interesse musical tiradas de livros e revistas de difícil acesso, com microfilmes e fotocópias feitas em época de difícil situação econômica. Com esse procedimento, valorizou o trabalho daqueles que a antecederam e deu profundidade histórica à própria pesquisa.


No Instituto em Colonia, Maria Augusta A. Barbosa vinha acesso direto à biblioteca, dia e noite, por elevador interno, não precisando passar pela entrada principal da Universidade Esse "viver na Biblioteca" marcou-lhe o seu procedimento profissional e mesmo pessoal.


Nada poderia ser para ela mais deprimente e impossibilitador dos estudos do que encontrar em universidades portuguesas insuficiência de materiais bibliográficos. Esse foi o caso de Coimbra, onde procurou por todos os meios, inclusive com doações de seus próprios livros, criar um mínimo de condições para estudos.


Esse viver entre livros, fichas bibliográficas e documentos, o prazer que tirava do odor de velhos manuscritos e impressos, do tateá-los, do de procurar desvender o seu conteúdo, a sua alma, em horas e horas passadas só entre estantes, armários e materiais acumulados esperando ordenação, acostumou-a a atuar só, a agir, à vida isolada, ainda que em sociedade, uma vez que, mentalmente no universo do interior de antigas bibliotecas, parecia julgar a partir dele as decorrências a seu redor.


Essa vivência profissional da disciplina a partir do âmago de bibliotecas e arquivos não determinou porém de forma absoluta a personalidade e o procedimento de Maria Augusta A. Barbosa.


Aparentes contradições: rigor científico e impulsividade de consciência de missão


Para aquele que a encontrava pela primeira vez, era difícil avaliar a personalidade de Maria Augusta Alves Barbosa.


Ela parecia ser reservada e mesmo fria, mantendo-se à primeira vista à distância, séria, discreta e um tanto ressabiada. Nos seus contínuos vai-e-vens do gabinete à biblioteca parecia não notar aqueles que cruzavam os seus caminhos, ignorando-os na sua compenetração. Essa atitude de discreta reserva, porém, parece também ter sido um fator para a sua aceitação por parte dos colegas professores alemães, aos quais na época atitudes extrovertidas e por demais comunicativas e agitadas não despertavam confiança.


Essa impressão de Maria Augusta A. Barbosa, porém, era superficial e modificava-se completamente em diálogos e na convivência. Ela então revelava ser uma pessoa na qual ardia um fogo interno, um ímpeto que explicava o inquebrantável otimismo e a sua fibra nas situações existenciais difíceis por que passou. Este impeto manifestava-se da forma mais evidente na impulsividade do falar e que podia ser contida com muito auto-controle, ou nas reações abruptas, mudanças inesperadas de emoções e no seu temperamento colérico.


Estava sempre em constante movimento e presente em atividades de relevância da vida universitária, não esquivando-se de recepções e solenidades.


Com a sua personalidade condutora, sabia incentivar e entusiasmar estudantes e mesmo colegas no seu trabalho e em atividades, demonstrando aqui as qualidades que a predispunham ao magistério.


Na sua capacidade pedagógica reconhecia o traço da formação recebida por J. Wolf, ou seja, o fomento da dedicação integral ao estudo, da exatidão, da correção e precisão na consideração das fontes, nas referências e nas formulações. Não era talvez consciente que a sua principal influência decorria não dessa procura de exatidão e rigor, mas de da sua total entrega de si ao assunto que estudava e que denotava estar compenetrada de uma missão a cumprir: o de elevar a pesquisa da música de Portugal a um nível superior universitário.


Considerando-se essa auto-consciência de um dever interno que a movia, pode-se compreender que Maria Augusta A. Barbosa podia perder a calma, admoestando os seus interlocutores, independentemente do seu grau hierárquico. Os seus julgamentos sobre pessoas eram apodíticos, às vezes cruéis para com os julgados. Isso valia para universitáríos, inclusive portugueses, que, uma vez não ganhando a sua simpatia, nunca mais a conquistavam. Procurava então ignorá-los ou afastá-los caso perrcebesse que estava perdendo o seu tempo ou que se tratava de um pesquisador que não se dedicava de corpo e alma à pesquisa. Repercutia-se nessa sua impaciência ou intolerância, o "não perder o seu tempo" de J. Wolf com pessoas que pareciam-lhe não entregar-se totalmente aos estudos.


Sabia demonstrar ter opiniões próprias também em discussões com professores, não dobrando-se quanto aos pontos que defendia. Não silenciava, assim, as suas próprias opiniões em conversas com outros professores, e essas eram, em geral, discordantes, ou salientavam aspectos críticos.


Era uma pessoa de grande coragem, capaz de ter vindo só para a Alemanha em época conturbada, estudando em Berlim bombardeado na Guerra e quase que totalmente destruído, de por em perigo a sua segurança financeira e profissional em Portugal, de enfrentar por anos os riscos de perder a sua segurança no funcionalismo público.


Essa falta de temor era resultado também aqui de um fundamental otimismo, que a levava a não medir despesas mesmo em situações financeiramente difíceis, que aliás eram constantes na sua situação de contínua espera de entrada de pagamentos de Portugal.


A essa coragem unia-se uma grande tenacidade no alcance de seus objetivos, e, sendo estes intelectuais, de alcance de conhecimentos. Toda a sua vida foi marcada por idealismo, por uma audaciosa e persistente dedicação à causa que a fazia esquecer da própria pessoa. Jamais perdia a sua confiança no futuro e no alcance de seus objetivos, que, no caso de sua dissertação, levou décadas.


Foi por vezes obsecadamente fixada no objeto de estudos ou nos seus intentos, jamais, porém, egocêntrica no sentido de promoção do seu próprio nome. O cuidado que sempre demonstrava no seu discreto modo de trajar, servia para salientar a dignidade que via no exercicio de sua profissão e sobretudo no valor do seu trabalho. Essa auto-consciência de dedicar-se a um objeto de estudos de relevância e, consequentemente, essa valorização do próprio trabalho poderiam ser consideradas como características significativas da personalidade de Maria Augusta A. Barbosa.



Hans Mersmann (1891-1971), colega e amigo - proximidades de pensamento


A personalidade de Maria Augusta A. Barbosa não pode ser considerada apenas através da formação que obteve de Johannes Wolf, da tradição filológica, paleográfica, bibliotecária e arquivológica em que se inseria em época de extrema dramaticidade da história alemã, de Berlim destruído e dos anos de reconstrução de pós-Guerra.


Houve uma outra grande vulto da vida musical, do ensino e da pesquisa da Alemanha que marcou-lhe a formação e mesmo o modo de pensar e agir. Foi Hans Mersmann (1891-1971), que Maria Augusta A. Barbosa também encontrou já em idade avançada durante os anos de estudos na Friedrich-Wilhelm-Universität em Berlim, e com o qual manteve por décadas relações de amizade em Colonia, onde Mersmann foi professor da Escola Superior de Música.


Mersmann tinha estudado em Leipzig, e.o. com Hugo Riemann (1849-1919) e Arnold Schering (1877-1941) e, em Berlim, com Hermann Kretzschmar (1848-1924) e Johannes Wolf, ou seja era colega de Maria Augusta A. Barbosa.Tinha sido um dos fundadores da seção alemã do Conselho Internacional de Música, tendo assim atuado intensamente na reedificação da vida musical alemã após a Guerra e no reestabelecimento de laços internacionais.


A influência de Mersmann no pensamento de Maria Augusta A. Barbosa teve características totalmente diversas do que a de Wolf, sendo sob vários aspectos muito mais duradoura e ampla. Era uma personalidade  de visões e concepções resultantes da sua proximidade com a música prática, com a vida musical e com aquela das Escolas Superiores de Música.


Diferentemente de Wolf, a sua atenção não era primordialmente filológica, paleográfica ou bibliotecário-arquivológica, mas antes dirigida a contextos histórico-culturais considerados sob o prisma da música, a elos da música com as artes plásticas, com a arquitetura e com o meio social no seu desenvolvimento.


Este relacionamento da pesquisa da música com a História Cultural, essa ampliação de interesses a estudos gerais referenciados pela música correspondeu ao modo de pensar, agir e ensinar de Maria Augusta A. Barbosa.


Próprio ao pensamento de Mersmann, porém, era não apenas a consideração da música no contexto geral de uma História das Artes e da Cultura, ou seja, meramente como um de seus elementos ou aspectos, mas pelo reconhecimento das dimensões que a experiência de professor de músicos práticos abriam para os próprios estudos histórico-culturais ou para a História das Artes e da Música.


Se com J. Wolf a pesquisadora portuguesa teve a sua formação voltada à escrita, ao texto, à partitura, à música anotada, através de Mersmann foi sensibilizada à música na sua realidade sonora, incapaz de ser totalmente grafada e que, sobretudo no passado, consistia apenas em traços sumários; para eras mais remotas, o pesquisador nem mesmo possuia notações.


Se do ponto de vista paleográfico Maria Augusta A. Barbosa sob a orientação de J. Wolf procurara antes desvendar sentidos a partir de sinais, sob Mersmann modifica-se o ângulo de aproximação, partindo-se antes da música na sua realidade acústica, de uma imagem do que soou ou soa acusticamente, do "Klangbild" que tinha apenas uma pálida expressão no anotado. Essa mudança de aproximações refletia a experiência do músico e compositor que partem, na interpretação, da obra como a concebem interiormente.


Estudo de contextos: análise da música em elos e relações


O pensamento de Mersmann reflete-se na dissertação de doutoramento de Maria Augusta A. Barbosa. Como ela própria salientou no seu prefácio, o vulto que considera - o compositor e teórico musical do sécúlo XVI Vincentius Lusitanus - nada deixou mais do que as poucas obras e muitos poucos dados relativos a alguns fatos de sua vida. Mesmo essas parcas referências, de época posterior, surgem como pouco fidedignas. Tornava-se necessário, assim, para além da leitura cuidadosa dessas fontes, examinar os contextos de vida de V. Lusitanus nos países em que viveu. Essa falta de fontes sobre o autor estudado levou assim a uma ampliação do campo de pesquisas.


No seu estudo de contextos, a sua preocupação foi, segundo as suas próprias palavras, a de tornar vivas personalidades históricas a partir das situações nas quais as suas vidas se desenvolveram. O leitor atento dessas palavras percebe o acento dado ao termo vida, tanto relativamente ao contexto estudado, como na própria historiografia. Essa expressão traz à consciência o significado que o vivo ou o vital ocupavam no pensamento de Mersmann e que remontava a correntes mais antigas da historiografia e dos estudos culturais (Kulturkreislehre).


Para alcançar tanto quanto possível uma imagem fidedigna do círculo de vida em que V. Lusitanus teria atuado, Maria Augusta A. Barbosa foi obrigada a analisar pormenorizadamente fontes várias, em grande parte desconhecidas, de natureza histórico-cultural ampla. A consideração de fontes histórico-culturais de contexto, não diretamente relacionadas com o tema central do trabalho, é justificada por Maria Augusta A. Barbosa pelo fato de possibilitarem uma base mais profunda para o entendimento do assunto e do pensamento das personalidades envolvidas na disputa teórico-musical em questão. No escopo de dar vida às personalidade, deixou que os documentos falassem por si no colorido e na vitalidade dos idiomas de séculos passados, procurando obter uma imagem mais viva das decorrências tratadas. Também quanto às imagens seguia o mesmo procedimento de Mersmann: de forma alguma as compreendia como mera ilustração  e não precisavam ter uma relação direta com a música.


Esses intentos parecem demonstrar como o procedimento de Maria Augusta A. Barbosa, formada na tradição de J. Wolf, parece ter-se transformado sob a influência de Mersmann. As fontes não surgem apenas como comprovações históricas, mas são integradas no desenrolar do pensamento, resultando do exposto anteriormente e preparando o que se segue, estabelecendo assim transições, criando um fluxo.


Esse complexo intento reflete a preocupação em reconhecer e expor linhas de desenvolvimento, e que em português teria a sua repercussão no pensamento voltado a "correntes" de Maria Augusta A. Barbosa. Também aqui poder-se-ia detectar a influência de Mersmann, que acentuava instabilidade ou o fluir da imagem da história.


Nos trabalhos de arquivo que Maria Augusta A. Barbosa desenvolveu para a consideração dos contextos de vida, deparou-se com fontes até então desconhecidas que, para serem analisadas, a levou a estudos especiais, paralelos, considerados no trabalho como esboços históricos, notas ou complementos.


Nessa sua complexidade e procurando dar uma imagem da vida de personalidades envolvidas a partir de suas situações de vida, estas analisadas em amplas dimensões, compreende-se que o trabalho de Maria Augusta A. Barbosa possa parecer por demais extenso relativamente ao tema tratado. A questão que aqui se levanta é, porém, a da perspectiva disciplinar adequada de sua leitura.


O seu fundamental significado revela-se antes se a obra for considerada não sob o aspecto convencional da Musicologia Histórica, mas sim antes da História Cultural nas suas relações com a concepção de imagem da história, de linhas de desenvolvimento e de vida defendida por Mersmann e de uma História Cultura referenciada pela música. A própria Maria Augusta A. Barbosa utiliza para descrever o seu trabalho um conceito visual: o de mosaico. A sua obra consistia na verdade de um só único capítulo, uma unidade que era possibilitada pelo vulto de V. Lusitanus, no qual os acontecimentos a seu redor se refletiam. 


"Cultura musical portuguesa no seu quadro histórico"


A pesquisadora expressa claramente que via a sua tarefa como sendo a de contribuir a um melhor conhecimento da cultura musical portuguesa no seu quadro histórico. Ou seja: cultura musical, não música. O seu objetivo, portanto, não era o de criar uma obra de História da Música no sentido convencional do termo, mas sim de dar uma contribuição de natureza músico-cultural.


Ao mesmo tempo, porém, Maria Augusta A. Barbosa parece, numa primeira aproximação, não se separar totalmente de elos com a tradição mais conservadora do pensamento, uma vez que acrescenta a adjetivação de portuguesa à cultura musical. Essa adjetivação nacional, porém, diferia daquela do pensamento nacionalista sob diversos aspectos, necessitando ser considerada no contexto de uma complexa recepção de concepções historiográficas.


Para ela, a cultura musical portuguesa no quadro histórico considerado seria resultado do desenvolvimento histórico-cultural do país e base para um programa de desenvolvimento cultural que se seguiu, uma especie de referencial configurado em múltiplas correntes em fluxo e portanto mutáveis e que, no caso, seria o período áureo da Renascença.


Também nesas  palavras revela-se a proximidade ao pensamento de Mersmann relativo ao vital em todas as formas de manifestação da música e do significado do estudo de suas pré-condições. Maria Augusta A. Barbosa procurou assim estudar as condições de surgimento de uma cultura musical portuguesa compreendida como vital, uma vida que teria os seus pressupostos no passado e que se desenvolveria nos séculos posteriores.



Avançar em caminho aberto por Mário de Sampaio Ribeiro (1898-1966)


Com essa concepção de cultura musical portuguesa, considerada no sentido de conceito de imagem de História de Mersmann e expressamente vista como transformável, Maria Augusta A. Barbosa procurou, segundo as suas próprias palavras, seguir o caminho de Mário de Sampaio Ribeiro, o grande nome português da Historiografia da Música.


Esta sua tentativa era também um ato de gratidão para com esse erudito pelo auxílio que lhe prestou na superação de obstáculos e na consulta de acervos particulares em Portugal.


A sua admiração por Mário de Sampaio Ribeiro era sobretudo devida ao fato de ter êle sido não apenas historiador e musicólogo, mas sim um músico prático, preocupado com a execução adequada da música do passado. Mário de Sampaio Ribeiro teria sido o primeiro que procurou coordenar os documentos de arquivo com aquilo que os monumentos da música prática falam a respeito da ação de músicos e escolas de música em Portugal.


A avaliação do desenvolvimento da pesquisa musical portuguesa de Maria Augusta A. Barbosa, baseada assim na importância que concedia à interação entre a prática musical e a pesquisa de fontes apenas pode ser compreendida adequadamente no contexto de sua formação na Alemanha. Ela não deve ser considerada como óbvia, mas sim como resultado de um desenvolvimento de décadas e, sobretudo como interações do pensamento e das visões de Hans Mersmann sobre as bases de rigor filológico e diplomático-documental da tradição de J. Wolf. Ela caracterizava-se pelo significado dado à análise de contextos para a obtenção de uma imagem histórica, sendo esta modificável ou fluente, pois a sua focalicalização dependia do posicionamento do pesquisador: do seu enfoque da imagem obtida através de análises de contextos, da música em elos e relações.


O pensamento de Maria Augusta A. Barbosa, ainda que plausível, é, êle também produto de uma época e de um contexto, sendo assim apta a ser modificada e desenvolvida, tornando-se consequentemente ponto central dos diálogos e das conferências levadas a efeito em Colonia a partir de 1975.


Projeções e interações entre a imagem do estudado e auto-imagem


No capítulo final do seu trabalho, onde trata do significado de Vincentius Lusitanus para a História da Música em Portugal, a sua atenção dirige-se ao caráter de Lusitanus. Dá prosseguimento aqui aos dados transmitidos na literatura mais antiga, acentuando agora os seus traços de personalidade e caráter.


Sobretudo pareceu-lhe ser importante ter sido êle um homem que defendia com ênfase e empenho as suas convicções. Segundo ela, mostrava-se como uma pessoa que sabia exatamente o que queria e que valorizava o seu próprio trabalho.


Para essas conclusões, partiu sobretudo de uma declaração escrita com um julgamento sobre a Disputa em que esteve envolvido. Numa proposição de Nicola Vicentino, nenhum músico sabia qual o gênero ou modo que determinava a música de então, uma vez que nela poder-se-ia observar a mistura de todos os três gêneros. A resposta de Lusitano foi decidida, dizendo que podia afirmar em nome de todos os músicos que estes sabiam reconhecer o pertencimento de cada peça a um determinado gênero. A prontidão para o combate, que ocorreu a seguir durante a disputa, a sua posição em situações difíceis, poderia ser vista segundo ela também no fato de, mais tarde, querer falar pessoalmente com o duque de Württemberg em lugar de enviar um mediador.


Para Maria Augusta A. Barbosa, nesses e em outros pontos manifestava-se uma certa consciência de si de Vicentius Lusitanus. Esse seria o caso do julgamento da própria obra. Na dedicatória da coleção de motetos a D. Dinis de Lencastre, seria possível perceber que Vicentius Lusitanus salientava o valor de suas próprias composições, um auto-louvor que apenas estaria mitigado pelas expressões de cortesia e discreção.


No Tratado de Paris Esp. 219, V. Lusitanus expressou-se com a mesma auto-consciência. Essa posição, segundo a M.A.Alves Barbosa, coincidia com as características dos Oliventinos que tratara no livro. Também a soberania com a qual Lusitanus expõe a sua doutrina teórica, a clareza de sua ordenção e idioma testemunhavam ser êle um homem de espírito aguçado, de inteligência prática e objetiva.


Terminando a sua dissertação afirmando que a contribuição de Lusitanus para a cultura musical de Portugal e o papel que assume na História da Música do século XVI exigiriam ainda pesquisas mais aprofundadas para serem avaliadas, praticamente relativa o escopo desse último capítulo. As pesquisas já aqui iniciadas teriam prosseguimento em futuro trabalho - e  que infelizmente nunca chegou a ser publicado. Assim, o centro das atenções do capítulo dedicado ao significado de V. Lusitanus para a História da Música residiu apenas no esboço da sua personalidade e do seu caráter.


O leitor atual pergunta-se se esse quadro transmitido por Maria Augusta A. Barbosa do caráter de Vicentius Lusitanus não teria antes refletido os seus próprios valores. Por demais evidentes são as similaridades entre os aspectos positivos da personalidade do músico e teórico do século XVI e aqueles da própria Maria Augusta A. Barbosa. Também ela foi uma mulher que defendia com ênfase e empenho as suas convicções, que sabia exatamente o que queria e que valorizava o seu próprio trabalho, também ela estava sempre pronta para o combate, a manter-se firme em situações de disputa e na sua coragem de ir dirigir-se diretamente a instâncias, sem mediadores, manifestando a sua auto-consciência. Também ela tinha espírito aguçado, de inteligência prática e objetiva.


Se a influência de Mersmann foi particularmente marcante em Maria Augusta A. Barbosa, a do seu mentor, Karl-Gustav Fellerer, não pode ser também esquecida. Fellerer caracterizava-se como professor como aquele que traçava grandes panoramas, grandes contextos, sendo um dos poucos que discorriam livremente nas suas preleções, estabelecendo continuamente e de memória pontes e relações entre fatos, personalidade e situações.


Como uma extraordinária produção, Fellerer não podia naturalmente satisfazer totalmente as exigências de Maria Augusta A. Barbosa quanto a citações pormenorizadas de fontes e à precisão rigorosa recebida de sua formação de J. Wolf. À fertilidade produtiva de Fellerer - constatável nas suas numerosas publicações - opunha-se a extrema economia de Maria Augusta A. Barbosa quanto a editar textos.


Fellerer surgiu para ela como exemplo sobretudo pela sua capacidade de organizador, pela sua aptidão político-universitáriade valorização e  institucionalização da Musicologia como disciplina à altura de outras áreas das Ciências Humanas.


Foi sobretudo Fellerer, como mencionado, que a motivou a tudo fazer para estabelecer de fato um Departamento de Ciências Musicais em Universidade portuguesa, sugerindo-lhe caminhos com base na sua própria experiência na institucionalização da Musicologia na Alemanha.


Proximidade a círculos evangélicos da pesquisa


Talvez a relativa distância a este seu mentor que se podia constatar em Maria Augusta A. Barbosa se explique pelo significado que a confissão religiosa desempenhou na vida e na política acadêmica alemã.


Fellerer era uma dos mais exponentes dos musicólogos católicos, e Maria Augusta A. Barbosa tinha sido marcada na sua formação alemã por musicólogos evangélicos, sendo evangélicos tanto J. Wolf quanto H. Mersmann. É significativo, assim, que entre os professores do Instituto de Colonia, Maria Augusta A. Barbosa mantivesse mais estreitas relações de amizade com H. Hüschen, também êle evangélico, também êle com ela compartilhando interesse por tratados medievais e questões teórico-musicais.


Apesar de manter vínculos com a Abadia de Solesmes, fato compreensível considerando-se o significado dessa abadia beneditina para a Paleografia, Maria Augusta A. Barbosa sempre manteve uma certa distância relativamente a musicólogos por demais relacionados com o Movimento Gregoriano - na Alemanha e em Portugal - ou com musicólogos e etnomusicólogos por demais próximos a esferas de fomento da religiosidade ou da missão.


Ainda que sempre reservada quanto a questões religiosas, pode-se notar que Maria Augusta A. Barbosa nunca esteve no instituto de pesquisas da organização pontifícia de música sacra em Maria Laach e não participou de eventos como o Congresso Internacional de Música Sacra em 1981, em Bonn. Ela recebeu os delegados dessa organização que passaram por Lisboa a caminho do Brasil para o Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira" a pedido do editor desta revista e em nome do programa então em andamento de criação de instituto no Brasil que desenvolveria os seus trabalhos juntamente com o Departamento que fundara na Universidade Nova de Lisboa. Ela participou no congresso de 1992 no Rio de Janeiro como convidada do ISMPS e da Sociedade Brasileira de Musicologia, não de organizações eclesiásticas relacionadas com o III Simpósio de Música Sacra e Cultura Brasileira que paralelamente aconteceu.


História da Música, música prática e "mentalidade conservatorial"


Apesar de ter vivido na Alemanha por décadas, absolutamente integrada e reconhecida no meio universitário, Maria Augusta A. Barbosa nunca perdeu os elos espirituais e afetivos com Portugal, a ponto de, próxima já da idade de aposentadoria, ter tomado a ousada decisão de retornar, procurando realizar o ideal que sempre acalentara: o da criação de uma instituição dedicada ás Ciências Musicais em universidade portuguesa.


Em carta de 11 de março de 1978, anunciando a publicação de sua tese, menciona as dificuldades que encontrou ao reintegrar-se como professora de História da Música no Conservatório Nacional de Lisboa, sobretudo por falta de livros de história da música em português que correspondessem a seus enfoques, o que a obrigava a escrever ela própria textos de estudos. Nesses textos, procurava adptar os temas que ensinava "à mentalidade dos alunos do Conservatorio, mais voltados para a música prática do que para estudos de caracter especulativo".



Essa carta exprime de modo exemplar a posição da pesquisadora portuguesa quanto às relações entre a música prática e a musicologia, uma vez que nelas via uma questão de diferentes mentalidades.


Se a pesquisadora, sobretudo devido á influência de Mersmann, era interessada, aberta e sensível relativamente à prática musical e reconhecia o significado da prática e da realidade sonora para o estudo musicológico, o que se refletia no seu próprio pensamento, fazia por outro lado uma clara distinção entre uma "mentalidade conservatorial" e uma outra científica, o que a levava tanto a lutar pela inclusão da Pesquisa Musical na área das Ciências Humanas.


Sabendo das horas que passava em arquivos e bibliotecas, não podia entender como musicológos pudessem coadunar uma carreira de pianistas, organistas ou regentes com a de pesquisadores. Ela não apenas guardava dúvidas como também temia a entrada de uma "mentalidade conservatorial" por vias indiretas na Pesquisa Musical através de músicos práticos que, para fins de obtenção de títulos, alcançavam o seu doutoramento em algum instituto de Musicologia alemão menor, daqueles que consideram apenas uma de suas áreas, por exemplo da Musicologia Histórica. Titulados, tinham acesso à carreira universitária, permaneciam, porém, artistas no coração e na "mentalidade".


"Vi cair projectos, niveis de ensino, orientações de trabalho... Ví singrar a mediania..."


O sucesso alcançado por Maria Augusta A. Barbosa com a instalação do Departamento de Ciências Musicais da Universidade Nova de Lisboa foi de curta duração. Preparou-a no Instituto de Musicologia de Colonia, tendo dali escrito a várias instituições européias para a comparação de tipos de inserções no sistema universitário e programas.


Essa correspondência foi acompanhada de perto pelo editor desta revista, uma vez que servia para o projeto de instalação do instituto idealizado para o Brasil. Este instituto devia trabalhar, segundo os planos em estreita cooperação com o Departamento português.


Em 1982, realizou-se um encontro com Maria Augusta A. Barbosa, já então em Lisboa, para a visita das instalações e a tomada de conhecimento do início das atividades. Já então constatou-se, porém, dificuldades que ali surgiam, pessoais e, sobretudo, quanto a concepções. Somando-se a essas dificuldades com aquelas encontradas no Brasil, o projeto de ereção de institutos em faculdades de Ciências Humanas nos dois países foi sendo abandonado, amadurencendo então o plano de fundação e registro do ISMPS na Alemanha.


A correspondência de Maria Augusta A. Barbosa revela a luta que teve de enfrentar em muitas ocasiões, os dissabores por que passou e as múltiplas atividades que foi obrigada a desempenhar em fase já adiantada da vida.


Atingindo o limite de idade, foi forçada a encerrar as suas atividades na universidade, ainda que o Ministério da Educação já tivesse dado parecer favorável à continuação.


Em carta de de 19 de novembro de 1984, no contexto da troca de correspondência para a fundação do ISMPS e.V. que se daria em 1985, apresentou um quadro negro da situação, vendo sobretudo o prevalecimento de pesquisadores que não estariam ligados por elos especiais de nascimento, amizade com o país e com a instituição.



Mesmo assim amargurada, M.A.Alves Barbosa nunca perdeu a sua energia para investigações, não só dando continuidade aos estudos dedicados a Vicente Lusitano, mas também desenvolvendo um projeto de uma história da música em Portugal na Idade Média e no Renascimento, intentos estes que, infelizmente, não levaram a publicações.


Já na carta que se seguiu, de 16 de dezembro de 1984, quando foi-lhe solicitado um artigo para publicação que estava sendo preparada, mencionou que esses projetos se atrasariam, como sempre aconteceu com os seus planos devido ao rigor com que conduzia as suas pesquisas de arquivos, onde "sabe-se quando se entra, mas não se sabe quando se sai".

Em carta de 28 de Março de 1986, Maria Augusta A. Barbosa entra em mais pormenores a respeito dos seus amplos projetos, alguns integrando o seu plano de estudos e investigações, salientando-se aqui uma biografia de Mário de Sampayo Ribeiro, outros visando a orientação de um Curso Livre na Universidade Internacional, vinculada à Universidade Gama Filho do Rio de Janeiro, e a criação, na Universidade de Coimbra, de um mestrado em Ciências Musicais, englobando este a edição de uma revista.

Carta de 3 de Junho desse ano transmite a recuperação do otimismo que a caracterizava na Alemanha. As suas palavras indicam que estava muito bem informada a respeito da vida dos antigos colegas alemães, que acompanhava criticamente o desenvolvimento politico internacional e que estava satisfeita com a sua vida em casa rodeada de árvores.





A menção à casa onde residia relacionava-se com o fato de ter o editor desta revista sugerido que viesse para a Alemanha, onde poderia trabalhar em instituto localizado em região idílica, o que, pelo que tudo indica, feriu-a no seu orgulho.


A negativa a esse convite veio na carta de 5 de julho do mesmo ano, onde Maria Augusta A. Barbosa alegava ter idade já por demais avançada. Também voltava a salientar que morava nos arredores de Lisboa, muito perto do mar, na foz do rio Tejo, não sentindo necessidade de mudar de ares.




Na mesma carta, dizia ter recebido convite de duas universidades particulares, de Lisboa, para em cada uma delas reger uma cadeira de Ciências Musicais, numa com o objetivo de se fornecer uma cultura musical mais completa a professores do ensino secundario, na outra com a finalidade de dar uma preparação na área a alunos de Licenciatura em Ciências Históricas.


A 7 de Agosto, porém, dizia estar arrependida de não  ter aceito o convite para vir atuar na Alemanha, Após ter escrito a última carta, várias alterações haviam-se dado e motivos vários a levaram a recusar a cadeira de opção "Correntes da História da Música" na Universidade Livre de Lisboa.


Na outra Universidade, Internacional, que estaria ligada à Gama Filho, os planos corriam bem, mas era em geral difícil encontrar compreensão para o estudo científico da música em Portugal.


Também recusara uma colaboração em mestrado na Universidade de Coimbra. O trabalho seria intenso e absorvente, não só com aulas de pós-graduação, como também com a orientação das teses. A Universidade apenas pagaria as viagens e a instalação. A Universidade não colocava à disposição um único funcionário, o que significaria que teria que juntar à profissão de professor a de escriturário e datilógrafo.


Nessa mesma carta, dava sugestões para o trabalho do ISMPS.



Na carta de 24 de agosto de 1990, confirmava o que já havia informado por telefone quanto à  realização de um Mestrado em cultura brasileira sob a direção do Prof. Veríssímo Serrão, diretor da Seção de História Moderna e Contemporânea no Departamento de Ciências Históricas da Faculdade e Presidente da Academia Portuguesa de História. Da Academia fizera parte o historiador brasileiro Pedro Calmon (1902-1985), com o qual tinha mantido contatos. Pensava em requerer auxílio da Embaixada do Brasil para a obtenção de livros e gravações e havia estado na Alemanha do Leste, onde participara em Congresso em Dresden.


Uma pessoa romântica por detrás das aparências? Encontro no Convento dos Capuchos


Maria Augusta A. Barbosa não foi apenas aquela pessoa reservada e fria à primeira vista, aquela que se revelava a seguir como impulsiva, temperamental e condutora, marcada por um cuidado quanto ao rigor e à precisão documental e de escrita, preocupada como intelectual e como professora com problemas historiográficos e estéticos de uma cultura musical compreendida na sua vitalidade, como vida nas correntezas históricas, mas também uma pessoa que revelava surpreendentemente uma tendência ao Romantismo.


Esse aspecto quase que desconhecido e inesperado de sua personalidade manifestava-se na satisfação que demonstrava na visita de locais, paisagens e monumentos marcados por tradições históricas e ruínas. Quando organizou um encontro para a discussão de assuntos relativos ao ISMPS, em Lisboa, escolheu, entre outros locais, significativamente o Convento dos Capuchos -   o Convento de Santa Cruz da Serra da Sintra em São Pedro de Penaferim. Nesse ambiente, discorreu sobre D. João de Castro (1500-1548).



Participação no II Congresso Brasileiro de Musicologia no Rio de Janeiro, em 1992


Convidada para participar no Primeiro Congresso Brasileiro de Musicologia, realizado em São Paulo, em 1987, Maria Augusta A. Barbosa apenas via a possibilidade, pela situação financeira do país, de preparar um trabalho, não de estar presente.


Quando convidada a viajar ao Rio de Janeiro, para o II Congresso Brasileiro de Musicologia, em 1992, apesar da sua já avançada idade, aceitou-a, sem maiores receios pela longa viagem.


Chegando o vôo com horas de adiantamento, ficou aguardando por longo tempo só à entrada do aeroporto para ser acompanhada ao hotel, mantendo a sua disciplina, auto-controle e dignidade. Apesar do cansaço da viagem, das circunstâncias e do calor, demonstrou a sua inquebrantável energia ao pronunciar, logo no dia seguinte, a conferência inaugural do evento e ler discurso enviado pelo Prof. Dr. Veríssimo Serrão.


A proximidade ao pensamento de Mersmann explica em grande parte o para muitos surpreendente entusiasmo de Maria Augusta A. Barbosa perante tentativas de reconstrução de realidades sonoras demonstrado em concerto de conjunto de instrumentos antigos no âmbito do Congresso realizado no Rio de Janeiro, em 1992, quando chegou a subir ao palco para cumprimentar os membros do conjunto de instrumentos antigos de Niterói.


Nessa ocasião, demonstrou mais uma vez o relacionamento entre a sua preocupação em estudar contextos nos quais se inserem vultos e obras e valorizar tentativas empáticas de  músicos de deslocar-se ao passado através de recursos vários - a "ambientação" já há tanto defendida no Brasil.  Esta implica em estreito relacionamento dos estudos históricos com outras disciplinas, em particular também com aquelas de orientação primordialmente empírica, além de abertura para experimentações performativas.




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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (ed.)."Uma mulher como personalidade-chave despede-se. Aproximações a seu caráter, proceder científico e pensamento a partir de seus mentores alemães e antecessores portugueses".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 148/3 (2014:2). http://revista.brasil-europa.eu/148/Maria-Augusta-Alves-Barbosa.html