Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 149/4 (2014:3)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3101



Igreja, Pesquisa e Política Cultural
Reformas eclesiásticas e legislação litúrgico-musical nas suas repercussões
e seus problemas para a ciência e para o Estado

Focalizando José Maurício Nunes Garcia (1767-1830) e Heitor Villa-Lobos (1887-1959)
Vigência atual de problemática tematizada no Palácio dos Bandeirantes (1981)
em interações com Cleofe Person de Mattos (1913-2002)  e Eleazar de Carvalho (1912-1996)



Este texto deve ser compreendido à luz do escopo geral dos trabalhos divulgados na Revista Brasil-Europa do corrente ano. Estes são voltados a balanços e revisões de caminhos, a reconscientizações de objetivos e a análises do programa de interações que teve o seu início em 1974. (Veja)


Esses números da Revista consideram sobretudo decorrências das décadas de 70 e 80 do século passado, caídas no esquecimento ou desconhecidas. Procuram contribuir a reaprumos, ao reconhecimento de possíveis desvios e a que se evitem repetições de idéias, projetos e iniciativas de um desenvolvimento da história recente que já é há muito marcado por interações internacionais.



 

Em Evangelii Gaudium, promulgado a 24 de Novembro de 2013, o papa Francisco salienta já no primeiro ano do seu Pontificado que não se aceita o argumento restritivo que a Igreja deve ocupar-se exclusivamente de assuntos religiosos. No mesmo documento, diz que o diálogo com as ciências é bem visto e possível, desde que os cientistas não ultrapassem a sua esfera de conhecimentos, fazendo da ciência ideologia. (IV, 242 e 243)


Esse posicionamento traz à memória um conjunto de problemas que muito preocupou pesquisadores voltados a questões culturais no Brasil na década de 70 e que constituiu o verdadeiro escopo do evento que devia unir instituições e representantes de diferentes áreas dos conhecimentos, de tendências eclesiásticas e da política cultural na sua discussão: o Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira" de 1981.


Recordar essas preocupações e o objetivo desse maior evento até hoje realizado no gênero na América Latina surge como uma necessidade perante o pronunciamento pontifício, para que não haja repetições de argumentos e retrocessos nas reflexões, possibilitando de forma adequada a consideração dos impulsos que partem de Roma.


Não se pode suficientemente salientar que o evento então realizado em São Paulo teve pressupostos científico-culturais e musicológicos, unindo-se estes a intuitos de contribuir a uma fundamentação de ações político-culturais a partir de um amplo debate interdisciplinar, eclesiástico e civil, de religião e ciência. Desenvolvimentos e mesmo instrumentalizações por que passou durante a sua organização, realização e em publicações que o seguiram não devem encobrir a real história do seu vir a ser e dos sues objetivos.


Na sua concepção e programação, o evento foi resultado de um complexo de preocupações que levou ao programa de interações internacionais preparado no Brasil e que passou a ser desenvolvido na Alemanha a partir de 1974. (Veja)


Foi, no seu sentido mais específico, resultado dos estudos desenvolvidos pelo editor desta revista, uma vez que foi por êle iniciado em sequência a trabalhos que levaram à sua dissertação, o que explica que a maior parte das obras executadas tenha sido levantada em pesquisas para tal desenvolvidas. Tendo sido eleito em 1980 pela assembléia reunida no IX Congresso Internacional de Música Sacra em Bonn e Colonia a Consiliarius da organização pontifícia de música sacra, pareceu-lhe necessário, juntamente com outros brasileiros participantes do evento que sentiram deficiências e unilateralidades nas concepções de especialistas europeus, preparar a realização de um simpósio de grandes dimensões no Brasil. (Veja)


Repercussões de reformas litúrgico-musicais na vida cultural no Brasil e na Europa


Nesses estudos precedentes, considerou-se, em dimensões internacionais, as profundas consequências trazidas pelo movimento de reforma ltúrgico-musical da época do Historismo europeu do século XIX e cristalizados oficialmente no Motu Proprio de Pio X para o desenvolvimento histórico-musical sobretudo de países católicos, da criação musical, da visão e julgamento de processos históricos e, em geral, da vida cultural e sobretudo musical de inumeráveis comunidades de todo o mundo.


Procurou-se, em pesquisas levadas a efeito em Roma e em regiões européias com grande tradição de música sacra com acompanhamento instrumental, em particular na Baviera e na Áustria, verificar se também o combate à música sacra com acompanhamento instrumental promovido pelo Cecilianismo e outros movimentos haviam levado à destruição de repertórios, práticas, conjuntos instrumentais e vocais, com marginalização e desqualificação de compositores e obras em dimensões comparáveis àquelas do Brasil, um dos principais problemas tematizados no programa iniciado na Europa em 1974. (A.A.Bispo, ◦"O século XIX na pesquisa histórico-musical brasileira: Necessidade de sua reconsideração". Latin American Music Review/The University of Texas 2/1 (1981), 130-142).


O reconhecimento da necessidade de uma reconsideração do século XIX na pesquisa musical brasileira coincidiu com um interesse renovado na pesquisa musicológica da Alemanha pelo século XIX em geral, sendo uma de suas expressões um projeto voltado às Culturas Musicais da América Latina. (Veja)


Análise de problemas do passado em época de reformas que seguiram ao Vaticano II


O desenvolvimento desses estudos processou-se em época marcada por uma nova transformação fundamental da ação eclesiástica resultante do Concílio Vaticano II, caracterizada por mudanças de posições e orientações que surgia como uma nova cisão na continuidade de desenvolvimentos.


Se a reforma litúrgico-musical remontante ao século XIX e marcada pelo Motu Proprio de Pio X havia levado à destruição de estruturas da prática musical, de repertórios e documentos, ao silenciamento de nomes e obras do passado coro-orquestral de séculos, a nova reforma eclesiástica destruia estruturas da prática musical construídas desde então, dedicadas sobretudo ao Gregoriano e à Polifonia, tornando superadas instituições e publicações, levando ao esquecimento também aqui de nomes e obras.


O panorama que se obtinha nos meios voltados à pesquisa músico-cultural e à vida musical era assim enegrecido pela constatação de ondas destrutivas de patrimônio cultural e de fontes para os estudos de extraordinárias dimensões, incluindo atos de vandalismo em diferentes graus, não só de altares de antigas igrejas, mas também do patrimônio musical: primeiramente de orquestras e coros mixtos de antiga tradição e agora de órgãos, assim como de arquivos, deixando atrás de si apenas vazios e empobrecimento.


Essa visão dos desenvolvimentos não era recente, remontando a meados da década de sessenta no contato com círculos musicais que haviam ainda mantido a antiga tradição do século XIX em São Paulo, em São João del Rei e outras cidades de Minas Gerais, em Santo Amaro da Purificação na Bahia e em outras cidades. (Veja) Esses trabalhos tinham demonstrado as complexas dimensões dessas tensões entre tradição e inovação, de continuidade e descontinuidades que, remontantes à cisão resultante da reforma litúrgico-musical do século XIX e do Motu Proprio, atingia agora uma nova fase com as reformas do Concilio Vaticano II. (Veja)


Problemas teórico-culturais no campo de tensões entre conservação patrimonial e renovação


Constatou-se, porém, no decorrer das interações, um outro problema de graves consequências e que prejudicava o tratamento adequado dessas questões. Aqueles teólogos, músicos de igreja e musicólogos católicos preocupados com a perda de patrimônio cultural com as reformas resultantes do Concílio, não querendo colocar em questão o próprio conclave, partindo antes de uma interpretação particularista de documentos e inadequadas ações em nome de um espírito do Concílio, concentraram os seus esforços de manutenção do patrimônio à Europa, dirigindo as atenções reformadoras aos países extra-europeus, considerados sob a perspectiva da Missiologia e da Etnologia.


Tornava-se necessário, assim, inclusive e sobretudo sob o aspecto científico-cultural, trazer à consciência desses especialistas que países como o Brasil contavam com um passado de séculos de cultura fundamentalmente marcada pelo Catolicismo, com um patrimônio diversificado de obras criadas em diferentes contextos epocais e expressões festivas de remotas origens. Ao mesmo tempo, devia trazer à consciência que não só as ações devastadoras causadas pelo movimento restaurador do passado e as reformas recentes deviam ser consideradas, mas sim também o fato de que também as posições de teólogos e especialistas em questões culturais na Europa contribuiam a essa dilapidação da riqueza patrimonial, a um extraordinário empobrecimento.


A Igreja, que desencadeou processos de transformação cultural dos indígenas desde os primeiros momentos do Descobrimento, que criou e fomentou estruturas da vida religioso-cultural, irmandades e igrejas como centros do cultivo sacro-musical, de diversificadas expressões tradicionais do calendário religioso, não podia fugir da sua responsabilidade quanto à vida cultural e musical de inumeráveis localidades, mudando orientações de tão graves consequências, montando e desmontando estruturas da prática cultural e musical, e até mesmo impedindo expressões tradicionais do repertório lúdico popular que fomentara no passado.


As preocupações teórico-culturais do programa preparado no Brasil e desenvolvido na Alemanha a partir de 1974, ampliadas com os desenvolvimentos na esfera sacro-musical e que alcançaram o seu ápice no Congresso Internacional de Música Sacra de Bonn de 1980, tinham assim dimensões político-culturais, uma vez que traziam à consciência os problemas causados pelas contraditórias reformas eclesiásticas para iniciativas voltadas à cultura oficiais e particulares e para uma organização e otimização sistemática e refletida da vida cultural de cidades e bairros, de proteção patrimonial e de arquivos.


Desenvolvimentos na Europa e o Movimento Coral do Estado de São Paulo


Eleazar de Carvalho 1981
Essas preocupações e o plano do evento a ser desenvolvido vieram de encontro a necessidades sentidas pelo Movimento Coral do Govêrno do Estado de São Paulo, que representava uma nova e dinâmica fase dos anelos de promoção coral de já longa e diversificada história. (Veja)


A sua coordenadora, Neide Rodrigues Gomes, era a diretora da instituição que estivera estreitamente envolvida na preparação do programa de interações iniciado na Alemanha em 1974. (Veja)


A 8 de Agosto de 1979, ela comunicava ao editor os seus novos encargos no movimento:


"Fui convidada pela Secretaria de Cultura para coordenar junto com o Jonas (Christensen) o Movimento Coral do Estado de São Paulo e estou tentando junto às autoridades da Secretaria da Educação o envolvimento da mesma, e espero com essa atitude fazer voltar a música à escola, mesmo que seja apenas por reação ou lazer. (...) Durante o mês de Julho viajei por todas as capitais regionais, levando o lançamento do Movimento Coral. Foi para mim uma experiência nova e diferente, pois andei mai de 5 mil quilometros em nosso Estado.

Fizemos no mês de Junho o 2° Festival de Corais do Instituto Musical de São Paulo, e contamos com a presença de quase trinta corais, com os melhores regentes e com a participação de quase 1800 coralistas. Na terceira semana de Julho, estive em Campos do Jordão para um Seminário com Robert Shaw sobre Regência Coral, foi realmente sensacional, pois além dos conhecimentos especí´ficos de música, êle tem um grande magnetismo pessoal e consegue envolver as pessoas de uma maneira incrível. Para ter ideia, êle conseguiu em apenas uma semana preparar um repertório de nove spirituals, uma peça de Bach, a Sinfonia dos Salmos (3° movimento) e a Missa em Sol M de Schubert; e o resultado final foi realmente muito bom."


Importante momento nas interações internacionais que precederam o Simpósío de 1981 foi a visita do Papa João Paulo II ao Brasil e as reflexões que então foram encetadas relativas à configuração musical de celebração em Aparecida.


A 13 de março de 1980, a coordenadora do Movimento Coral do Estado escrevia:


"Na Secretaria da Cultura estou como coordenadora do Movimento Coral do Estado, e ajudando o Secretário numa porção de coisas. Falei com o Secretario, e se você me convidar oficialmente para o congresso (IX Congresso Internacional de Música Sacra em Bonn), talvez eu possa ir representando a Secretaria da Cultura.


Estou também preparando a parte musical para a visita do Papa em Aparecida. Se voce tiver alguma sugestão a fazer eu gostaria muito. Estamos pensando talvez em André da Silva Gomes, mas o Jonas (Christensen) está´querendo também uma obra sacra polonesa, que fosse conhecida do Papa, e se você puder ajudar, já estou agradecendo.


Para a visita do Papa, estamos pensando em trazer um coral de cada região administrativa para que o Estado inteiro se faça representar".


Em 15 de abril de 1980, esta carta era respondida:


"Quanto à visita do Papa, acho ótima a ideia de se executar uma obra de André da Silva Gomes. Talvez fosse possível tambem incluir obras do Pe. José Maurício ou de algum mineiro. Para a missa solene creio, entretanto, que o melhor seria uma missa de um compositor à altura de Villa-Lobos, pelo seu renome internacional. (...) A música deve ser, a meu ver, de um compositor brasileiro e de alto nível. Não acho boa a idéía de executar-se obra polonesa (...) Precisamos, sim, de uma obra brasileira representativa."


Exatamente um ano após esta carta, no dia 15 de abril de 1981, já estando assegurada a realização do Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira" em São Paulo, o editor escrevia à coordenadora do Movimento Coral:


"acabo de chegar de Roma, uma viagem muito produtiva. A situação é a seguinte: a resposta da CNBB ainda não chegou, mas não creio que será negativa. (...) A repercussão no Vaticano foi a melhor possível. Já contactamos vários especialistas, muitos de renome internacional. Você seráconvidade para vir aqui tratar da organização na terceira e quarta semana de maio. A passagem de avião será enviada com antecedência. O livro já está na tipografia do Vaticano; será feito todo o possí´vel para que êle esteja pronto até´o Simpósio.


Creio que será uma realização muito positiva para todas as partes. (...) Os nomes que você me indicou por telefone como regentes dos concertos já garantem a qualidades das apresentações. Aqui vão algumas questões: 1) (...) Quais são as obras do século XIX no repertório que poderiam ser aproveitadas? A de D. Pedro I, por exemplo, certamente. Vou enviar a você cópias das Matinas de José Maria Xavier para que tenhamos um mineiro no programa. A da missa de Carlos Gomes preciso fazer as partes, 2) Para o concerto de música nacional deveria ser incluida a Missa Vidapura de Villa Lobos, que existe impressa, assim como uma obra de Camargo Guarnieri, talvez em primeira audiçãõ. Você não poderia perguntar-lhe o que êle quer que seja executado? 3) Grande problema é o da música contemporânea. Seria importante que incluissemos obras significativas, talvez a missa de Lindenbergue Cardoso, que acho que foi executada por ocasiãõ da visita do papa e que tem acompanhamento de atabaques (?). (...) 4) Você já poderia entrar em contato com a TV Cultura para transmitir algumas apresentações? E com a BASF para gravar discos? Seria uma oportunidade ótima para se fazer uma sé´rie de discos de toda a historia da músíca sacra no Brasil."


Em 19 de julho, comunicou-se ao Movimento Coral do Estado o estado dos preparativos realizados na Europa:


"O Simpósio vai ser anunciado no Osservatore romano, já mandei material. Também as primeiras provas para editar a programação inteira na revista da CIMS em agosto já está´pronto. A revista será mandada para as principais escolas superiores de música e a institutos de musicologia, sendo provavelmente o evento divulgado por outros órgãos e publicações de música.


Já enviei 200 convites para o clero no Brasil. Também vamos convidar daqui todas as escolas e conventos de São Paulo. Virá uma carta do Vaticano ao Cardeal de São Paulo através do Núncio Apostó´lico no Brasil. Alé´m do mais, o Papa (se êle melhorar), escreverá um documento para o Simpósio.


Aqui, o Simpósio esta tendo grande repercussão. Já falei com o Secretario da Embaixada, em agosto falarei com o Embaixador para avisar o Itamarati. Sairá um artigo sobre o Simpósio na revista da sociedade Teuto-Brasileira."


Escopo político-cultural do Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira


O projeto, o seu escopo e a sua programação foram expostos pelo editor desta revista em encontros no Brasil, em sequência à viagem da coordenadora do Movimento Coral do Estado à Alemanha, assim como em intensa troca de correspondência. As finalidades do evento foram assim elaboradas e transmitidas a São Paulo, onde, assumidas na sua íntegra, passaram a contar com a autoridade oficial do
Deputado Cunha Bueno, então Secretário de Cultura.



"O Brasil possuiu vida musical altamente estruturada no passado, tendo as igrejas como centros principais de cultivo e irradiação.


A documentação musical dos séculos XVIII e XIX demonstram esse fato, revelando também a existência de famílias de músicos, cujos membros se salientaram como cantores, instrumentistas, mestres e compositores.


Essa organização tradicional da vida musical no Brasil praticamente desapareceu sob a ação dos mais diversos fatores, determinados por transformações sócio-culturais e por medidas reformadoras tomadas pela Igreja com base na legislação litúrgico-musical. Na maior parte dos casos, não houve possibilidade de se reestruturar a vida musical de igreja de forma duradoura e criteriosa, compatível ao mesmo tempo com exigências litúrgicas e artísticas.


Como o processo geral de secularização cultural nas zonas rurais e nos núcleos urbanos menores apenas pode se desenvolver de forma gradual, a vida musical de numerosas localidades ficou reduzida a um restrito exercício doméstico e recreativo da música, centralizada nas corporações de bandas de música. Hoje, através de movimentos de incentivo coral e instrumental, procura-se fomentar a vida musical no interior brasileiro. Entretanto, uma vida musical dirigida poderá apenas ativar mas não substituir uma vida musical organicamente desenvolvida e enraizada na coletividade. Aqui se coloca a questão básica deste simpósio:


Como seria possível - dentre de condições adequadas às exigências da Igreja e à função altamente importante desempenhada pela música sacra nas comunidades - criar-se uma estrutura de vida musical nas igrejas brasileiras que venha a ser pelo menos complementar àquela mantida por entidades seculares, particulares ou oficiais?


A sociedade brasileira apresenta uma constituição plural, sendo formada por grupos humanos das mais diversas origens sociais e culturais. Também do ponto de vista musical parece ser, no presente, uma ação multiforme a mais adequada e viável para se responder às necessidades do povo brasileiro. A música sacra possui, pela sua própria definição, características teológico-musicais precisas, permitindo, porém, musicalmente, variadas possibilidades de estruturação e prática. O desempenho qualitativamente satisfatório das várias possibilidades de exercício da música sacra pressupõe entretanto formação musical específica, exigindo determinadas pré-condições humanas e materiais. O Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira" pretende, na sua primeira parte, apresentar a variedade de correntes e formas experimentada pela história da música sacra no Brasil como fundamento às discussões; na sua segunda parte, dos diversos tipos de exercício musical possíveis nas igrejas brasileiras do presente.


O participante do Simpósio será confrontado com obras de compositores brasileiros de três séculos, abrangendo três fases importantes de nossa histó´ria política: Brasil-Colonia, Brasil-Império e Brasil-República. A vivência das diversas formas e de expressão sacro-musicais do homem brasileiro e a compreensão das diferentes concepções musicais e religiosas próprias a cada época devernao ser facilitadas pela ambientação adequada emprestada às cerimônias litúrgicas e aos concertos, através das igrejas e salas escolhidas. Como um elemento sempre presente, a expressnao musical de nossa religiosidade popular, embora particularmente integrada na programação dedicada ao mundo brasileiro colonial, estará representada também nos dias consecutivos.


Os conferencistas estrangeiros deverão tratar os temas colocados que abrangem de forma sistemá´tica os diversos campos da vida musical de igreja sob dois pontos: 1) Fundamentação e Generalidades do tema a ser tratado e 2) Relato da situação atual no Exterior dentro do campo considerado.


Aos participantes do Simpósio compete a discussão dos pontos levantados em função da realidade brasileira, questionando os temas das diferentes sessões. Espera-se a elaboração de um documento que, resumindo as principais resoluções do Simpósio, possa oferecer ás entidades culturais e às autoridades eclesiásticas e civis sugestões e estrategias de ação que possibilitem atingir as finalidades básicas do evento." (A.A.Bispo, impresso no Programa do Simpósio)


Sessão de abertura e recepção no Palácio dos Bandeirantes


Devido a essa dimensão político-cultural resultante do reconhecimento de uma necessária fundamentação adequada de esforços e iniciativas em estudos e reflexões culturais e musicológicas, compreende-se que a abertura do evento, após missa na Catedral de São Paulo celebrada pelo Arcebispo de São Paulo D. Paulo Evaristo Cardeal Arns (Veja), tenha-se dado na sede do Govêrno do Estado.


Para além das questões político-culturais expressas no próprio programa do evento, a solenidade no Palácio dos Bandeirantes esteve sob o signo do significado e das consequências das reformas e reorientações eclesiásticas para a própria historiografia e os estudos culturais do Brasil,  em particular da música. Esse intuitoi foi considerado a partir de obras de dois vultos exponenciais da música brasileira, o Pe. José Maurício Nunes Garcia e Heitor Villa-Lobos. As execuções ficaram a cargo da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo sob a regência de Eleazar de Carvalho, do Coral Paulistano sob a regência de Samuel Kerr e do Coral Infantil Eco, sob a regência de Teruo Yoshida.


A programação pretendeu trazer à consciência o fato de ter a reforma litúrgico-musical do passado contribuido para uma perspectivação de conotações qualitativas no desenvolvimento histórico-musical do Brasil. Criou não apenas fatos - a mencionada desmontagem de estruturas da prática musical tradicionais, substituição de repertórios e novos critérios estéticos - mas também determinou uma visão histórica que desvalorizou um desenvolvimento próprio do país, desencadeado há séculos e inserido em processos culturais mais amplos.


Vários são os problemas aqui resultantes para os estudos históricos dessa interrupção de um continuum ou desenvolvimento "orgânico", apesar de suas descontinuidades. Em interações de grande complexidade com outros critérios de periodização histórica, também com aqueles segundo a história política, essa perspectivação de desenvolvimentos históricos da restauração litúrgico-musical referenciou-se sobretudo por critérios tridentinos, correspondendo a desenvolvimentos do pensamento restaurativo europeu, procurando assim restaurar um passado que sob muitos aspectos foi anterior, ou nunca houve ou pouco existiu no contexto brasileiro.


Pe. José Maurício Nunes Garcia - relembrado pelos 150 anos de seu falecimento (1980)


Essas questões foram consideradas primeiramente a partir da visão historiográfica do Pe. José Maurício Nunes Garcia e sua obra, visto no Brasil e no Exterior como principal vulto do passado musical entre a fase colonial e o caminho do país á emancipação. A apresentação de uma de suas obras como a primeira do Simpósio devia trazer à consciência os problemas resultantes da perspectiva do Historismo do movimento litúrgico-musical restaurador para uma consideração adequada do desenvolvimento histórico-musical do Brasil no seu caminho entre a situação colonial e o país emancipado.


Se já desde fins da década de 60 salientara-se a impropriedade de expressões como "música colonial" derivadas de periodizações segundo a história política, criando uma cisão sob muitos aspectos artificial na análise de desenvolvimentos do Colonialismo como processo, agora as atenções deviam ser dirigidas às relações desses problemas com anelos restauradores na intensificação que experimentaram no decorrer dos séculos XIX e XX. (Veja)


Os estudos relativos ao Pe. José Maurício Nunes Garcia no âmbito do programa de interações desenvolvido na Europa a partir de 1974 tinham-se desenvolvido à luz das preocupações e reflexões concernentes à reconsideração do século XIX na pesquisa musical. Realizou-se em estreito relacionamento com a pesquisa voltada a Sigismund von Neukomm (1778-1858) desenvolvida em vários centros, sobretudo em Salzburg e Viena. (Veja)


A exigência de uma consideração mais diferenciada do Pe. José Maurício e sua obra nas suas inserções em processos globais havia sido uma decorrência dos esforços de renovação dos estudos culturais do movimento Nova Difusão desde meados da década de sessenta. Essa nova orientação dirigida a contextualizações do compositor e de sua obra na sua dinâmica processual foi discutida em encontros com Cleofe Person de Mattos (Veja), a maior especialista no estudo das obras do compositor, alguns deles levados a efeito no então Museu de Artes e Técnicas Populares da Associação Brasileira de Folclore em São Paulo.


Na Europa, essa discussão foi prosseguida com Francisco Curt Lange durante a sua atuação no mencionado projeto Culturas Musicais da América Latina no século XIX. (Veja) Os trabalhos de difusão e fomento da obra do Pe. José Maurício Nunes Garcia na Europa puderam levar a apresentações de suas obras por coros representativos, como o de Utrecht nos Países Baixos, ou mesmo no repertório de catedrais, como a de Augsburg.


Como ponto de partida para reflexões nesse sentido dos participantes europeus e brasileiros do Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira" publicaram-se em coletânea que deveria servir de introdução às discussões artigos de Cleofe Person de Mattos ("José Maurício Nunes Garcia 1767-1820 - Offices for The Dead: Requiem Masses", Collectanea Musicae Sacrae Brasiliensis, A.A.Bispo et alii, Roma: Urbaniana 1981, 29-42) e do Mons. Guilherme Schubert ("José Maurício Nunes Garcia: Ein dunkelhäutiger Mozart im Brasilien der Kolonialzeit", ibidem 43-46). Este último foi incluido no projeto dedicado a estudos de recepção cultural no Brasil pelas suas atividades junto a acervo da Arquidiocese do Rio de Janeiro e pelas suas origens e formação austríaca, o que possibilitava expectativas de uma maior compreensão para a tradição coro-orquestral do passado brasileiro.


Em encontros voltados a problemas de difusão de obras do Pe. José Maurício Nunes Garcia e recepção recíproca na Europa e no Brasil de correntes musicais tinha-se considerado o desenvolvimento estilístico da sua obra criadora e os problemas que estas levantavam na apreciação musicológica devido às consequências retroativas em avaliações condicionada pelos critérios colocados pelo movimento restaurativo litúrgico-musical de fins do século XIX e início do XX, consciente ou inconscientemente ainda vigentes.


Algumas obras do compositor passavam assim a ter a mácula de uma decadência ou profanização, dificultando a sua aceitação e divulgação por coros e instituições de música sacra no Exterior.


A recapitulação desses problemas de recepção cultural no Brasil - e que não dizem respeito apenas à recepção de obras e tendências estilísticas, mas também de correntes de pensamento que explicavam anacronismos de visões - no contexto solene do concerto no Palácio dos Bandeirantes devia preparar os eventos seguintes do simpósio e, em particular, a assembléia da fundação da Sociedade Brasileira de Musicologia que teria lugar no seu âmbito.


Para o concerto, Cleofe Person de Mattos escolheu as Matinas de Assunção de Nossa Senhora, de 1803, recentemente restaurada, apresentada então em primeira audição. Com a escolha dessa obra, dirigia-se também a atenção a vários complexos temáticos que relacionavam concepções teológicas, histórico-eclesiásticas e musicais. Entre elas, o da tradição do canto das Horas do Ofício e o da devoção mariana na apreciação da linguagem musical do passado sacro-musical com acompanhamento orquestral no Brasil, representada na obra do compositor em várias composições, entre outras nas Vésperas de Nossa Senhora e Tota pulchra es Maria.


Essa discussão, levada a efeito nos anos anteriores na Alemanha, considerava em particular relações de práticas missionárias na América Latina com a legislação litúrgica. Procurou-se aqui estudar em relações pronunciamentos da encíclica Annus qui com documentos pontifícios posteriores, e da necessidade de sua consideração nas suas inserções na história da legislação sacro-musical anterior e de continuidades e diferenças relativamente ao Motu Proprio.


Nesses estudos, contribuiu, em encontros com o editor e no âmbito do programa de interações desenvolvido no Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia (Veja), de forma decisiva o musicólogo Karl-Gustav Fellerer (1902-1984) e, do lado eclesiástico, o Mons. Robert Heyburn, desde 1979 pároco da Igreja de Santa Brígida em San Francisco, autor de fundamental obra sobre legislação sacro-musical (R. F. Hayburn, Papal Legislation on Sacred Music, 1979) e conhecido pelo seu empenho por questões culturais nos trabalhos de fomento da biblioteca da escola der Sisters of Charity of the Blessed Virgin Mary em San Francisco.


A outra obra apresentada no concerto do Palácio dos Bandeirantes devia dirigir a atenção a um outro complexo de problemas historiográficos resultantes do movimento restaurativo e das consequências do seu principal marco, o Motu Proprio de 1903.


Música sacra de H. Villa-Lobos e religião na política educativo-cultural do passado


Se a presença de José Maurício Nunes Garcia como primeiro vulto a ser considerado na abertura oficial do simpósio salientava questões do passado anterior a este documento, Heitor Villa-Lobos devia ser considerado como principal vulto da música brasileira do século XX do período que se seguiu ao documento.


Como o mais conhecido compositor brasileiro no Exterior e tendo marcado como nenhum outro a imagem sonora do Brasil, devia trazer à consciência dos participantes o complexo de problemas relacionados com cisões e interações entre perspectivas e concepções sacro-musicais da tradição restaurativa, de orientação universalista, e aquelas tendências do pensamento e da criação voltadas a uma estética de valorização de expressões nacionais.


A temática mariana que marcou a lembrança de José Maurício teve a sua sequência na escolha do Magnificat-Alleluia de Heitor Villa-Lobos, salientando-se assim as diferenças de tratamento estético de um mesmo conteúdo religioso, estabelecendo-se uma ponte entre diferentes épocas e restabelecendo-se uma unidade acima dos problemas de cisão de visões da história causados pelo Historismo do movimento litúrgico-musical restaurador.


Como obra tardia na criação de Heitor Villa-Lobos, o Magnificat-Alleluia, composto poucos anos antes do Concílio Vaticano II, devia salientar também os problemas que surgiam com as mudanças de concepções condicionadas pelas reformas conciliares. Todo um passado recente, - mesmo aquele de música religiosa não necessariamente destinada ao culto, mas primordialmente a apresentações em forma de concerto-, passava a surgir sob o signo de um passado superado.


Música sacra no Brasil em processos político-culturais continentais - os EUA


Concomitantemente, a obra de Villa-Lobos devia trazer à memória que os desenvolvimentos histórico-musicais do Brasil nas suas relações com as reformas eclesiásticas não deveriam ser considerados exclusivamente nas suas inserções de movimentos europeus, mas sim também continentais americanos.


Os Estados Unidos foi uma das nações mais marcadas pelo movimento restaurador, com grandes instituições de ensino sacro-musical nessa tradição e cujas normas influenciaram correntes do pensamento teológico e cultural, em particular da pesquisa musical.


Critérios decorrentes da legislação sacro-musical anterior ao Concílio determinaram concepções relativas à música sacra em universidades e centros de prática litúrgico-musical, compreendendo-se, assim, que teólogos e estudiosos americanos se mostrassem particularmente preocupados com preservação do patrimônio perante os desenvolvimentos desencadeados pelas reformas conciliares e desempenhassem papel significativo no movimento de cunho conservador europeu de meados da década de setenta, intensificado com o início do pontificado de João Paulo II.


Justificava-se, assim, a presença dos EUA através de representante da Church Music Association no simpósio de São Paulo, de um dos mais destacados especialistas em hinologia e música sacra em geral, Dr. Robert Skeris, personalidade que sempre demonstrou particular abertura, simpatia e empenho quanto ao estreitamento de laços com o Brasil. Para além da presença do presidente da organização pontifícia de música sacra, Mons. Johannes Overath, o grupo dos participantes estrangeiros incluia um dos mais renomados especialistas em Direito Canônico e legislação eclesiástica, Prof. Dr. Winfried Schulz, Professor da Universidade de Paderborn.


A Etnomusicologia européia esteve representada sobretudo pelo Prof. Dr. Josef Kuckertz, então já na Universidade Livre de Berlim. Entre aqueles que se empenharam na realização do evento da parte do movimento coral de São Paulo devem ser lembrados Eleanor Dewey, Dr. Manoel Franceschini, especialista em questões de legislação como Procurador do Estado e filho do maior representante da música sacra anterior ao Concílio no Brasil - o antigo mestre-capela da Catedral de São Paulo Furio Franceschini (1880-1976) - e o regente José Zula de Oliveira.


Do ponto de vista da vida musical, o contexto norte-americano nas suas relações com o desenvolvimento musical brasileiro e com as interações resultantes da participação de brasileiros na vida musical dos EUA foi marcado pela atuação de  Eleazar de Carvalho (1912-1996), tendo este assumido a direção musical do concerto inaugural do simpósio.


Poucas personalidades podiam ser mais adequadas que Eleazar de Carvalho para o tratamento de interações músico-culturais entre o Brasil e Estados Unidos e, em particular, da obra de Villa-Lobos, tão valorizada no meio musical e universitário americano. Transferindo-se em 1946 para os Estados Unidos, tendo estudado regência com Segey Koussevitzky (1874-1951) no Berkshire Music Center em Tanglewood, Massachusetts, tornando-se seu assistente e maestro convidado da Orquestra Sinfonica de Boston, e, posteriormente, seu sucessor como professor de regência, tinha sido professor de regência na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Como regente da Orquestra Sinfônica Estadual de São Paulo e pelas suas atividades nos Festivais de Campos de Jordão, surgia como personalidade ideal para o tratamento de questões voltadas à política músico-cultural a partir de uma perspectiva de regente.


A consideração de Heitor Villa-Lobos no concerto de abertura do Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira" serviu para impulsionar estudos relativos a posição da música sacra no conjunto de suas composições, ao papel desempenhado pela religião em geral na sua personalidade e obra, ao da inserção desta no contexto do desenvolvimento sacro-musical do século XX nas suas dimensões internacionais e, sob o aspecto mais amplo, do papel da música religiosa no repertório do Canto Orfeônico na problemática de suas inserções políticas no Estado Novo.


Matéria elaborada por membros do ISMPS, revista e traduzida em versão modificada por

Antonio Alexandre Bispo






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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (ed.). "Igreja, Pesquisa e Política Cultural. Reformas eclesiásticas e legislação litúrgico-musical nas suas repercussões e seus problemas para a ciência e para o Estado".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 149/4 (2014:3). http://revista.brasil-europa.eu/149/Igreja-Pesquisa-Politica.html