Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 149/2 (2014:3)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3099



Lira de Orfeu, Maracatú e Viola
Dimensões antropológico-culturais de um símbolo na valorização de um instrumento caipira
Pesquisas Antiguidade/Cristianismo repercutidas no Embú
em interações com Ascendino Theodoro Nogueira (1913-2002)





Este texto deve ser compreendido à luz do escopo geral dos trabalhos divulgados na Revista Brasil-Europa do corrente ano. Estes são voltados a balanços e revisões de caminhos, a reconscientizações de objetivos e a análises do programa de interações que teve o seu início em 1974. (Veja)


Esses números da Revista consideram sobretudo decorrências das décadas de 70 e 80 do século passado, caídas no esquecimento ou desconhecidas. Procuram contribuir a reaprumos, ao reconhecimento de possíveis desvios e a que se evitem repetições de idéias, projetos e iniciativas de um desenvolvimento da história recente que já é há muito marcado por interações internacionais.



 

Símbolo da música por excelência é a lira. Esse instrumento surge em publicações, monumentos e nos mais diferentes contextos relacionados não apenas com a música, mas com as artes e a cultura em geral. Em inúmeros teatros de todo o mundo pode-se ver o instrumento representado em ornamentações.


Este é o caso do Teatro Municipal de São Paulo, onde a lira é imagem central dos vitrais de seu Foyer nobre. Nestas representações, a lira surge com relacionada com faces humanas com diferentes expressões, trazendo à memória o quanto já eram conhecidos e valorizados os significados desse instrumento nas suas relações com concepções do homem no século XIX e início do XX. (Veja)


Teatro Municipal SPaulo. Foto A.A.Bispo 2004

Esse conteúdo simbólico-antropológico do instrumento remete necessariamente à antiga tradição, em particular àquelas relacionadas com Hermes/Mercúrio, Apolo e, sobretudo, Orfeu.


Uma das obras mais influentes que consideraram as dimensões do mito de Orfeu numa história geral das religiões e das relações simbólico-religiosas na cultura foi a de Théodore Reinach (1858-1932) (Orpheus: Allgemeine Geschichte der Religionen, Viena e Leipzig 1910).


O nome desse arqueólogo, filólogo e estudioso de religiões, relevante do Judaísmo e entusiasta pela Antiguidade helênica, traz à consciência que o pensamento voltado à tradição bíblica e aquele ao mundo grego não se excluem mutuamente.  Pelo contrário, abrem portas para o reconhecimento de interações entre correntes culturais bíblicas e não-bíblicas na própria Antiguidade Estas indicam a reinterpretação de imagens mitológicas segundo referenciais das Escrituras no decorrer da Cristianização ou mesmo a recuperação de sentidos mais profundos já existentes, mas obscurecidos.


Sendo esse processo apenas compreensível a partir da existência de imagens similares subjacentes à narração bíblica, abrem possibilidades para análises hermenêuticas de sentidos mais profundos àqueles que se obtém de uma leitura superficial, literal dos textos das Escrituras. Indicam, assim caminhos para estudos de bases de uma visão do mundo e do homem de mais antigas raízes e dimensões geoculturais para além no tempo de suas expressões na mitologia de diferentes contextos culturais e na tradição escrita do povo israelita.


O motivo da lira não surge apenas no sentido individual como a menção de Orfeu, Apolo e Hermes/Mercúrio pode sugerir, representados em inúmeras obras de arte e em plásticas, mas sim como instrumento-símbolo em sentido coletivo, nos quais as imagens das antigas figuras surgem como personificações de dimensões sociais mais amplas.


No Brasil, conhece-se a lira como símbolo, designação ou mesmo sinônimo de bandas e orquestras, sugerindo em muitos casos de forma manifesta que o próprio conjunto instrumental no seu todo constitui uma grande lira, um só instrumento. Todo o agrupamento de músicos assume assim um significado simbólico, apresentado como imagem para a comunidade que os escuta, na qual os ouvintes, movidos interiormente, passam a participar.


Há, assim, sentidos educativos inerentes à imagem e que valem para todos os instrumentos, para o instrumental em si, para o ato de produzir música de um instrumento. Para isso, torna-se necessária a ação daquele que toca, do instrumentista e que surge no sentido mais amplo considerado como educador e mesmo líder que faz com que o instrumento soe.


Essa linguagem visual é amplamente conhecida no Brasil há décadas, tendo marcado concepções do Canto Orfeônico, as quais evidenciam significados ou resignificações ideológicas político-culturais. Com a substituição do Canto Orfeônico pela Educação Musical em fins da década de 60 e início dos anos 70, conceitos relacionados com o Orfeão e o Canto Orfeônico passaram a ser reexaminados, dirigindo a atenção naturalmente à imagem condutora de Orfeu e sua lira.


Tornou-se então evidente que essa imagem passou por mudanças e instrumentalizações quanto à sua interpretação no decorrer do tempo e em diferentes contextos, sendo necessário examinar os mecanismos a ela inerentes que permitem as diferentes leituras e compreensões.


A lira nos estudos Antiguidade Clássica/Cristianismo e nas reflexões pós-conciliares


Na Europa, constatou-se uma reintensificação dessa imagem simbólica em meios católicos em meados dos anos setenta. Essa renovada atenção foi preparada por estudos de simbólica cristã de um Hugo Rahner S.J. (1900-1968) e, mais diretamente, das relações entre Antiguidade e Cristianismo evidenciadas no Jahrbuch/Anuário fundado por Theodor Klauser (1894-1984) e na publicação do Reallexikon für Antike und Christentum a que servia, publicado pelo Instituto da Universidade de Bonn que traz o nome de Franz Josef Dölger (1879-1940).


As razões do renovado e intenso interesse pela imagem de Orfeu residiram porém no contexto religioso-cultural católico em que passou a ser usada em anos marcados por processos renovadores desencadeados pelo Concílio Vaticano II.


A constatação de que a imagem já fora empregada pelos primeiros cristãos, que associaram a figura de Orfeu a Cristo, como documentado em representação na catacumba romana de Petrus e Marcellinus, justificou o seu uso no âmbito de intuitos missionários de Cristianização de culturas. Relacionou-se, assim, com conceitos de transformação cultural através do processo cristianizador, também de seus instrumentos, tornando-os "aptos" ao uso litúrgico.


Significativamente, essa imagem de Orfeu/Cristo foi utilizada como emblema da publicação Musica Indigena de Simpósio Etnomusicológico realizado em Roma pela organização pontifícia de música sacra em 1976 e, a partir daí, nos anuários do Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos, culminando em 1985 com Christus in Ecclesia cantat por ocasião do Congresso Internacional de Música Sacra em Roma.


Esse relacionamento entre Orfeu e Cristo, em primeira aproximação de difícil compreensão, foi então sobretudo considerado sob a perspectiva de que também Orfeu desceu aos infernos para de lá tirar aquela que amada, não tendo por último logrado o seu intento, ao contrário de Cristo, o anti-tipo, com a alma dos justos que ali se encontravam.


Entre os anuários abertos com a imagem de Cristo/Orfeu incluiu-se aquele dedicado à Collectanea Musicae Sacrae Brasiliensis. Com artigos de pesquisadores brasileiros, essa publicação foi preparada com o objetivo de dar impulsos às discussões do Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira", realizado em São Paulo, em 1981.


A lira de Orfeu como símbolo em jornada festiva preparatória no Embú


Os participantes do Simpósio tinham em mãos, portanto, o símbolo de Orfeu e de sua lira, interpretado segundo a sua resignificação cristã. Com isso, tornava-se necessário, antes mesmo dos debates, de confrontar os seus participantes com a imagem, suas interpretações, o sentido que a ela se emprestava sob as condições decorrentes do Concílio na Europa e o contexto especificamente brasileiro que devia ser considerado na sua leitura e compreensão.


Entre os participantes estrangeiros do Simpósio, encontrava-se um dos maiores especialistas do tratamento de questões relativas às reinterpretações de imagens da Antiguidade Clássica pelos autores cristãos, o musicólogo norte-americano Dr. Robert Skeris, autor de vasta obra (e.o.Crux Et Cithara, Coppenrath 1983 = Musicae sacrae meletemata 2).


Para evitar-se debates por demais teóricos, o que exigiria várias sessões especializadas e que tomariam todo o espaço do evento, optou-se por considerá-la de forma imediata através da experiência visual e auditiva, favorecendo inserções empáticas em contextos e desenvolvimentos culturais, e dando impulsos a reflexões.


Como resultado de intensas trocas de idéias entre os organizadores no Brasil e o editor como iniciador e preparador programático do evento, optou-se por um deslocamento de todos os participantes a Embu, localidade próxima de São Paulo, conhecida em particular pela sua arte e artesanato populares.


Criou-se, assim, uma coerência quanto ao simbolismo e à condução de reflexões na programação, uma vez que os participantes tinham anteriormente visitado o Pátio do Colégio e, assim, quando trouxe-se à consciência os fundamentos históricos da missão indígena e do processo por ela desencadeado de transformação cultural no Brasil. Se o indígena e sua cristianização estiveram aqui no centro das atenções, em Embu foi esta dirigida à cultura popular cristã e a questões de sua transformação, entre elas de seu emprêgo em criações artísticas.


Em ambos os casos haveria assim a possibilidade de discussões sobre processos culturais com conotações ascensionais, de elevação, nobilitação e, em sentido mais amplo, de sentidos educativos.


Tratamento da imagem a partir da perspectiva dos estudos culturais


Para a organização programática das experiências em Embú, partiu-se primeiramente de outro aspecto da interpretação da antiga imagem de Orfeu e de sua lira do que aquela de uso pelos teólogos católicos europeus.


O peso na sua leitura foi dado à narrativa da invenção do instrumento por Hermes/Mercúrio a partir de uma tartaruga que, por êle morta, teve o seu casco e suas fibras transformadas em instrumento a cujo toque o cantor entoou louvores a seu Pai, Zeus, a suprema divindade.


A atenção dirige-se aqui ao corpo que, morto, se torna caixa de ressonância de um instrumento de cordas que possibilita o acompanhamento da voz do cantor. Nessa função, o som do instrumento guia-se pelos princípios desse canto unido à palavra, ordenando-se nos seus elementos e tornando-se pleno de sentidos. Antes de assim soar, foi morto, mortificado ou "batido", tal como um instrumento de percussão.


Evidencia-se dessa forma no antigo mito um processo de transformação em instrumento de cordas de um outro percutido ou agitado, que imite ruídos com as suas entranhas a ser sacudido. Assim como outras imagens relativas á música e a instrumentos da Antiguidade, também essas relações entre o instrumento que produz som ao ser agitado e o instrumento de cordas manteve-se nas expressões populares e mesmo na tradição do pensamento organológico.


Compreende-se, assim, que instrumentos de cordas tenham tomado o lugar da maraca em povos indígenas missionados na América Latina, e que instrumentos de cordas sejam batidos como se fossem de percussão. Compreende-se, assim, que se escolham para caixa de ressonância de instrumentos de cordas dedilhadas cascos de tartaruga, de tatú ou de outros animais de carapaça.


Os estudos imagológicos até então já desenvolvidos, em particular naqueles motivados pelas tradições de Reis, das quais Colonia é centro, assim como em paralelos do Carnaval de Colonia com o do Brasil (Veja), tinham trazido à luz o significado de uma concepção tripartida do homem de remotas origens e referenciadas segundo as Escrituras: o espiritual ao alto, o carnal abaixo, e o intermediário, que pode subir ou descer.


Essas concepções e essa imagem tripartida, em particular a do homem ligado à carne marcam as expressões lúdicas das festas de Reis e do período que culmina com o Carnaval do ciclo do ano. Assim como os magos como representates de diferentes nações da terra dirigiram-se ao presépio para adorar a Sabedoria encarnada, retornando como reis por terem adquirido a dignidade original perdida pelo Homem, assim séquitos e cortejos de reis com atributos de nações distantes, em particular de africanos ou indígenas personificados em Baltasar caracterizam práticas festivas de Reis e também, sob outra luz, do Carnaval. Compreende-se, assim as relações dessas concepções com aquelas de instrumentos percutidos ou sacudidos decorrentes do mito da invenção da lira.


Da imagem da tartaruga ao maracá e ao Maracatú


Sem haver a oportunidade de tratamento em detalhes e sob diversos enfoques desse complexo de sentidos de imagens remontantes às relações entre a Antiguidade e o Cristianismo e sua vigência contextualizada na tradição brasileira, optou-se por inserir os participantes do Simpósio antes dos próprios debates em ambiente festivo com características carnavalísticas mas de alto significado de suas imagens.


Para isso, contou-se com a participação de um Maracatu Pernambucano pelo Grupo Solano Trindade para a criação da atmosfera adequada - e inesperada em evento de música sacra - na estadia preparatória no Embú. Com esse grupo, salientava-se ao mesmo tempo a importância cultural do Nordeste do Brasil no dia de abertura do evento e, ao mesmo tempo, a presença nordestina em São Paulo e o significado dos processos culturais na região metropolitana decorrentes de migrações internas no país.


Da imagem da tartaruga à caixa de ressonância da viola


O mito da invenção da lira por Hermes/Mercúrio devia ser porém ainda considerado sob um outro de seus importantes aspectos: o do próprio instrumento de cordas com a caixa de ressonância animal. Sendo esse instrumento representado na tradição brasileira sobretudo pela viola, este instrumento, identificado com contextos culturais rurais, devia ser revelado na profundidade de seus significados.


Essa riqueza de sentidos culturais do instrumento, até então em geral apenas considerado por pesquisadores da cultura popular, devia ser por um lado valorizada em exemplo de seu emprêgo na criação artística e, por outro, servir como paradigma para uma reconscientização do significado da imagem da lira para os estudos culturais e para as reflexões sobre questões relacionadas com a música sacra.


A viola em obra pioneira nos desenvolvimentos pós-conciliares no Brasil


A obra apresentada nesse evento preparatório de Embú foi a Missa de Nossa Senhora dos Navegantes de Ascendino Theodoro Nogueira, executada em forma de concerto. Esse compositor paulista, dedicado a estudos da cultura popular e à valorização da viola, criara essa missa já em 1964 e que, por ser em português, marcou de forma sob muitos aspectos pioneiros o processo reformador desencadeado pelo Concílio.


Essa missa em português, para quatro vozes, acompanhada por duas flautas, dois violoncelos e uma viola brasileira, foi executada pelo Coral Ars Viva sob a regência de Mário Valério Zaccaro.


Nascido em Santa Rita do Passa Quatro, cidade do compositor Zequinha de Abreu (1880-1935), aluno de violino de mestre de banda de música local, A. Theodoro Nogueira teve a sua formação musical desenvolvida no interior de São Paulo ao mudar-se para Araraquara, tendo posteriormente alcançado o diploma no Instituto Musical de São Paulo.


Theodoro Nogueira estudou composição com M. Camargo Guarnieri (1907-1993), tendo alcançado reconhecimentos nacionais e internacionais. Já na década de 50 e 60 teve a sua atenção dirigida à viola e suas possibilidades como instrumento a ser usado em composições, criando um Concertino e sete prelúdios inspirados em modas de viola, o que garantiu-lhe a atenção e admiração de pesquisadores do Folclore, salientando-se aqui Rossini Tavares de Lima (1915-1987).


O nome deste pesquisador e professor, presidente da Associação Brasileira de Folclore, e que se salientou tanto no estudo do Maracatu através de seu amigo e colega C. Guerra Peixe (1914-1993) como no da moda de viola, inscreveu-se de forma fundamental na preparação do evento e na sua programação. Uma reunião sob a sua presidência no Museu de Folclore de São Paulo foi programada para ser realizada durante o evento, quando também questões culturais e de interpretação relacionadas com o evento de Embú foram tratadas em círculo mais estreito de especialistas europeus e brasileiros.


Essa sessão deverá ser objeto de relato a ser publicado em outra edição desta revista.


Matéria elaborada por membros do ISMPS, revista e traduzida em versão modificada por

Antonio Alexandre Bispo






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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (ed.). "Lira de Orfeu, Maracatú e Viola. Dimensões antropológico-culturais de um símbolo na valorização de um instrumento caipira. Pesquisas Antiguidade/Cristianismo repercutidas no Embú
em interações com Ascendino Theodoro Nogueira (1913-2002)".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 149/2 (2014:3). http://revista.brasil-europa.eu/149/Lira-Maracatu-Viola.html