Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Fotos e gravação: organizadores brasileiros do Simpósio.



 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 149/10 (2014:3)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3107




Missa comunitária segundo o Concílio
questões de qualidade e intenções educativas e integrativas em participatio activa e actuosa
Em exemplos de Osvaldo Lacerda e Sérgio Vasconcelos Correa

 

O direcionamento de atenções e as prioridades decorrentes de palavras e atos no atual Pontificado faz com que vários problemas já há muito constatados e discutidos adquiram renovada atualidade. Recapitular esse debate de décadas surge como necessário para o prosseguimento das reflexões e a fundamentação adequada de iniciativas.


Um dos problemas que vêm preocupando há décadas musicólogos, organistas, regentes, músicos e artistas em geral, alguns teólogos e interessados e responsáveis por questões e políticas culturais diz respeito à queda de nível qualitativo sob o ponto de vista composicional e estético da produção musical destinada ao culto católico após o Concílio Vaticano II.


Os critérios que passaram a predominar quanto à função da música a serviço de uma participação ativa expressa em cantos levou já nos primeiros anos após o conclave a experimentos, improvisações e ao surgimento de uma produção de música de igreja em vernáculo distinta nos seus pressupostos, objetivos e linguagem daquela do repertório sacro-musical pré-conciliar.


Essa produção apenas pode ser analisada e compreendida a partir das intenções que a motivaram, do tipo de leitura e interpretação de textos e orientações eclesiais, da recepção de determinadas correntes européias por parte de religiosos e agentes da pastoral em países extra-europeus, assim como dos intuitos e da formação de seus criadores. Considerá-la sob critérios anteriormente vigentes ou sob a perspectiva de uma esfera músico-cultural compreendida como de arte ou erudita surge como inadequada e leva necessariamente a mal entendidos.


Se nos anos que se seguiram ao Concílio, o entusiasmo reformador não deixou em muitos casos que se percebessem os problemas derivados da diferença de intenções, de concepções quanto à função da música de igreja e de critérios de sua apreciação, de modo que mesmo religiosos e teólogos antes conservadores e compositores de alta formação se esforçassem na criação de obras compatíveis com as novas orientações, a discordância de concepções e seus resultados tornaram-se cada vez mais evidentes no decorrer do processo de reforma litúrgica durante o Pontificado de Paulo VI.


Para aqueles que se orientavam pelos critérios definidos no Motu Proprio de Pio X (1903) e do movimento restaurativo litúrgico-musical da época anterior ao Concílio, que tinham estudado publicações sacro-musicais e se empenhado no movimento gregoriano, no fomento do cultivo da polifonia, e na formação de coros, a nova produção não correspondia aos esforços dirigidos a uma dignificação e elevação de nível da música sacra, faltando-lhe a marca que a deveria caracterizar como parte integrante da ação litúrgica: sacralidade.


Para os compositores em geral, preocupados com o estudo, a técnica e a estética composicional segundo convicções e reflexões músico-culturais ou novas tendências da criação contemporânea e do desenvolvimento da linguagem musical, a nova produção surgia como expressão de falta de nível, diletantismo e mesmo vulgaridade.


Para os musicólogos e interessados em questões culturais e artísticas em geral, o novo desenvolvimento levava a um afastamento ainda maior da música de igreja relativamente à esfera da composição musical de maior nível técnico e estético, a uma cisão no desenvolvimento histórico-musical e no panorama da criação musical e do pensamento voltado a a questões técnico-musicais e estéticas do presente.


Essa cisão representava também uma perda do papel predominante que a música sacra desempenhara por séculos em países de formação católica como o Brasil. Até fins do século XIX, a composição sacro-musical inserira-se em geral no panorama mais amplo da criação, seguindo e interagindo em processos de transformação de concepções, técnicas e práticas.


O movimento restaurativo sacro-musical, ainda que representativo de intuitos historicistas também atuantes na criação musical em geral, levou a uma primeira grande cisão da música sacra relativamente ao desenvolvimento da linguagem musical e das correntes estéticas, dando origem a um repertório de uso nas igrejas separado daquele das salas de concerto, constituido por produções em geral insuficientes para serem apreciadas fora de sua função no culto.


A reforma litúrgica pós-conciliar parecia radicalizar a dicotomia na cultura musical do período pré-conciliar, uma vez que nela não encontravam lugar não apenas essa produção "ceciliana" da restauração litúrgico-musical, mas sim todo o repertório em língua latina do Canto Gregoriano e da Polifonia de todas as épocas.


Se a situação assim esboçada era sentida como crítica em determinados círculos de teólogos, músicos e pesquisadores em meados da década de 70, o início do Pontificado de João Paulo II fomentou expectativas de mudanças e correções de desenvolvimentos. Para além daqueles que negavam fundamentalmente o Concílio e o processo por êle desencadeado, atuando reacionariamente a favor de uma situação pré-conciliar, grande parte de músicos, musicólogos e teólogos vinculados a organizações e instituições voltadas à música sacra procuravam antes caminhos para um desenvolvimento da criação sacro-musical que correspondesse tanto às novas orientações como a critérios de sacralidade e de qualidade artística.


Em congressos, conferências e publicações apontava-se a necessidade de leitura cuidadosa segundo o texto - e não interpretações arbitrárias - de documentos conciliares e, neste sentido, da compatibilidade de critérios e intuitos. Via-se e defendia-se a possibilidade de manutenção do conceito de Obra adaptada aos anelos da reforma, acentuando-se que a participação comunitária deveria ser compreendida não como atividade externa - participação ativa - , mas como participação interna: "actuosa participatio".


Um dos principais eventos nesse sentido foi o Congresso Internacional de Música Sacra realizado em Bonn e em Colonia, em 1979, e no qual vários brasileiros participaram. (Veja) O contato com compositores alemães que se preocupavam com o destino de sua obra criadora sacro-musical sob as novas condições e a tomada de conhecimento dos intuitos de direcionamento da atenção da reforma litúrgica ao mundo extra-europeu levou a que esses brasileiros realizassem a necessidade de demonstrar os esforços que já há anos estavam sendo realizados no Brasil.


Missa comunitária sob a perspectiva das relações Música Sacra e Cultura Brasileira




Oportunidade para a reflexão conjunta a partir de execuções modelares de obras assim criadas por compositores brasileiros devia ser oferecida no contexto do Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira", realizado em São Paulo em 1981 pela Secretaria de Cultura do Estado em cooperação com o instituto de pesquisas da organização pontifícia de música sacra, da qual o editor desta revista havia sido eleito em Assembléia Geral como Consiliarius.


Durante o planejamento da programação do evento tornou-se claro que um dos dias do simpósio devia ser dedicado a questões relativas à missa comunitária segundo Concílio Vaticano II, integrando-o em contexto geral do desenvolvimento histórico da música sacra no Brasil.


Essa inserção devia trazer à consciência a historicidade - e portanto relatividade - da situação atual, que não poderia ser compreendida como ponto final e definitivo, mas sim como uma das muitas fases de processos histórico-culturais relacionados com desenvolvimentos eclesiais em contextos globais.


Essa inserção em contexto maior auxiliaria também trazer à consciência as diferentes concepções que levaram a tão distintas expressões da produção musical para o culto no decorrer dos séculos e, assim, ao reconhecimento adequado das características distintivas dos intuitos atuais.


A música sacra na obra de Osvaldo Lacerda (1927-2011)


A preparação desse escopo foi realizada em estreita cooperação com compositores brasileiros que procuravam corresponder às novas orientações esforçando-se em não abandonar totalmente normas qualitativas. Em correspondência e em encontros pessoais foram trocadas idéias a respeito de concepções, das tentativas composicionais e das experiências obtidas. Entre êles salientou-se Osvaldo Lacerda.


Esse compositor paulista encontrava-se desde fins da década de 60 em contato com o movimento de renovação teórica de disciplinas culturais e da prática da vida musical através de um direcionamento da atenção a processos e que levara à fundação da Sociedade Nova Difusão, em 1968.


Osvaldo Lacerda, em várias reuniões, foi um daqueles que sugeriu e mais incentivou a constituição jurídica em forma de sociedade do movimento. Ao mesmo tempo, porém,
empenhava-se na Sociedade Pró Música Brasileira, associação de objetivos específicos, destinada à difusão de obras de compositores brasileiros e que não deixava de refletir a permanência de concepções estéticas e culturais de orientação nacional e mesmo nacionalista do passado. Já no início da década de 50, Osvaldo Lacerda dirigira o departamento de divulgação de música brasileira da Mobilização Musical da Juventude Brasileira.


O relacionamento dessas concepções estéticas de orientação nacional e mesmo nacionalista com as novas tendências decorrentes do Concílio ocupavam a sua atenção, o que o levara a publicar estudos como "Constâncias harmônicas e polifônicas da música popular brasileira e seu aproveitamento na música sacra" e a "A criação do recitativo brasileiro", incluidos na publicação Música brasileira na liturgia (Petrópolis, 1969).


Para a celebração prevista para o dia 2 de outubro de 1981 na Igreja de Nossa Senhora da Consolação, e que deveria fornecer os
impulsos para as discussões, escolheu-se a Missa a 3 vozes e Próprio para as festas de Nossa Senhora, escrita para três vozes iguais e órgão, de 1971. Essa escolha justificou-se por várias razões. Correspondia na sua dedicação mariana à igreja e à data do mês de outubro - mês de Maria - e tinha a característica de incluir não apenas as partes do Ordinarium como a do Proprium, manifestando uma concepção da celebração como unidade na diversidade de um Todo em correspondência à idéia de Obra.


Concomitantemente, procurou-se demonstrar que a missa comunitária com a participação dos fiéis não devia excluir a música coral, cuja audição não podia ser compreendida como expressão de passividade, mas sim ser valorizada no sentido de uma atividade não apenas externa, mas interna (actuosa participatio). Para isso, escolheu-se uma obra de Sérgio de Vasconcelos Correa: a Suite Coral n° 2.




No decorrer da preparação programática, considerou-se a conveniência em considerar o tema da "Missa Comunitária segundo o Concílio Vaticano II" em conjunto com questões relativas à Educação Musical. No sentido mais amplo dessas questões, lembrou-se que a participação ativa de fiéis no canto, apesar da facilidade de melodias e textos, exigia preparações e pressupunha um mínimo de capacidade de afinação, entoação e aptidões musicais. Preparar o povo para o canto, ainda que de forma rudimentar, indicava as dimensões educativas do agir comunitário que deviam ser consideradas.


Essas condições básicas para um resultado sonoro aceitável chamavam a atenção para a importância da formação musical infantil, uma vez que preparava as crianças desde cedo para a participação ativa no canto comunitário. O próprio Osvaldo Lacerda dedicava-se de forma intensa como professor e autor de obras didáticas à formação musical elementar.


O tratamento concomitante da questão da missa comunitária e do canto infantil foi possibilitado pela participação do Coral Eco, regido por Teruo Yoshida, e que, acompanhado ao órgão por Elisabeth Setusuko Yoshida, tomou a si a realização musical das obras de Osvaldo Lacerda e Sérgio Vasconcelos Correa. Essa participação de conjunto nissei trouxe à consciência ainda outro aspecto dos intuitos comunitários na prática musical: o integrativo.


Considerações do mestre-capela da catedral de Salzburg


A consideração de questões relativas à formação musical infantil sob a perspectiva da música sacra recebeu impulsos de conferências proferidas por especialistas europeus presentes no Simpósio, salientando-se aqui Anton Dawidowicz (1910-1993), Mestre-Capela da Catedral de Salzburg, que tratou num dos pontos de sua exposição explicitamente da "missa infantil".


Aqui, esse especialista expressou a sua impressão de que a época das experimentações musicais dos anos iniciais pós-conciliares estava chegando a seu fim. A forma e a decorrência das missas para crianças tinham-se consolidado, pregações e textos eram formulados em linguagem acessível. Problemáticos permaneciam porém ainda os textos de cantos e as melodias. A qualidade e a quantidade das produções não se correspondiam. A maioria dos compositores demonstravam mais boa vontade do que capacidade musical. O apelo para que se criasse algo de qualidade deveria ser acentuado, e para isso haveria necessidade de compositores competentes que fossem ao mesmo tempo pedagogos e músicos.


Correspondia ao espírito do tempo que os cantos infantís fossem acompanhados por instrumentos adequados como flautas-doce, xilofones, instrumentos rítmicos e outros. As diferentes escolas, por ex. a de Carl Orff, vinham dando aqui impulsos.


Para participação em conjuntos instrumentais devia-se arregimentar sobretudo crianças e jovens das escolas de músicas regionais, assim como os seus professores. As escolas de música deviam aproveitar as possibilidades que aqui se abriam a seus alunos, complementando assim os eventos escolares na conquista de prática e conhecimentos. Seria importante assim haver uma boa colaboração entre aqueles responsáveis pela liturgia e os professores das escolas de música.


A participação em missas infantís tinha para os instrumentalistas um grande valor psicológico, pedagógico e ético, desde que para além do fazer música não se perdesse o objetivo mais alto da celebração.


Matéria elaborada por membros do ISMPS, revista e traduzida em versão modificada por

Antonio Alexandre Bispo






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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (ed.). "Missa comunitária segundo o Concílio - questões de qualidade e intenções educativas e integrativas em participatio activa e actuosa".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 149/10 (2014:3). http://revista.brasil-europa.eu/149/Musica-e-missa-comunitaria.html