Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Fotos e gravação: organizadores brasileiros do Simpósio.


 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 149/8 (2014:3)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3105




Música contemporânea de temática religiosa no Brasil
no campo de tensões entre desenvolvimentos da linguagem musical e orientações eclesiais
Em exemplos de José Antonio de Almeida Prado, Mário Ficarelli, Martin Braunwieser 
e Roberto Martins à frente do Madrigal Ars Viva de Santos (1981)




Este texto deve ser compreendido à luz do escopo geral dos trabalhos divulgados na Revista Brasil-Europa do corrente ano. Estes são voltados a balanços e revisões de caminhos, a reconscientizações de objetivos e a análises do programa de interações que teve o seu início em 1974. (Veja)


Esses números da Revista consideram sobretudo decorrências das décadas de 70 e 80 do século passado, caídas no esquecimento ou desconhecidas. Procuram contribuir a reaprumos, ao reconhecimento de possíveis desvios e a que se evitem repetições de idéias, projetos e iniciativas de um desenvolvimento da história recente que já é há muito marcado por interações internacionais.



 

Um dos problemas insuficientemente considerados em reflexões concernentes às relações entre Culto e Cultura, e em particular à música sacra no Brasil, é o das suas relações com a música contemporânea ou, em geral, com desenvolvimentos estético-musicais voltados à procura de novos caminhos na linguagem musical e novos meios de expressão no século XX.


As dimensões e a gravidade das tensões que surgem nessas relações tornaram-se sensivelmente perceptíveis nos anos que se seguiram ao Concílio Vaticano II das décadas de sessenta e setenta do século XX, quando passou-se a procurar a aplicação das orientações conciliares no Brasil. Elas ganham novamente em relevância e atualidade em consequência de orientações e prioridades do atual Pontificado que renovam e intensificam caminhos apontados e reformas desencadeadas pelo conclave. (Veja)


As preocupações e os esforços dos anos sessenta e setenta levaram não apenas a reflexões e debates voltados à interpretação de textos e ao conhecimento de tentativas de suas aplicações na Europa, mas a uma intensificação da produção musical religiosa no Brasil.


A concreta realização prática das novas diretrizes na criação musical para as igrejas e a ação pastoral em geral passou a ser determinada pelo intento da participação ativa do povo na liturgia e, a seu serviço, ao uso de instrumentos e elementos da música folclórica e popular na composição musical para uso no culto.


Esses intentos, que exigiam também a compreensão de textos ouvidos e cantados pela assembléia, foram acompanhados pelo abandono do latim e do repertório musical com texto latino - praticamente todo o patrimônio musical de séculos -, assim como pela perda de significado da música de coro e do órgão nas igrejas.


Religiosos com aptidões musicais, movidos mais diretamente pelas novas orientações teológicas e pastorais, passaram a desenvolver uma intensa atividade criadora, manifestada em uma profusão de cantos comunitários, acompanhados em geral por violão e outros instrumentos mais acessíveis, praticáveis ou vistos como populares.


Também alguns compositores leigos de formação católica ou com interesse pela música religiosa devido ao papel relevante por ela desempenhado no desenvolvimento histórico-musical através dos séculos procuraram seguir as orientações conciliares ou serem por elas influenciados. Um caminho contrário - ou seja, o apego a formas e expressões do repertório latino - significaria também que as suas obras não seriam executadas e, consequentemente, não encontrariam interesse por parte de editoras para que fossem publicadas.


Uma das expectativas por muitos nutrida quanto a esse  empenho de compositores em seguir as tendências desencadeadas pelos documentos conciliares era que essa atividade pudesse levar a uma criação musical mais refletida sob o ponto de vista estético e de domínio técnico na linguagem musical.


Critérios como aqueles que exigiam a compreensibilidade de textos, a participação ativa da comunidade - e assim cantos de fácil aprendizado, execução e memorização - favoreceram compreensivelmente a atenção à música folclórica e popular como fonte proporcionadora de elementos ou inspiração criadora.


Esse desenvolvimento desencadeado pelo Concílio veio de encontro às tendências de compositores que ainda cultivavam uma linguagem marcada por concepções nacionais ou nacionalistas remontantes - apesar de todas as suas diferenciações - a posicionamentos culturais e político-culturais do passado.


Essa revitalização da estética de fundamentação nacional e nacionalista na criação musical por via indireta da Igreja não era esperada por compositores que se empenhavam pela renovação e desenvolvimento da linguagem musical e surgia como paradoxa sob vários aspectos.


Ela correspondia por um lado a um movimento renovador, progressista na sua orientação comunitária e portanto social, superador de um período de muitas décadas marcadas por concepções litúrgico-musicais restaurativas. Por outro lado, porém, ela reintensificava correntes estético-musicais de natureza conservadora da criação musical.


Composições atonais, seriais ou de tendências de vanguarda em geral não podiam corresponder às expectativas de compreensibilidade de textos e à participação ativa do povo no canto comunitário. Obras assim criadas teriam a possibilidade de ser apenas executadas em concertos, não na prática litúrgica segundo as novas concepções. Não corresponderiam à função intendida por textos e por formas, não seriam sacras no sentido mais próprio do termo, mas sim apenas obras de temática religiosa ou espiritual em geral.


Essa situação surgia como de impasse para aqueles compositores que desejavam ao mesmo tempo seguir tendências sentidas como atuais e avançadas tanto na esfera religiosa como na sua obra criadora. A consciência dessas contradições e de suas dimensões aguçou-se em encontros de religiosos que também se dedicavam à música e compositores que procuravam criar à altura de desenvolvimentos contemporâneos em dimensões globais.


Tais encontros foram possibilitados por festivais e cursos internacionais, como aqueles de Curitiba nas suas edições de fins da década de sessenta. Ali reuniam-se, de um lado, teólogos compositores e religiosos com conhecimentos musicais como D. João Evangelista Enout OSB e Pe. José de Almeida Penalva que, apesar de diferentes orientações, procuravam caminhos para a efetivação das orientações conciliares. (Veja) De outro, integravam-se às novas preocupações compositores não relacionados mais estreitamente com a prática religiosa.


A gravidade da situação díspare assim criada para aqueles empenhados na difusão de obras contemporâneas e da renovação estético-musical foi sentida sobretudo no trabalho em conjunto com o pianista Paulo Affonso de Moura Ferreira. Foi discutida sob diversos aspectos em encontros e por ocasião de recitais com obras de compositores de vanguarda da Europa e dos EUA, assim como na elaboração do projeto editoral "Música Nova Brasileira" (Ricordi). (Veja)


Na Europa, constatou-se a existência de problemas similares de separação de esferas da música contemporânea nas suas tendências mais avançadas e da música sacra, ao mesmo tempo, porém, diferenças.


Compositores que já antes da Segunda Guerra tinham-se empenhado pela renovação da linguagem musical do Cecilianismo, por exemplo na Sociedade Internacional de Nova Música Sacra (Internationale Gesellschaft für Erneuerung der katholischen Kirchenmusik, IGK), encontravam-se nos anos pós-conciliares à frente de movimentos conservadores, que temiam a perda do patrimônio espiritual e cultural representado pela música sacra.


Procurando seguir os preceitos do Motu Proprio de Pius X (1903) e outros documentos da legislação sacro-musical, e inserindo-se assim em corrente restauradora remontante ao século XIX, promotora do Gregoriano e da Polifonia, haviam desenvolvido uma linguagem estilística marcada pelo pensamento contrapontístico, ampliado tonalmente quanto a concepções harmônicas, revitalizando antigos modos e procedimentos modais em geral, preservando, ainda que alteradamente, formas do passado.


Alguns dos mais renomados desses compositores desenvolveram ampla atividade didática, formando numerosos professores de música e compositores. Entre os vários representantes dessas correntes pode-se lembrar de nomes como o organista da catedral de Berlim Joseph Ahrens (1904-1997), o evangélico Ernst Peppings (1901-1981), o belga Flor Peeters (1903-1986) e sobretudo o austríaco Johann Nepomuk David (1895-1977), professor do compositor e professor brasileiro Ernst Mahle. (Veja)


Entre êles, Heinrich Lemacher (1891-1966) foi mais conhecido no Brasil, exercendo certa influência em círculos voltados à música sacra (Veja). Entre os compositores que procuravam caminhos para harmonizar na sua obra criadora técnicas e meios expressivos mais condizentes com desenvolvimentos do século XX com as orientações da legislação litúrgico-musical referentes a critérios da música sacra na tradição da restauração litúrgico-musical distinguiam-se Hermann Schroeder (1904-1984) e Max Baumann (1917-1999).


O primeiro exerceu - assim como Lemacher - considerável influência sobre músicos e compositores portugueses e brasileiros através de suas atividades didáticas (Veja), o segundo distinguiu-se pelo seu particular interesse por questões relacionadas com o Brasil. Com esses compositores o editor tratou de problemas relacionados com a composição sacro-musical contemporânea no Brasil sobretudo no âmbito do VII Congresso Internacional de Música Sacra realizado em Bonn e em Colonia em 1980 e que levou à proposta do Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira" no ano seguinte (Veja). Tendo dedicado toda a sua obra de vida à procura de uma criação musical que correspondesse tanto a desenvolvimentos da linguagem musical quanto às orientações restaurativas litúrgico-musicais, não podiam aceitar reformas que tornavam a sua produção e suas concepções obsoletas. Representando pela sua linguagem compositores conservadores no panorama da criação musical do século XX, passavam agora também a representar o conservadorismo do ponto de vista das reformas litúrgicas pós-conciliares.


Nesses encontros, consideraram-se composições sacro-musicais de compositores brasileiros anteriores ao Concílio nas suas relações com as respectivas obras e desenvolvimentos técnico-estéticos e que se distinguiam daquelas de uso antes despretenciosas artísticamente de autores religiosos, em geral Franciscanos.


As diferenças estilísticas e de tratamento de textos nessas obras apresentavam diferenças que podiam ser explicadas por vários motivos. O tratamento musical e textos religiosos por alguns compositores podia ser resultado do exercício de formas transmitidas pela tradição, surgindo como natural que os autores as incluissem no seu trabalho criador, não exigindo assim identificação mais direta com a religião e sua prática, sendo concebidas para apresentações em concerto, não em função litúrgica. Assim, obras religiosas de Martin Braunwieser podiam ser explicadas antes pelo estudo da obra religiosa de J. S. Bach no âmbito do movimento Bach de São Paulo, sem deixar esquecer que o seu autor possuira relações com a Antroposofia no passado, para a qual criara várias composições.


Nesses encontros considerou-se que o movimento de música antiga de feições mais recentes, em particular aquele de revalorização da polifonia vocal do passado levara a iniciativas de fomento do repertório sacro-musical de todas as épocas como exemplificado na Sociedade Pró-Música Sacra de São Paulo, restringindo-se porém este interesse a obras de interesse artístico, não à produção de cunho ceciliano de religiosos voltados à música. A aproximação antes musical ou intentos músico-culturais de difusão de repertórios levava assim a situação outra àquela que preconizada por religiosos e agentes da pastoral que procuravam desenvolver uma prática musical segundo tendências desencadeadas pelo Concílio. O interesse por formas tradicionais e textos religiosos do repertório sacro-musical na obra criadora não significava assim necessariamente convicção ou prática católica de seus autores, podendo até mesmo ser utilizadas no sentido de transformação de sentidos, inclusive de sua interpretação segundo concepções não-cristãs, de mística oriental ou de correntes esotéricas.


Música religiosa contemporânea pelo Ars Viva de Santos na Igreja de São Domingos


A esse complexo temático referente à composição sacro-musical contemporânea em época crítica de mudança de paradigmas referentes ao uso da música na prática litúrgica segundo o movimento desencadeado pelo Concílio dedicou-se um concerto a ser seguido por discussões no âmbito do Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira". Como local adequado para esse evento escolheu-se a Igreja de São Domingos de São Paulo, então de renome pela abertura dos dominicanos perante novas tendências, modernidade, tolerância e espírito experimental.


O concerto, realizado no dia 30 de setembro, ficou a cargo do Madrigal Ars Viva de Santos, regido por Roberto Martins. O program incluiu obras de José Antonio de Almeida Prado (da Missa Cordis, 1943; Kyrie, 1972); Martin Braunwieser (Ave Maria, 1952); Roberto Martins (Salmo 14 para coro, solistas e percussão, 1973; Ave Maria, 1981; Alpha Mysticum ômega, 1971) e Mário Ficarelli (Anúncio, 1972).



Roberto Martins (*1943) representava uma nova geração de músicos criadores abertos ao tratamento da temática religiosa. Representava também a tradição do interesse pela música sacra polifônica de Klaus-Dieter Wolff (1926-1974), seu professor de regência, ocupando desde 1969 o quadro de músicos responsáveis por repertórioos da Sociedade Ars Viva, de Santos.


Era conhecido pelos seus interesses quanto a estudos de correntes estilísticas e práticas de execução de música vocal, do Canto Gregoriano e de correntes mais avançadas da criação contemporânea, entre outras da música aleatória. Esses estudos da música contemporânea nas suas correntes mais avançadas desenvolvera em parte com Gilberto Mendes.


Relativamente à composição de temática religiosa, Roberto Martins adquirira renome com a sua obra Salmos para soprano, coro, speakers (pregadores) e percussão, premiada em 1973 pela Associação Paulista de Críticos de Artes.


Para a regência desse concerto na Igreja São Domingos, que devia dar impulsos ao debate dedicado à música contemporânea nas suas relações com a música sacra, foi convidado através de Roberto Schnorrenberg (1929-1983), do qual era assistente como maestro do Madrigal Ars Viva. (Veja)


Roberto Martins surgia assim como personalidade ideal para a realização desse concerto considerado como de fundamental significado por representar de forma exemplar o complexo de interesses voltados à música do passado mais remoto, da Idade Média e do Renascimento nas suas relações com a música contemporânea e a temática sacro-musical. O contexto em que se inseria contribuia de forma indireta a novas perspectivas da problemática criada pelo movimento restaurador litúrgico-musical do passado recente, uma vez que também este se referenciava segundo desenvolvimentos do século XVI, fomentando a polifonia vocal clássica e o Gregoriano.


A constituição do programa possibilitou uma visão da diversidade de aproximações à temática religiosa por parte de compositores eruditos brasileiros. Essa diversidade manifestava-se também na própria obra de seus criadores, surgida em diferentes fases de suas vidas e cujas transformações podiam ser consideradas tanto relativamente a desenvolvimentos pessoais como nos seus elos com as reformas litúrgicas.


Consequentemente, em primeiro lugar considerou-se José Antonio de Almeida Prado (*1943), conhecido por ter-se dedicado à composição sacro-musical à época anterior ao Concílio, como documentada na Missa Cordis, assim como em obras da época de transição do repertório latino ao português no espírito do Concílio já na década de sessenta (Missa da paz, 1965, Ritual para a Sexta-Feira Santa, 1966, Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo Marcos, 1967), produção intensificada na década de setenta (Vinde, Santo Espírito, 1970; Carta de Patmos, 1971; Ritual da palavra, 1972; Ave Maria, 1972; Thérèse ou O amor de Deus, oratório, 1973; Magnificat, 1973; Bendito da Paixão de Jesus de Nazaré, 1978)


As obras de Roberto Martins apresentadas chamaram a atenção às possibilidades abertas pela criação musical eletroacústica, exemplificadas sobretudo na obra Alpha mysthicum omega para coro, solistas, apitos e órgãos em fita.


Matéria elaborada por membros do ISMPS, revista e traduzida em versão modificada por

Antonio Alexandre Bispo






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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (ed.). "Música contemporânea de temática religiosa no Brasil no campo de tensões entre desenvolvimentos da linguagem musical e orientações eclesiais".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 149/8 (2014:3). http://revista.brasil-europa.eu/149/Musica-religiosa-contemporanea.html