Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Elias Alvares Lobo


Tristao Mariano da Costa








 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 149/6 (2014:3)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3103




Música sacra do tempo imperial
na reconsideração do século da emancipação política do Brasil
Resgatando obras marginalizadas em exemplos em exemplos de D. Pedro I (1798-1834), Pe. José Maria Xavier (1819-1887), Elias Álvares Lobo (1834-1901) e Tristão Mariano da Costa (1846-1908)




Este texto deve ser compreendido à luz do escopo geral dos trabalhos divulgados na Revista Brasil-Europa do corrente ano. Estes são voltados a balanços e revisões de caminhos, a reconscientizações de objetivos e a análises do programa de interações que teve o seu início em 1974. (Veja)


Esses números da Revista consideram sobretudo decorrências das décadas de 70 e 80 do século passado, caídas no esquecimento ou desconhecidas. Procuram contribuir a reaprumos, ao reconhecimento de possíveis desvios e a que se evitem repetições de idéias, projetos e iniciativas de um desenvolvimento da história recente que já é há muito marcado por interações internacionais.



 

A reconsideração da música do século XIX no Brasil e o desenvolvimento dos estudos e pesquisas da vida musical do período que se seguiu à Independência constituiram uma das principais preocupações dos anos sessenta e setenta do século passado, determinando um direcionamento das reflexões que marcaram o rumo do pensamento e das iniciativas musicológicas das décadas seguintes. (A.A.Bispo, ◦"O século XIX na pesquisa histórico-musical brasileira: Necessidade de sua reconsideração". Latin American Music Review/The University of Texas 2/1 (1981), 130-142)


Muitos dos problemas então percebidos e considerados mantém a sua atualidade, de modo que o prosseguimento refletido e não-repetitivo das discussões e iniciativas pressupõe o conhecimento do desenvolvimento do pensamento, das pesquisas e das realizações de meio século.(Veja)


A necessidade de revisões e revalorizações de obras e compositores do século XIX havia sido reconhecida no contexto das preocupações pela renovação de enfoques de disciplinas teóricas voltadas à música a partir de 1964/65. (Veja)


Nesse intuito, reconheceu-se que a orientação de disciplinas segundo categorizações de esferas culturais do erudito, do folclórico e do popular, - somando-se aqui a distinção entre o sacro e o profano - levava a problemas quanto à consideração suficiente e adequada de obras, desenvolvimentos e expressões que se situavam entre as preconizadas esferas. Constatava-se que obras e compositores do Brasil do século XIX, com a exceção de modinhas apresentadas e consideradas antes ironicamente e com sorrisos, praticamente se encontravam ausentes de programas de concertos e eram desvalorizadas na literatura.


Diferentemente da música da época colonial, que já passara a despertar interesses - graças ao trabalho de persuasão e difusão de Francisco Curt Lange (1903-1997) - permanecia em grande parte silenciada e mesmo desqualificada justamente a música da época na qual o Brasil alcançou a sua independência política e consolidou-se como nação.


Em país cujos principais símbolos musicais - o seu hino nacional e aquele da Independência -remontam ao século XIX e manifestam características estilísticas da época de sua composição, o desconhecimento e mesmo a desconsideração do repertório da época em textos e nos programas de concertos surgiam como incoerentes e indicadores de uma necessidade de revisão de critérios de apreciação.


Esse fato paradoxal da desvalorização da cultura musical de décadas da história política do país emancipado, que vivia nos símbolos sonoros que marcam a sua imagem e os sentimentos patrióticos, foi reconhecido como resultado de perspectivações da história e julgamentos de desenvolvimentos históricos que surgiam também sob muitos aspectos como paradoxais.


Dos momentos que puderam ser aqui identificados, dois foram considerados com maior atenção: o da crítica do nacionalismo musical e o da restauração sacro-musical. Embora profundamente enraizados no século XIX, até mesmo expressão de correntes receptivas da Europa da época do Romantismo, interagiram na sua desqualificação de grande parte do repertório desse século.


Paradoxal surgia aqui a aparente contradição de anelos voltados à valorização do nacional, do singular e característico através do emprêgo de elementos da tradição popular à procura de uma linguagem própria na criação musical erudita de um lado e o universalismo pregado pelo movimento de reforma ou restauração da música sacra de outro.


Sob a primeira ótica, grande parte da música do século XIX produzida e cultivada no Brasil era apresentada como européia ou europeizada, cópias de obras e emulações de desenvolvimentos externos, expressão da dependência de compositores de modêlos europeus.


Sob o ponto de vista da reforma litúrgico-musical, a música sacra predominante nesse século era considerada como expressão de decadência religiosa, manifestada na profanidade de sua linguagem musical e no espírito teatral que a imbuia, levando até mesmo a abusos de uso de trechos de óperas nas igrejas. Em recepção a movimentos de restauração litúrgico-musical europeus, em particular da França e da Alemanha, que combatiam a assim vista decadência com extraordinário empenho crítico, também no Brasil surgiram de forma crescente a partir de meados do século XIX esforços voltados à renovação da música sacra e que se concentrou sobretudo na luta para a extinção da prática de acompanhamento orquestral nas igrejas.


A contradição ou a incoerência entre o nacionalismo de um lado e o universalismo de outro é, porém, apenas aparente. O reconhecimento da inserção de ambas as tendências em processo histórico-cultural mais abrangente pode ser alcançada através de uma perspectiva adequada que considere as suas origens no século do Romantismo e Historismo na Europa, época marcada ao mesmo tempo pelo descobrimento e valorização das tradições populares, pela visão voltada ao passado medieval e, sob o aspecto litúrgico-musical, às determinações do Concílio tridentino.


A concomitância dos dois movimentos no século XX no Brasil, tendo compositores de orientação nacional composto obras segundo os princípios considerados como universais do movimento restaurador institucionalizado pelo Motu Proprio de Pio X (1903), perde assim o seu caráter paradoxal. O reconhecimento das relações entre os dois desenvolvimentos traz à consciência a  vigência muito além dos limites do século de um campo de tensões próprio do contexto romântico-historicista.


Essas considerações levaram mais uma vez à relativação de critérios de ordenação segundo séculos ou periodizações da história política, discutidos em geral sobretudo com referência à assim-chamada "música colonial". O mesmo vale para outras periodizações segundo a história política, como aquela referente à música "do tempo do Império".


Música sacra do século XIX no Brasil em contextos globais considerada na Europa


As preocupações e os estudos relativos à música do século XIX no Brasil nos anos 60 e 70 coincidiram com um novo interesse por esse século na musicologia européia. Em publicações e eventos procuravam-se sobretudo na Alemanha novas perspectivas para a sua consideração. Entre elas, salientou-se um grande projeto editorial que incluiu também um volume dedicado às culturas musicais na América Latina do século XIX. (Veja)


Nesse projeto, as reflexões desenvolvidas no Brasil pelo editor desta revista e que tinham prosseguimente em estudos e pesquisas na Europa puderam ser discutidas em estreita cooperação com musicólogos europeus e latinoamericanos, salientando-se aqui sobretudo Francisco Curt Lange.


As novas aproximações ao tratamento desse século na musicologia possibilitadas pela orientação das atenções a processos levaram a deslocamentos de pesos e a uma maior diferenciação de análises de fatos e contextos expostos naquele projeto. Reconheceu-se sobretudo o papel fundamental desempenhado pelo movimento de reforma litúrgico-musical desencadeado em alguns países europeus para a transformação do pensamento, da criação e da vida musical em países marcados pelo Catolicismo como o Brasil.


A partir dessa constatação, procurou-se comparar o desenvolvimento ocorrido no Brasil com aquele de outras nações, considerar as interações entre os movimentos restauradores litúrgico-musicais nos vários contextos e suas extensões ao Brasil, assim como as suas consequências para a vida músico-cultural de regiões que também tinham sido até então marcadas pela tradição da música sacra com acompanhamento orquestral e que passou a ser combatida como profanizada e teatral.


A leitura de publicações da época, em particular daquelas dos principais vultos e centros do Cecilianismo, sobretudo de Ratisbona (Regensburg), além dos estudos mais recentes, foram possibilitadas sobretudo no âmbito da instalação da grande biblioteca especializada do instituto da organização pontifícia de música sacra em Maria Laach e que iniciou os seus trabalhos em 1977.


Esses estudos foram acompanhados por viagens a regiões e localidades caracterizadas pela cultura musical de igreja combatida e que mais intensamente experimentaram os efeitos dessa agressiva luta restauradora no século XIX. Com base nesses conhecimentos, procurou-se reconstruir panoramas da vida sacro-musical que, como no Brasil, foi marginalizada, submersa e silenciada. Os principais centros visitados foram aqueles da antiga Tchecoslováquia, da Baviera, da Áustria e do Norte da Itália, ou seja, regiões que tinham experimentado a ação recatolizadora no passado, sobretudo dos jesuítas, o que se manifestava da forma mais evidente na exuberância de suas expressões barrocas.


O início desses trabalhos foi marcado por estudos realizados em Salzburg e em Viena a partir de 1975 voltados à obra sacro-musical de Sigismund Ritter von Neukomm (1778-1858) (Veja), personalidade que relaciona de forma particularmente estreita a tradição coro-orquestral, anelos de reforma litúrgico-musical nas suas expressões mais remotas, desenvolvimentos político-culturais austríacos e europeus em geral da Restauração e o Brasil.


Não apenas o conhecimento do nome de um Pe. José Mauricio Nunes Garcia (1767-1830) na Europa foi considerado nesse contexto mais amplo das tendências do pensamento e da prática sacro-musical.


Música sacra do Brasil no Vaticano - início dos estudos de fontes em Roma


Em estudos desenvolvidos na Biblioteca Vaticana a partir de 1975 procurou-se constatar a presença de obras enviadas do Brasil à Santa Sé, podendo-se aqui alcançar novos conhecimentos relativos a autores que vinham sendo estudados já há anos de compositores de Itú, em particular Tristão Mariano da Costa. A revelação dessas relações entre o Brasil e Roma em época conturbada da história eclesiástica e de luta do movimento católico restaurativo, que teve o seu marco no Concílio Vaticano I possibilitou uma consideração mais diferenciada dos desenvolvimentos da música sacra no Brasil nas suas inserções em contextos globais. Ao mesmo tempo, como então salientado em conferências, trazia-se à consciência o papel desempenhado pelo Brasil na história eclesiástica do século XIX e a irradiação das decorrências em Roma no país e na América Latina em geral.


Procura de música sacra do Brasil em bibliotecas da Alemanha e da Áustria


Essa procura de obras de compositores brasileiros em bibliotecas e acervos europeus levou ao aprofundamento de conhecimentos que já haviam sido obtidos em trabalhos realizados no Brasil. Assim, as Matinas de Natal do Pe. José Maria Xavier impressa em Munique, conhecida desde visita do editor no âmbito dos trabalhos do Centro de Pesquisas em Musicologia à Lyra Sanjoanense em 1970, abriu caminhos para o tratamento de questões relativas à música sacra e a impressão musical em contextos euro-brasileiros.


O significado da impressão de uma obra que documentava o tratamento coro-orquestral dàs Horas e a prática alternada com o Gregoriano em época já relativamente tardia foi considerado em diversas ocasiões, na Europa e no Brasil. Serviu de exemplo em encontros em centros de observância da prática de coro do Ofício, em particular beneditinos, no Simpósio Internacional de Música Sacra realizado em São Paulo, em 1981, e foi a primeira obra de maiores dimensões executada por jovens musicistas alemães na Semana Teuto-Brasileira de Música em Leichlingen, quando então foi também republicada em fac-simile. (A.A.Bispo, "Die Weihnachtsmatutin von Pe. José Maria Xavier, 1885". Leichlinger Musikforum 1, 1981, 41-35)


Constatou-se, assim, que aquilo que os cecilianistas criticavam como manifestação de decadência, secularização, teatralidade e perda de sentido do sagrado era antes consequência de processos mais amplos e seculares de cunho missionário e contra-reformatórios de passado mais remoto. Tanto a continuidade e as transformações de uma vida músico-cultural assim originada e fomentada no século XIX, como o próprio movimento restaurador exigiam ser considerados em dimensões mais abrangentes em estreito relacionamento com a consideração de diferentes concepções relativas à música sacra e ao emprêgo da música em métodos missionários.


Os intentos reformatórios restaurativos do século XIX representaram nesse sentido um combate corretivo de resultados de processos de conquista ou reconquista espiritual do passado, quase que uma revolução cultural para regiões que tinham sido de missão e recatolização, na Europa e nas regiões extra-européias.


A recuperação pretendida de uma sacralidade na música de culto significava ao mesmo tempo que o uso da música instrumental e das artes para fins catolizadores em época de preocupações contra-reformatórias havia sido um veículo de propaganda, um meio para o alcance de fins que, alcançados, poderia dispensá-los.


A análise do desenvolvimento histórico da música sacra e de seu papel na vida cultural em geral de muitas regiões sob esse aspecto exigia diferenciações mais sensíveis do que aquelas em geral constatáveis em publicações musicológicas, sacro-musicais e litúrgicas.


Se os critérios do Cecilianismo e da reforma litúrgico-musical cujo marco principal foi o Motu Proprio de Pio X (1903) deviam ser relativados e mesmo criticados por terem levado a destruições de repertórios e práticas de uma vida musical organizada em várias regiões, não se podia também deixar de considerar os argumentos plausíveis e justificáveis desse combate, uma vez que trazia a consciência os aspectos negativos de um desenvolvimento desencadeados por intuitos de propaganda, atração e conquista espiritual através da música instrumental. Entre êles, não se podia deixar de compreender as razões dos defensores da reforma quando manifestavam a sua indignação perante a procura pretenciosa de brilho superficial que se depreendia da vaidade de cantores e instrumentistas, assim como da insolência de maestros e compositores da vida musical de igrejas marcada pela prática sacro-musical com acompanhamento orquestral.


Reconsideração do século XIX em anos de reforma pós-conciliares


Essa preocupação pela reconsideração diferenciada do século XIX na pesquisa musicológica processou-se anos que foram marcados por desenvolvimentos desencadeados pelo Concílio Vaticano II. Ela veio por caminhos indiretos de encontro aos intuitos reformatórios, uma vez que a revisão crítica e relativadora do Cecilianismo e da restauração líturgico-musical em geral como expressão do século do Historismo que se prolongara até meados do século XX correspondia à mudança de concepções e práticas pós-conciliares relativamente à situação anterior.


O redescobrimento de autores e obras esquecidas, marginalizadas e silenciadas do século XIX, vítimas da guerra restaurativa contra a música sacra com acompanhamento orquestral podia e devia ser assim considerado no debate sacro-musical no presente.


A sua relevância tornou-se evidente sobretudo no Congresso Internacional de Música Sacra realizado em Bonn em Colonia em 1979 e no qual vários brasileiros participaram. (Veja) Percebeu-se nesse evento marcado pela preocupação de perda do patrimônio músico-cultural de séculos da Europa, a tendência de dirigir a atenção reformadora segundo o desenvolvimento desencadeado pelo Concílio sobretudo às culturas extra-européias.


Essas porém, não eram consideradas nas suas inserções de séculos no processo de expansão do Cristianismo ocidental. Tornava-se necessário, assim, trazer à consciência que muitas regiões já possuiam uma própria história e expressões originadas em diferentes épocas e contextos, um patrimônio que devia ser tão considerado como no próprio continente europeu.


A contribuição da pesquisa brasileira servia também para trazer à consciência daqueles europeus preocupados com a perda do patrimônio sacro-musical que os seus anelos não eram coerentes, pois deixavam de lado importante parte do desenvolvimento histórico-musical da vida musical católica de vastas regiões marcadas no passado pela música com acompanhamento orquestral, em particular no Sul da Alemanha e na Europa Central.


Música sacra do século XIX no Simpósio „Música Sacra e Cultura Brasileira“ de 1981


Explica-se, assim, o significado que se concedeu à música sacra do século XIX na programação do Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira". Um dia - o 29 de setembro - foi dedicado ao complexo temático "Música religiosa no tempo do Império". Nele deviam ser lembrados compositores brasileiros caidos no esquecimento como representantes de toda uma vasta gama de nomes de músicos que dedicaram toda a sua vida à prática musical de igreja no século XIX e que foram marginalizados por uma literatura marcada ao mesmo tempo por concepções nacionalistas e da restauração litúrgico-musical.


Compositores assim esquecidos passavam a ser valorizados através da execução em atos litúrgicos e em concertos com a presença de destacados pesquisadores e representantes de instituições de renome internacional voltadas à música sacra, como o Pontificio Istituto di Musica Sacra. As obras apresentadas deviam ser precedidas, acompanhadas e seguidas de discussões de uma série de questões que tinham sido objeto de estudos e reflexões em diálogos na Alemanha e em Roma nos anos precedentes.


O tratamento dessas múltiplas questões ficou a cargo do editor desta revista, que tinha escrito dissertação sobre o assunto, tendo sido desenvolvido com a participação de vários pesquisadores, entre êles Luís Heitor Correa de Azevedo, Cleofe Person de Mattos, Francisco Curt Lange, Pe. Jaime Cavalcanti Diniz e Mons. Guilherme Schubert. As obras que foram executadas eram resultado das pesquisas que o editor desenvolvera e que tinham sido por êle em parte publicadas.


O dia foi aberto com missa na Igreja da Ordem Terceira do Carmo, celebrada por D. Joel Ivo Catapam, Bispo Auxiliar de São Paulo. As obras executadas foram a Missa Imaculada Conceição (Kyrie e Gloria, 1870) de Tristão Mariano da Costa; Credo, Sanctus e Agnus Dei de Dom Pedro I; e o Recitativo para o Pregador de André Gonçalves Paixão (1835).



As obras foram executadas pelo Coral Villa Lobos de Presidente Prudente e pela Orquestra Universitária de Concertos da Faculdade de Medicina de São Paulo, regida por Wenceslau Nasari Campos. Os cantos gregorianos, da festa de São Miguel, São Gabriel e São Rafael, ficaram a cargo do setor feminino do Coral do Estado de São Paulo, regido por Eleanor Florence Dewey (Ir. Maria do Redentor, C.R.).



À noite, realizou-se um concerto na Basílica de Nossa Senhora do Carmo, dedicado a obras coro-orquestrais de grande envergadura, executadas pelo Coral da Universidade Católica de São Paulo, preparado por Renato Teixeira Lopes, pelo Coral do Conservatório Musical Ernesto Nazareth, preparado por Roberto Dante Cavalheiro Filho e pela Orquestra Sinfônica Juvenil do Estado de São Paulo, regida por Juan Serrano. As obras executadas foram a Oratória de Nossa Senhora da Conceição (1833) de Elias Álvares Lobo e as Matinas de Natal de Nosso Sr. Jesus Cristo do Padre José Maria Xavier (1885).


Situação e perspectivas da música sacra coro-orquestral na Europa e no Brasil


O programa do simpósio previu o tratamento da situação e das perspectivas da música sacra com acompanhamento orquestral na Europa por Anton Dawidowicz (1767-1830), Mestre-Capela da Catedral de Salzburgo. A escolha de Salzburg adquiria um significado especial por ter sido um dos principais centros da música sacra de acompanhamento orquestral no passado.


O mestre-capela de Salzburg iniciou a sua exposição lembrando o grande Sínodo Diocesano de Salzburg realizado um ano após o Concílio e onde êle atuou como representante dos músicos de igreja. Nessa ocasião, teve a oportunidade de expressar algumas de suas reflexões a respeito das formas de configuração de solenidades. Como postulado fundamental, acentuou que os músicos de igreja estavam conscientes que no centro das solenidades devia estar Deus e não o homem. Essa observação era resultado dos diálogos desenvolvidos à época da preparação do evento para o tratamento do tema, quando lembrara-se que uma das causas apontadas por aqueles que criticaram e combateram a prática musical com acompanhamento instrumental do passado nas igrejas tinha sido a auto-glorificação de regentes e cantores. A prática de um repertório de fácil execução mas de efeito, grandiloquente nas suas expressões, favorecia um desvio de atenções do objetivo último da glorificação divina na magnificência da Criação através do emprêgo dos melhores meios e aptidões do homem ao engrandecimento do maestro e dos solistas. Esse desvio levava a distorções de personalidades, evidenciadas na arrogância de regentes, representando um problema cultural de amplas dimensões.


Assim, Dawidowicz salientou na sua conferência preparada para o Simpósio em São Paulo que deveria haver um equilíbrio entre a atividade, o ouvir receptivo e os períodos de silêncio. A atividade era aqui entendida como o agir dos fiéis na oração e no cantar, sob ouvir receptivo a vivência da palavra falada e da música vocal e instrumental, fosse esta executada por artistas profissionais ou amadores. Quanto aos períodos de silêncio, estes eram necessários para possibilitar a que cada um procurasse Deus pessoalmente.


Levando-se em consideração esses momentos, haveria segundo o mestre-capela de Salzburg inumeráveis variantes e diferenciações quanto à conformação do culto. Independentemente dos diferentes conteúdos das próprias solenidades - se missa, vésperas ou atos de palavra - para cada forma haveria uma diversidade. Esta era decorrente das diferentes situações, dos locais, espaços e níveis sociais, o que exigia em cada caso soluções especiais. 


Dawidowicz salientava que o celebrar e a vivência do culto apresenta diferentes pressupostos se se trata de uma solenidade festiva numa igreja abacial ou de um pontifical numa catedral. Lembrava que era bem pensado psicologicamente o fato de existir na Idade Média ao lado de cada Sé ou abadia uma assim-chamada "igreja de gentes". Em serviços divinos nessas "igrejas para o povo" procurava-se em especial a activitas no rezar e no cantar em comum, para o qual também contribuia a intimidade do espaço. Sabia-se bem que os fiéis num culto festivo em comunidade monástica ou numa solenidade pontifical numa Sé assistiam aos cultos com outra expectativa, esperando vivenciar a solenidade de forma adequada à arquitetura grandiosa, unindo-se e vibrando na sua experiência interna no ver e no ouvir, bem como também através da participação interna, pessoal na oração.


Dawidowicz salientava que no presente haveria a tendência exagerada de ver-se nesse tipo de forma de culto apenas o seu aspecto negativo, o seu triunfalismo, sendo este visto tanto no cerimonial circunstancioso e em parte ininteligível dos celebrantes como nas execuções concertantes dos cantores e músicos. A intenção de suprimir essa pompa supostamente tão fora de época, levava facilmente a eliminar a forma da solenidade, esquecendo-se das condições altamente diferenciadas individualmente da capacidade de vivência e da preparação dos fiéis. A questão litúrgica seria assim para Dawidowicz estreitamente relacionada com o meio: "o quê", o "como" e o "pelo quem" poderiam ser transmitidos pela música sacra enriquecida instrumentalmente.


Um dos pedidos feitos a Dawidowicz quando da preparação de sua exposição para o Simpósio de São Paulo era que oferecesse um panorama geral da situação da prática musical com acompanhamento instrumental nas sés e catedrais da Europa.


Seguindo esse pedido, Dawidowicz salientou que até o primeiro quarto do século XIX era algo natural que nas sés, catedrais e igrejas maiores conventuais, o culto nas festas solenes - mas também os capitulares durante a semana - a música fosse executada por cantores profissionais, membros de Kantoreien e instrumentistas também profissionais, das capelas de Côrte e da catedral. No decorrer das mudanças sociais no século XIX, essas instituições foram extintas, permanecendo apenas poucos institutos de capelas de meninos.


Fora da área eclesiástica, a participação de leigos floresceu e consolidou-se em todo o espaço europeu em numerosas associações corais, de oratório, academias vocais, sociedades filarmônicas orquestrais e outros agrupamentos.


De início, essas associações dedicaram-se sobretudo ao cultivo de oratórios na sala de concêrto, mais tarde, essas sociedades, em parte por si, em parte em co-operaçõo com institutos de meninos ainda existentes (assim em Salzburg), passaram a atuar também em atos de culto na catedral. Executavam-se as grandes missas dos clássicos vienenses (Haydn, Mozart, Beethoven) assim como Schubert e obras dos então modernos músicos, os românticos.


As negativas consequências do movimento de Reforma ceciliana para as missas orquestrais eram por demais conhecidas para serem acentuadas. O Sul da Alemanha, a Áustria e a Suiça não seguiram essa "onda purificadora" e conservaram por décadas da tempestade musical a sua música orquestral no culto, de modo que até mesmo alguns representantes da corrente ceciliana chegaram a compor missas orquestrais, como foi o caso de Ignaz Mitterer (1850-1924) e Josef Rheinberger (1839-1901).


Na atualidade, vivenciava-se segundo Dawidowicz de novo um grande processo transformatório. Através da influência da mídia - rádio, televisão, gravações - os fiéis tornaram-se mais críticos quanto ao que ouviam. Passaram a esperar execuções qualitativamente à altura daquelas que estavam acostumados a ouvir em gravações ou em emissões radiofônicas. Assim, não seria mais possível realizar missas orquestrais nas catedrais com músicos amadores. Os responsáveis eram obrigada empregar músicos e orquestras profissionais e isso elevaria muito os custos. Os recursos não davam para os gastos. Certos círculos do clero, além do mais, não desejavam mais missas orquestrais.


Levantava-se assim a questão se chegara ao fim a época da missa orquestral. Iria ser ela totalmente banida das igrejas, limitando-se às salas de concerto, sem elos com o culto? Dawidowicz lembrava que o ouvinte já se acostumara a vivenciar as paixões de Bach em auditórios, não mais percebendo o que se perde nessas obras executadas fora de sua função original. Tudo indicava, assim, que esse iria ser o destino das grandes missas dos clássicos e dos românticos. Levantava-se a questão, também, se haveria no presente compositores que ainda se interessassem pela missa orquestral. Estes encontravam-se inseguros, em dúvida em saber se valeria a pena tais criações se as obras não iriam ser executadas. Também perguntavam se haveria algum editor pronto para tomar a si o risco de editá-las. Dessa forma, todo um gênero estaria destinado a desaparecer.


Após tratar a situação nas catedrais e igrejas maiores, o mestre-capela de Salzburg chamou a atenção à situação da música instrumental nas igrejas paroquiais.


Lembrou em primeiro lugar o fato de já ter desaparecido a música orquestral do tipo antigo, como foi por décadas executada por amadores nessas igrejas, com muita boa vontade mas sem os meios necessários, um desenvolvimento que não era de todo lamentável. Responsáveis por esse desaparecimento eram segundo Dawidowicz os movimentos de reforma depois do Concílio, a influência da mídia na capacidade crítica dos fiéis e a pouca vontade de trabalho dos amadores. Estes não querem mais como no passado passar o seu tempo livre em ensaios, preferindo discotecas ou o consumo da televisão.


A consideração da situação da música instrumental nas igrejas paroquiais exigira hoje outras perspectivas de julgamento. A situação modificada após o Concílio exigia um cuidado especial a missas de crianças, a atos litúrgicos para jovens e missas paroquiais, diferenciando-os musicalmente.


Entre elas, o mestre-capela de Salzburg dedicou especial atenção às missas da juventude, um fenômeno que preocupava em particular músicos e teólogos mais conservadores em meados da década de setenta. Segundo êle, essas missas eram por demais compreendidas como "missas rítmicas" ou "missa de Jazz" na suposição de que apenas assim vinha-se de encontro aos jovens.


Muitas das críticas que foram feitas entre 1870 e 1930 contra a tendência profanizadora da música sacra, contra os exagêros das missas orquestrais e contra a execução qualitativamente insuficiente e diletante de amadores valeriam também para as missas da juventude. Como em muitos exemplos da criticada música de igreja do passado, na do presente poder-se-ia constatar a banalidade das composições, a vontade de exibição dos intérpretes, a auto-consciência arrogante de dirigentes e solistas e o nível diletante e baixo da execução.


Dawidowicz, porém, apelava para que se tivesse paciência para com esse desenvolvimento, uma vez que 15 anos nada representariam na história tão longa da música sacra. Em toda a época sempre houvera música de igreja de melhor ou menor valor. Gerações futuras, com maior distância, poderiam julgar com mais exatidão o valor dessa produção. Ainda faltava, porém,. compositores bem formados e músicos aptos que se dedicassem à missa da juventude. Talvez viesse uma época de destilação e de consolidação qualitativa de repertórios e práticas, caso fosse possível impedir o surgimento de um mercado do gênero. Devia ser visto como positivo o fato de que jovens em uma determinada fase da sua puberdade musical estivesem prontos a oferecer um sacrifício colocando as suas possibilidades musicais a serviço de uma tarefa mais alta.


Sem tratar na sua exposição da posição e do significado do órgão, Dawidowicz apenas menciona que uma interpretação correta do Concílio trazia à consciência que o organista teria passado a ter mais liberdade do que antes, ganhando novas tarefas. Isso nutriria a esperança que poderia haver uma valorização do órgão e do organista, levando a nova produção organística, desde que compositores estivessem prontos a considerar as novas exigências.


A música sacra enriquecida com instrumentos teria tarefas diferenciadas e importantes na liturgia paroquial de acordo com o caráter e o significado das festas. Ela podia servir ao acompanhamento do canto da assembléia, ao acompanhamento da música vocal do coro e solistas; realizar intermédios instrumentais que, segundo o Concílio, poderiam até mesmo ser introduzidos na missa.


Para o acompanhamento do canto popular, os instrumentos de sôpro de metal seriam particularmente aptos. Eles já eram empregados como substitutos de acompanhamentos de órgão em solenidades ao ar-livre ou junto com o órgão para a intensificação do caráter festivo no espaço interno das igrejas. Em muitos países na Europa, a música de sôpro estava muito bem organizada. A participação de grupos instrumentais nas celebrações, porém, ainda não adquirira o significado que seria justo. Faltariam acompanhamentos instrumentais adequados aos cantos regionais de uso.


Com referência ao emprêgo de instrumentos de metal no espaço das igrejas, Dawidowicz via como mais adequados conjuntos pequenos de 3 ou 6 instrumentais ou alguns instrumentos de madeira complementados por poucos de metal.


Para o desenvolvimento da música festiva de culto nas paróquias, os instrumentos permaneciam indispensáveis para o acompanhamento e o enriquecimento da música vocal. Alguns momentos deviam ser considerados: os instrumentalistas amadores, com capacidade técnica limitada, movidos porém pelo entusiasmo e a alegria do fazer música, podiam superar as deficiências. Devido à formação heterogênea de grupos de instrumentistas disponíveis nas paróquias, não se chegava em geral a formar uma orquestra mais propriamente dita, mas sim conjuntos variados.  Bons executantes de cordas tornavam-se raridade; encontravam-se com mais facilidade instrumentistas de sôpro.


Já essas razões dificultavam a escolha da literatura. Seria gratificante constatar que nos últimos anos haviam sido publicadas obras de fácil execução do Barroco tardio e do Pré-Classicismo. Elas podiam ser executadas com pequenos grupos, mas também aqui havia a necessidade de violinistas. Mais fácil seria a escolha de obras na área da assim-chamada missa de órgão com 4 a 6 instrumentistas de metal não-obrigados. Nesse tipo de instrumentação, alguns compositores haviam tentad escrever obras de execução mais acessível.


Decisivo seria uma mudança de pensar de compositores e músicos de igreja. As instrumentações tradicionais - orquestra de cordas e cordas mais sôpros, como mantinha-se na consciência de todos de acordo com modêlos do século XIX, já não seriam mais realizáveis. Teria mais sentido seguir o caminho de "instrumentos para a melodia", no qual apenas a tessitura é fixada, podendo-se por exemplo empregar o violino, a flauta-doce, a clarineta, o oboé para a voz de soprano e, para a mais grave, o violoncelo, a trompa, o trombone ou a tuba tenor. O grupo instrumental de acompanhamento deveria obviamente também servir para prelúdios, intermédios e postlúdios, podendo atuar também no Ofertório ou à Comunhão.


Na Baviera e na Áustria constatavam-se desde as décadas posteriores a 1950 uma espécie de Renascença do canto popular alpino e da música popular. Seguindo o modêlo da música antiga, haviam surgido novos cantos e novas peças instrumentais. Para celebrações especiais, criaram-se cantos religiosos para missas, usando-se para o seu acompanhamento instrumentos alpinos como cítara, Hackbrett, guitarra, violino e contrabaixo. Peças intrumentais completavam e emolduravam os cantos.


Os fatores decisivos para o sentido e o valor, a permanência e o desenvolvimento desses desenvolvimentos do Sul da Alemanha e da Áustria eram o gosto e a potência artística dos compositores da música popular, assim como a qualidade dos executantes. Para os músicos de igreja, levantava-se a questão até que ponto essa prática levava os fiéis dessa esfera cultural a uma vivência mais profunda da liturgia. Se esse caso excepcional de uma música sacra de acompanhamento instrumental do espaço alpino europeu pudsser ser transferido para outras condições culturais, isto apenas podia ser respondido por músicos de igreja conscientes de sua responsabilidade. Valores positivos desse fenômeno excepcional podiam ser constatados até mesmo na esfera da pastoral, mas sob a perspectiva musical, apenas o fator qualitativo devia ser decisivo.


Dawidowicz terminava a sua explanação lembrando que um coro de paróquia apenas vive se for integrado na vida da comunidade paroquial, também fora dos atos litúrgicos. Essa afirmação também valia para os músicos amadores que atuam na liturgia. Com a sua participação na esfera profana, todo o grupo musical, independentemente do tipo de instrumentos, possui tarefas e objeivos que garantem o espírito comunitário e mesmo a sua existência. Dever-se-ia ter consciência que na atualidade a música de amadores era marcada pela influência dos meios de comunicação e que educavam à passividade. A música de igreja representaria um dos últimos bastiões do fazer música para os leigos. Aqui, essa atividade podia manter-se viva, pois a ação musical surge integrada numa idéia mais elevada, tendo um objetivo.



Matéria elaborada por membros do ISMPS, revista e traduzida em versão modificada por

Antonio Alexandre Bispo







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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (ed.). "Música sacra do tempo imperial na reconsideração do século da emancipação política do Brasil".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 149/6 (2014:3). http://revista.brasil-europa.eu/149/Musica-sacra-seculo-XIX.html