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BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 149/14 (2014:3)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3111



Considerações sobre a transmissão da Cultura Clássica: a Naturalis Historia



Leonardo Ferreira Kaltner, UFF

 

Resumo


A obra Naturalis Historia de Plinius maior representa um marco histórico no pensamento da Antiga Roma. Plínio mostra-nos a possibilidade de o homem compreender o mundo que o cerca, a partir da observação da Natureza e de sua descrição, e nos demonstra como a percepção humana da realidade nos leva a encontrar uma unidade na própria Natureza. Estes pressupostos seriam fundamentais na época moderna para as Ciências Naturais, e neste aspecto, a Naturalis Historia de Plínio influirá potencialmente na obra dos naturalistas do século XIX. Investigamos nesse texto o processo de transmissão de textos clássicos até a Idade Moderna.


 

Introdução 

O presente artigo é fruto de uma pesquisa desenvolvida no âmbito do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas e no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade Federal Fluminense, intitulada O Latim Científico na obra Historia Naturalis Palmarum de Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868). Tendo por escopo a análise da presença da tradição clássica nas Américas, sobretudo pela análise linguística e tradução de obras escritas em Latim, cuja temática é o Brasil, traduzimos e analisamos a obra do naturalista alemão Carl F. P. von Martius em seu contexto cultural.

Desse modo, temos como escopo o interesse de pesquisa na Língua Latina em contextos que não estão vinculados diretamente às Culturas da Antiguidade Clássica. Logo, pesquisamos o Latim em diversas modalidades e períodos históricos que apresentam contextos sociais diversos da Antiga Civilização Romana. Investigamos, principalmente, autores que se expressaram em Latim na época moderna, tendo por objeto de estudos, atualmente a análise do Latim renascentista, dos séculos XV e XVI, e do Latim científico, dos séculos XVIII e XIX, e sua expressão no Brasil.

Assim, nos últimos anos, temos guiado nossa atenção a autores que além de se expressarem, modernamente, na antiga Língua do Lácio, também possuíram algum vínculo com o Brasil na composição de suas obras. Nesse contexto, investigamos, em nossa pesquisa de Mestrado e Doutorado, no Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a poesia épica do Pe. José de Anchieta, SJ, que viveu no Brasil Colônia do século XVI, tendo por principal objeto de estudos o poema épico De Gestis Mendi de Saa (Sobre os Feitos de Mem de Sá), poema este que foi publicado pela primeira vez no ano de 1563, na tipografia da Universidade de Coimbra.

Atualmente, encetamos uma pesquisa relativa ao Latim Científico, presente nas obras do naturalista alemão Carl Friedrich Philipp von Martius, que viveu entre 1794 e 1868, tendo vasta produção em Latim Científico publicada no século XIX. Destacam-se as obras de botânica de Carl Friedrich Philipp von Martius, por terem sido escritas em Latim científico, como era o padrão da época, e por descreverem em grande parte a Natureza do Brasil. Nossa pesquisa atual se remete a duas obras desse renomado naturalista, a Historia Naturalis Palmarum (História Natural das Palmeiras) e a Flora Brasiliensis (Flora Brasileira).

A transmissão de textos clássicos: contexto cultural

Buscamos descrever a gênese do Latim Científico, a partir da transmissão de textos da Latinidade Clássica, da época de Roma até a Renascença, analisando o processo cultural que legou à posteridade os autores clássicos latinos como modelo aos naturalistas dos séculos XVIII e XIX, tendo como sua principal influência Plínio, o Velho, através de sua obra Naturalis Historia, que serviria de modelo para as expedições científicas de naturalistas, como Alexander von Humboldt e Carl Friedrich Philipp von Martius, por exemplo.

Os textos das Culturas da Antiguidade Clássica advêm de uma tradição cultural que perpassou diversos momentos históricos e sociais da história do mundo ocidental. Dessa forma, o conhecimento de mundo necessário à leitura, interpretação e análise de muitos desses textos da Cultura Clássica leva-nos a uma análise cultural do processo de transmissão desses textos.

Para uma análise cultural do processo de transmissão de textos clássicos para a Idade Contemporânea, uma das possibilidades de enfoque se dá a partir de uma análise sobre a história da educação medieval ocidental. Assim, vamos buscar desenvolver, a partir de uma releitura dos pressupostos apresentados por Mario Alighiero Manacorda, em sua obra História da Educação, a relação entre a educação na Idade Média europeia e a transmissão dos textos Clássicos Latinos.

No século VI d.C., no período que também nos é conhecido como a Alta Idade Média, após a queda do Império Romano, em 476 d.C. e antes do século X d.C., apresenta-se um contexto cultural e político que seria o fator determinante para a sobrevivência dos textos clássicos na posteridade. Este novo contexto político-cultural marcaria plenamente o período conhecido por Idade Média, com o surgimento de alguns reinos romano-bárbaros na região do antigo Império do Ocidente, cuja única autoridade romana se sustentaria na Igreja e no papado (MANACORDA, 2006, p. 111). Além destes reinos, este período seria marcado também pela conservação do Império Romano do Oriente, que tentaria pela via militar a reconquista do Ocidente. Assim, neste novo contexto a Cultura Clássica Latina seria absorvida, reinterpretada e transmitida à posteridade.

Desta forma, na Alta Idade Média, toda a educação do Ocidente tenderia a se centralizar na Igreja Romana, sob o comando de uma autoridade única: o papado, como sucessor dos antigos imperadores romanos. Havia, pois, duas tendências de escolas cristãs na Alta Idade Média, a escola episcopal, para a formação do clero secular, que se situava nas cidades romano-bárbaras, e havia, também, as escolas cristãs cenobíticas, responsáveis pela formação do clero regular, situando-se no campo e afastada das cidades (MANACORDA, 2006, p.114). No século VI d.C., a paidéia de Aquiles já havia cedido terreno à paidéia de Cristo, e a Cultura Clássica estaria desvinculada da educação formal cristã, reconfigurando-se como elemento estranho ao cristianismo, sob o signo de uma cultura pagã.

Ao mesmo tempo, esta seria uma época de intenso analfabetismo no mundo ocidental, logo a postura da incipiente Igreja, face às dificuldades enfrentadas, se refletiria nos sucessivos Concílios do século V d.C., temos, assim, na atitude dos papas, o reflexo desta mentalidade medieval cristã. Em 400 d.C., por exemplo, sob o papado de Santo Anastácio I, o V Concílio de Cartago proibiria aos bispos a leitura de textos clássicos (MANACORDA, 2006, p.112). Lembremos também que, em uma época próxima a desta proibição, no III Concílio de Cartago, em 397 d. C. fora legitimado o cânon bíblico cristão ocidental (LIMA, 2007, p.86).

Entretanto, a educação, neste período conturbado da história do Ocidente, sofria sérias descontinuidades, a tal ponto que no Concílio de Roma, em 465 d.C., sob o papado de Santo Hilário, ocorrera a proibição de ordenação de bispos que fossem analfabetos, não sendo esta proibição, todavia, de todo cumprida (MANACORDA, 2006, p.112). Era, portanto, inviável que uma tradição letrada como a Cultura Clássica Latina se mantivesse como atividade constante na Igreja da Alta Idade Média. Em seguida, no ano de 529 d.C., o imperador Justiniano decreta, no Império Romano do Oriente, o fechamento definitivo da escola filosófica de Atenas, antigo centro de formação da elite cultural romana (MANACORDA, 2006, p.112). Estava, pois, a Academia de Platão finalmente fora do novo contexto da educação cristã e o movimento neoplatônico sofreria, então, uma séria descontinuidade, sendo estigmatizado como paganismo. Desta forma, a tradição clássica das artes liberais tornava-se cada vez mais estigmatizada e sua transmissão sofria uma ruptura.

Após esta série de reconfigurações, que buscava transformar e recriar o contexto cultural e espiritual do mundo ocidental surge, paulatinamente, um novo modo de organizar o conhecimento medieval, que é a escolástica. Nos Statuta Ecclesiae Antiquae de 475 d.C. permitia-se, por exemplo, a leitura dos livros dos “hereges”, se fosse conveniente à “exigência dos tempos”. Por outro lado, Cassiodoro, fundador do Mosteiro Vivarium (MALERBA, 2010, p.363), que influiu profundamente na corte do rei ostrogodo Teodorico, buscava a conciliação entre o classicismo e o cristianismo, apontando um novo rumo para a interpretação das Sagradas Escrituras pelos magistri saecularium litterarum (MANACORDA, 2006, p.123).

A partir do papado de São Gregório I, Beneditino, ocorrido entre 590 a 604 d.C., as obras dos autores clássicos helênico-latinos são confrontadas com os clássicos cristãos, havendo posteriormente uma “revalorização da cultura literária descendente da cultura clássica” (MANACORDA, 2006, p.132). Desse modo, a Cultura Clássica começa a ser reinterpretada de acordo com a nova educação ocidental, dentro do contexto cultural do cristianismo, transformando-se em estudos pragmáticos a serviço da fé e subordinados às Sagradas Escrituras, conforme teorizava Isidoro de Sevilha. Nesta mesma época originar-se-ia o Canto Gregoriano, substituindo-se o legere e o eloqui pelo canere. Manacorda comenta assim este momentum:

“É uma cultura nova, já totalmente “medieval” e cristã. Esta cultura herda, queira ou não, junto com a língua latina, infinitas reminiscências das tradições clássicas: destas, porém, essenciais são os aspectos formais. Sobrevivem não os grandes autores (estes, no caso, são considerados como modelos de estilo ou são revividos cristãmente, como Virgílio ou Sêneca, que foram considerados cristãos), mas quase exclusivamente aqueles textos da “preparação formal” que são as compilações gramaticais da decadência latina: as gramáticas de Donato e de Prisciano, com sua tradicional forma tratadístico-expositiva, que depois será por muito tempo abandonada, ou a síntese das sete artes liberais de Marciano Capela” (MANACORDA, 2006, p.125).

A expansão dos árabes no Mediterrâneo e a assimilação, pelos povos latinos e celtas, de uma nova cultura sincrética cristão-bárbara, no Ocidente, tornam-se elementos que vão criar uma descontinuidade da Cultura Clássica helênico-latina no continente europeu (STEIN, 2004, p.209). Assim, as Culturas da Antiguidade Clássica, sobretudo a Cultura Clássica de Roma, passariam por um processo de intenso transculturalismo na Alta Idade Média, sendo reinterpretadas por novos valores. E, desta forma, no período medieval, tanto Grécia, quanto Roma, culturas de um antigo fundo indo-europeu receberiam profundas influências do mundo semítico, do Oriente próximo, tanto pelas tradições judaico-cristãs dominantes, quanto pelo intenso contato com o mundo árabe, através, inicialmente, do Mediterrâneo. A educação cristã seguiria na Alta Idade Média, então, o mos synagogae.

No século VIII d.C., após sucessivas migrações e reconfigurações dos reinos bárbaro-cristãos, Carolus Magnus (742-814 d.C.), rex Francorum (rei de França) consegue expandir seu poder a ponto de atingir a Lombardia, na Itália, antes dominada pelos lombardos, tribo oriunda dos suevos (FIORIO, 2011, p.1-5). Visando reconstituir a grandeza outrora perdida do Império Romano do Ocidente, também em oposição à Imperatriz Bizantina Irene de Atenas (752-803 d.C.), do Império Romano do Oriente, Carlos Magno é coroado recebendo o título de Imperator Augustus Romanorum (Augusto Imperador dos Romanos), fundando, em seguida, o Imperium Romanum Sacrum, sob o papado de São Leão III (LOYN, 1997, p.73-75). Dessa forma, esta nova reunificação do mundo latino teria como uma de suas prioridades deter a expansão dos árabes, que já dominavam a península ibérica, desde 711 d.C., tendo subjugado a antiga Lusitania e a Hispania (ZAIDAN, 2010, p.60-61). Estaria, então, a cristandade romana unificada por uma nova configuração dos reinos ocidentais.

Assim, as três potências militares deste momento histórico seriam os árabes, que vivenciavam a Idade de Ouro do mundo islâmico, o Império romano-bizantino do Oriente, que estava em guerra com os árabes também, e o Sacro Império Romano-Germânico, ápice de unificação dos reinos latinos, celtas e germânicos de cultura cristão-bárbara. Temos, portanto, um novo contexto multicultural que surge neste período histórico, em que o equilíbrio de poder destas novas civilizações redundaria em conflitos e tensões, que caracterizariam todo o período medieval. Neste contexto, a Cultura Clássica Latina ressurge no Ocidente, como marca identitária cultural, sendo conhecido este processo social e histórico também por renascença carolíngia, estando ainda assim a Cultura Clássica subordinada ao cristianismo (JANOTTI, 1992, p.167-168).

Após a Constituição Romana de 1º de novembro de 824 d.C., em que se firmava o Sacrum Imperium frâncico (MCBRIEN, 2004, p.137-138), o Concílio de Roma de 826 d.C., sob o papado de Eugênio II, determina que o clero regular tenha em sua formação, além dos sagrados dogmas, o ensino de letras e de artes liberais, o que se remete à Cultura Clássica Latina, que se transforma aos poucos, novamente, em um padrão educacional do Ocidente (MANACORDA, 2006, p.131-134). Há a predominância de três tipos de escola neste momento histórico: a escola de leigos, mantida pelo Estado nas cidades, a escola eclesiástica, nos campos, e as escolas nos Mosteiros para os oblatos. Dessa forma, a cultura se irradia dos mosteiros para o campo e para as cidades, difundindo-se a Cultura Clássica como marca identitária do Ocidente, ainda que de maneira tênue e sujeita aos interesses do papado.

O final da renascença carolíngia é marcado por mais dois séculos de estagnação em relação à educação. Somente no século XI d.C. surgirão os grandes centros urbanos medievais e com eles a estrutura que dará suporte ao início de atividades das Universidades no Ocidente, sobretudo, em relação à formação laica de quadros civis para a administração urbana e das relações comerciais, mas ainda sob jurisdição do papado. Inicialmente, o ensino universitário abarcará, como processo intercultural, o ensino das artes liberais, do trívio e do quadrívio, a medicina e a jurisprudência, a partir de 1140, quando seria criado, então, o curso in utroque jure, que abarcaria o Direito Canônico e o Direito Civil romano, a partir da compilação por Gracianus em sua obra Concordia discordantium canonum também conhecida por Decreto de Graciano (MANACORDA, 2006, p.145-147).

Não podemos deixar de citar a educação militar e cavalheiresca, no período posterior ao século XI d.C., sobretudo após o início das cruzadas, empreendidas pela Ordem do Templo, os Pauperes Commilitones Christi Templique Salomonis (HASE, 1855, p.232), em que a sociedade medieval europeia ocidental iniciou a ultrapassar as fronteiras culturais entre o ocidente e o oriente, configurando o Multiculturalismo que permitiria, posteriormente, um maior contato com tradições da Antiguidade Clássica. 

Também em fins da Idade Média, cumpre notar que a educação oferecida nas corporações de ofícios é um outro marco para o início da educação baseada no ensino das artes liberais, derivadas, por exemplo, de guildas, como aquelas oriundas da construção das catedrais medievais (LOYN, 1997, p.110-111, p. 81). Dessa forma, na Baixa Idade Média, começa surgir um novo contexto educacional que redundaria, nos próximos séculos, na Renascença, propriamente dita, com a criação da tipografia, momento em que as Letras Clássicas ressurgiriam como Humaniores Litterae na tradição universitária europeia, aproximando-se da concepção atual de Culturas da Antiguidade Clássica.

A transmissão material dos textos clássicos

Após vislumbrarmos, brevemente, o contexto intercultural no qual os textos das Culturas da Antiguidade Clássica latina foram transmitidos à Idade Contemporânea, cumpre analisarmos como foram transmitidos esses textos materialmente. Se por um lado, temos o valor cultural dos textos que originaram a Literatura Clássica Latina como um elemento de permanência na tradição do ocidente, por outro cumpre-nos investigar também como se deu a técnica de transmissão destes textos, o que seria fator determinante para se explicar porque nem todos os textos da Cultura Clássica Latina atingiram a posteridade. Para a descrição que aqui apresentamos, baseamo-nos, sobretudo, na obra Introdução à Didática do Latim (1959), cujo autor foi o Professor Ernesto Faria, obra fundamental sobre o tema.

Para a compreensão desse processo histórico, que é a transmissão dos textos clássicos latinos, cumpre salientarmos que não possuímos contemporaneamente nenhum manuscrito integral ou fonte textual completa da época clássica da República ou do Império Romano. Todas as fontes textuais dos autores clássicos latinos da civilização romana são fontes medievais, sobretudo, devido às condições materiais de transmissão destes textos. Tendo em vista que os romanos se utilizaram de tiras de linho, os libri lintei, de papiros e pergaminhos, para escrever e publicar textos manuscritos, somente os últimos teriam alguma chance de atingir a posteridade:

“Os primeiros romanos costumavam escrever em tiras de linho, donde os libri lintei, sendo que este hábito ainda se conservou por muito tempo depois nos textos de lei. Mas os dois tipos principais de livros que conheceram foram os papiros e pergaminhos. ” (FARIA, 1959, p. 152).

O papiro teve a sua origem no Egito, sendo um dos mais antigos a contabilidade do rei Assa (3580 – 3536 a.C.). Entretanto, o papiro seria idealmente conservado apenas nas condições climáticas do Egito. Mesmo assim, o papiro torna-se comum na Grécia do século VI a.C., e em Roma a sua adoção data do III século a.C., ocorrendo a sua aceitação, todavia, somente na época clássica. Seu maior inconveniente seria a fragilidade e a dificuldade de manuseio em rolos pesados, o que em latim chamava-se uolumen, de onde provém o termo “volume”. O papyrus é originário de uma planta, o Cyperus papyrus, abundante no Norte da África (QUATTROCHI, 2012, p.1294) tendo sido largamente utilizado no Antigo Egito, na Babilônia, pelos povos hebreus, e em seguida por gregos e romanos.

Já o pergaminho, oriundo da cidade de Pérgamo, começa a circular e a ser encontrado em Roma no I século a.C. (FARIA, 1959, p. 155). Na Idade Média, com o triunfo do cristianismo substitui definitivamente o papiro. O pergaminho é oriundo de fonte animal, da pele curtida de bezerros, cordeiros ou ovelhas, sendo um elemento mais abundante em regiões com clima diferenciado do Antigo Egito, o que facilitou a sua difusão. Dessa forma, praticamente todos os textos escritos em papiros supervenientes à posteridade foram recopiados em pergaminhos. Logo os mais antigos fragmentos que possuímos de texto latino em pergaminho datam dos séculos III e IV d.C. Por fim, na Idade Média, o antigo uolumen, em rolos de papiro, cede lugar ao codex, com pergaminhos sobrepostos, com uma organização mais próxima do que concebemos como livro.

A época de obscurantismo, iniciada no III século d.C., foi marcada por uma intensa invasão estrangeira em Roma, pela crescente cristianização dos povos bárbaros e pelo declínio do Latim Clássico, cuja tradição foi taxada e estigmatizada como pagã, como vimos anteriormente. O reflexo material, pois, desse período histórico é a perda de inúmeros papiros e pergaminhos nos incêndios e pilhagens sucessivos, a dissolução de acervos e bibliotecas, e uma profunda descontinuidade na tradição literária e filosófica. Logo não há textos latinos clássicos completos anteriores ao IV século d.C.:

“...o uso do pergaminho em detrimento do papiro só se verificou pelo IV século. Ora em vista do material usado anteriormente, a necessidade de continuamente se fazerem novas cópias dos papiros, entre outros grandes inconvenientes, trazia o de se multiplicarem as probabilidades de erros dos quais Cícero já tanto se queixava. Além disso, estragando-se com facilidade, nenhum deles conseguiu atravessar os tempos até hoje, restando-nos um ou outro fragmento, como por exemplo, os descobertos em Herculanum, ou então (...) os fragmentos de um resumo de Tito Lívio. Esta a razão de ser a papirologia grega de muito maior importância do que a latina. ” (FARIA, 1959, p. 156-157)

O período de Renascença Bizantina, em 330 d.C., após a transferência da capital do Império para Bizâncio por Constantino, foi um dos principais fatores para a preservação dos manuscritos mais antigos que possuímos de um texto clássico latino. Há cerca de seis manuscritos fragmentários de Vergílio em letra capital, um de Terêncio e um de Salústio incompleto, datados deste período histórico (FARIA, 1959, p. 158). Todavia, dada a magnitude da Cultura Clássica Latina, são pouquíssimos exemplares que nos restaram deste período histórico.

Durante o período que ficou conhecido por era merovíngia, que foi do V século d.C. até a época de Carlos Magno, temos uma mudança histórica, em relação aos textos da Latinidade Clássica, que é fundamental para a sua transmissão até a época contemporânea. Graças a São Bento, os monges passam a ter, entre os seus votos de obrigação, a cópia dos antigos manuscritos latinos, o que executam nos scriptoria dos Mosteiros. Ainda que muitos pergaminhos antigos, com textos clássicos latinos, tenham sido apagados, para serem reutilizados com textos cristãos, é graças a esse movimento cultural que possuímos, ao menos parcialmente, textos da Antiguidade Clássica Latina em nossa época contemporânea.

As cópias de manuscritos vão se difundir, sobretudo, na época da Renascença Carolíngia, do período de reinado de Carlos Magno até o século XII. Há, nesse momento histórico, vários escritórios de copistas, e a cidade de Tours se torna uma fonte irradiadora para a cultura clássica latina, ainda que a escrita sofra deformações com abreviações excessivas. Ao mesmo tempo, com a criação da fonte carolíngia minúscula, origem da letra minúscula, a leitura torna-se mais simplificada, e grande parte dos manuscritos em Latim que subsistem é dessa data.

Os séculos XII e XIII serão, todavia, séculos de nova decadência, até o período do Renascimento, quando os manuscritos, oriundos em sua maioria dos Mosteiros e da corte, começarão a ser comparados para serem reeditados em papel, no formato de livro, na tipografia das Universidades, nas grandes cidades, após a criação da imprensa no século XV. E, dessa forma, a Cultura Clássica Latina transmite-se até os dias de hoje, estando também presentes nas novas mídias digitais.

Um exemplo: Naturalis Historia de Plinius maior

Vejamos, como exemplo da transmissão de textos clássicos, a obra Naturalis Historia de Plinius maior. Ainda que o autor tenha vivido provavelmente entre 23 d.C. e 79 d.C., os manuscritos mais antigos e completos deste texto que possuímos datam dos séculos VIII ao X d.C., como o Codex Leidensis Vossianus fol. N. IV (A), o Codex Parisinus Latinus 4860, o Codex Monacensis Frisingensis 164, dentre outros. A partir deles a obra foi reeditada, no século XIX, no ano de 1866 em Berlim, por Detlefsen, de quem transcrevemos a leitura abaixo, de um trecho da Naturalis Historia de Plinius maior como exemplificação (PLINIUS, 1866, p. 71 – 72).

Naturalis Historia, II, 1:

Cap. 1, Sec. 1

Mundum et hoc quodcumque nomine alio caelum appellare libuit, cuius circumflexu degunt cuncta, numen esse credi par est, aeternum, inmensum, neque genitum neque interiturum umquam. Huius extera indagare nec interest hominum, nec capit humanae coniectura mentis. Sacer est aeternus, inmensus, totus in toto, immo vero ipse totum, infinitus ac finito similis, omnium rerum certus et similis incerto, extra intra cuncta complexus in se, idemque rerum naturae opus et rerum ipsa natura. Furor est mensuram eius animo quosdam agitasse atque prodere ausos, alios rursus occasione hinc sumpta aut his data innumerabiles tradidisse mundos, ut totidem rerum naturas credi oporteret, aut, si una omnes incubarent, totidem tamen soles totidemque lunas et cetera etiam in uno et immensa et innumerabilia sidera, quasi non eadem quaestione semper in termino cogitationis occursura desiderio finis alicuius aut, si haec infinitas naturae omnium artifici possit adsignari, non idem illud in uno facilius sit intellegi, tanto prasertim opere. Furor est, profecto furor, egredi ex eo et, tamquam interna eius cuncta plane iam nota sint, ita scrutari extera, quasi vero mensuram ullius rei possit agere qui sui nesciat, haut minor, homines videre quae mundus ipse non capiat.

Tradução

“O mundo e este fenômeno que temos por costume chamar com o nome de céu, que em sua circunferência recobre a todas as coisas (é comum que também seja venerado como uma divindade), é considerado eterno, imenso, sem origem e nunca terá um final. Não é interesse dos homens indagar o que há além dele, nem o compreende a razão da mente humana. Ele é sagrado, eterno, imenso, o todo dentro do todo, pois, bem verdadeiramente, ele é o próprio todo, infinito e similar ao finito, determinado dentre todas as coisas e similar ao indeterminado, encerrando em si tudo que está fora e o que está dentro, ao mesmo tempo o trabalho da natureza e a própria natureza. É loucura acreditar que alguns homens ousados tenham pensado consigo e descobriram a medida do mundo e do céu, e que outros homens, em seguida, a partir daí, aproveitando a ocasião, ou esta sendo-lhes oferecida, apresentaram inúmeros mundos, conforme fosse oportuno creditá-los a tantas diferentes naturezas, ou se, em uma só natureza, penderiam todos esses outros mundos, contudo, com tantos sóis e com tantas luas, e também com tantas coisas a mais em uma só medida, tanto com imensas, quanto com inumeráveis estrelas. De modo que, nesta mesma questão, sempre na conclusão de nosso raciocínio, não nos viria logo ao pensamento, pelo desejo de alguma definição ou, caso esta infinitude da natureza pudesse ser atribuída ao artífice de todas as coisas, não seria, todavia, isto mais fácil de ser compreendido em um só mundo, principalmente de tal modo. É loucura, sem dúvida loucura, afastar-se deste mundo, como se todas as coisas internas dele já tivessem sido percebidas plenamente, e, desta forma, a tal ponto explorar as coisas externas, sendo que, em verdade, aquele que nada sabe de si não poderia determinar a medida de nenhuma outra coisa; nem de menor importância, podemos afirmar que ocorreria que estes homens veriam coisas que o próprio mundo não possui.”

Conclusão

A título de conclusão, convém salientarmos que a Idade Média não pode ser considerada apenas como um período de obscurantismo no mundo ocidental. Se, por um lado, o eclipse do Império Romano daria fim às composições literárias da Cultura Clássica Latina, por outro, somente na Idade Média seriam criadas e organizadas as técnicas de transmissão dos textos que nos permitiriam conhecer o apogeu da Civilização Romana. Dessa forma, o pensamento das Culturas da Antiguidade Clássica, pelo teste da temporalidade atravessou eras e diversos contextos culturais.

Assim, todo estudo vinculado à Cultura Clássica Latina é antes de tudo um estudo voltado ao patrimônio cultural medieval, como procuramos demonstrar. Esta interdisciplinaridade é de tal modo tão patente que não podemos dissociar o estudo de nenhum autor clássico latino dos estudos sobre manuscritos medievais, e desta forma, a Cultura Clássica é um fenômeno complexo de estudos que nos leva além das Culturas da Antiguidade, rumo ao mundo medieval. É somente nesta perspectiva interdisciplinar que podemos aquilatar a origem da Cultura Clássica enquanto marca identitária ocidental.

Temos, portanto, nas obras dos naturalistas dos séculos XVIII e XIX uma recepção de um fundo cultural antigo, que dialoga com a possibilidade de compreensão e de representação da natureza pelo ser humano, como encontramos na Naturalis Historia de Plínio. O que influirá diretamente nas viagens e nas expedições de Carl Friedrich Philipp von Martius ao Brasil do século XIX.


 

Bibliografia

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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Kaltner, Leonardo F. "
Considerações sobre a transmissão da Cultura Clássica: a Naturalis Historia". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 149/14 (2014:1). http://revista.brasil-europa.eu/149/Naturalis-Historia.html