Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Catedral de S.Paulo. Foto A.A.Bispo 2007. Copyright


Catedral de S.Paulo. Foto A.A.Bispo 2007. Copyright


Catedral de S.Paulo. Foto A.A.Bispo 2007. Copyright


Catedral de S.Paulo. Foto A.A.Bispo 2007. Copyright


Catedral de S.Paulo. Foto A.A.Bispo 2007. Copyright


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Catedral de S.Paulo. Foto A.A.Bispo 2007. Copyright


Catedral de S.Paulo. Foto A.A.Bispo 2007. Copyright


Catedral de S.Paulo. Foto A.A.Bispo 2007. Copyright


Catedral de S.Paulo. Foto A.A.Bispo 2007. Copyright




Catedral de S.Paulo. Foto A.A.Bispo 1981. Copyright


Catedral de S.Paulo. Foto A.A.Bispo 1981. Copyright

Fotos A.A.Bispo 1981 e 2007 ©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 149/3 (2014:3)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3100



Prioridade aos pobres e empobrecimento
Dilemas e incongruências no pensamento e nas ações entre justiça social e patrimônio cultural Vigência de problemática tematizada em 1981 na Catedral de São Paulo
em celebração de Dom Paulo Evaristo Cardeal Arns O.F.M. (1981)




Este texto deve ser compreendido à luz do escopo geral dos trabalhos divulgados na Revista Brasil-Europa do corrente ano. Estes são voltados a balanços e revisões de caminhos, a reconscientizações de objetivos e a análises do programa de interações que teve o seu início em 1974. (Veja)


Esses números da Revista consideram sobretudo decorrências das décadas de 70 e 80 do século passado, caídas no esquecimento ou desconhecidas. Procuram contribuir a reaprumos, ao reconhecimento de possíveis desvios e a que se evitem repetições de idéias, projetos e iniciativas de um desenvolvimento da história recente que já é há muito marcado por interações internacionais.



 
Sao Paulo. Foto A.A.Bispo 2013. Copyright
Na sua estadia no Brasil, nos seus atos e pronunciamentos, o Papa Francisco vem demonstrando desde o início do seu Pontificado a atenção que deve ser dedicada aos pobres.


Em Evangelii Gaudium, de 24 de novembro de 2013, o capítulo II, voltado à crise do engajamento comunitário, trata de alguns desafios do mundo de hoje, do não a uma economia da exclusão, à divinização do dinheiro, a um dinheiro que governa e que, em lugar de servir, leva à inegualdade social e esta à violência. (op.cit. 50-51)


Seguindo-se a esses pontos de critica econômico-social, o Pontífice passa a considerar desafios culturais, os da "inculturação" e das culturas urbanas. Todo um capítulo - o Quarto - é dedicado à dimensão social da Evangelização. Neste, um subcapítulo trata da integração social dos pobres e à posição preferencial dos pobres. (op.cit. 186-201)


A consideração adequada dessas importantes orientações nos seus elos com questões culturais necessita partir do conhecimento de caminhos até agora percorridos, de reflexões e iniciativas das últimas décadas.


No seu conteúdo principal, os pensamentos que agora voltam a ser acentuados estiveram já no centro das reflexões da missa de abertura do Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira", de 1981.


É importante recapitular essa celebração no âmbito do evento, uma vez que demonstrou a mesma preocupação sob signo diverso relativamente ao campo de forças e tendências internas da Igreja e nas constelações políticas internacionais e no Brasil.


Tendo sido um simpósio primordialmente nascido de intentos científicos e político-culturais, a sua recapitulação traz à consciência problemas então levantados e que não podem ser esquecidos na atualidade ao voltar-se a salientar
Catedral de Sao Paulo. Foto A.A.Bispo 1981. Copyright
orientações já então pronunciadas pela autoridade eclesiástica.


Essa recapitulação traz à consciência também as estreitas interações entre essas orientações e concepções culturais, de modo que a consideração de contextos nos quais são pronunciadas surge como necessária para que as reflexões possam desenvolver-se sem repetições e de forma efetiva para a prática.


Em linhas sumárias, o evento de 1981, quanto ao fato de ter nascido primordialmente de preocupações científico-culturais, teve duas finalidades principais:


A primeira era resultante de um programa de estudos, contatos e intentos de cooperação internacional preparado no Brasil no início dos anos 70 e desenvolvido na Alemanha a partir de 1974 graças ao apoio do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) (Veja).


Esse programa originara-se de anelos de renovação dos estudos culturais a partir de uma orientação das atenções a processos, superando-se compreensões e metodologias disciplinares determinadas por categorizações de esferas do erudito, do folclórico e do popular na cultura. Nesse pensar em compartimentos via-se uma das razões da pouca atenção dada a expressões e desenvolvimentos culturais intermediários ou transpassadores dessas esferas, em especial da cultura popular, cujo significado evidenciava-se cada vez mais com a ação dos meios de comunicação. (Veja)


Entre os aspectos pouco considerados nos estudos culturais incluiam-se os coros e orquestras de igreja do passado mais remoto, em especial do século XIX, os seus repertórios, compositores e uma prática musical de igreja que muitas vezes, em particular em cidades menores e em igrejas de bairros, dificilmente podia ser inscrita em compartimentos definidos do erudito e do popular.


Sao PAulo. Foto A.A.Bispo 2013. Copyright
Reconheceu-se, nesses estudos, que esse problema da não-consideração de configurações culturais na pesquisa - explicável pelo pensamento dirigido a compartimentos qualificados como artístico e elevado, de obras de arte, ou popular - correlava com problemas sociais e humanos, uma vez que silenciava nomes, obras e rêdes da vida cultural, em particular daquelas de comunidades menores e de menores recursos. (Veja)


Reconheceu-se, sobretudo, que em grande parte essa situação fora agravada no passado por desenvolvimentos eclesiásticos de reforma litúrgico-musical de natureza restaurativa da época do Historismo e cuja maior expressão alcançara no Motu Proprio de Pio X (1903).


Representando uma recepção no Brasil de correntes européias do Historicismo, vigorosas sobretudo na Alemanha, esse movimento restaurador caracterizou-se pela valorização do Gótico e pelas normas corretivas de desenvolvimentos vistos como abusos estabelecidas no Concílio tridentino.


O ímpeto corretivo de decadências e perda de sacralidade levou na Europa a um intenso combate da música sacra com acompanhamento instrumental, cultivada sobretudo em regiões centro-européias que haviam passado pela ação da Contra-Reforma missionária do passado.


Essa propaganda e esse combate tiveram necessariamente efeitos desastrosos sobretudo para países como o Brasil, onde grande parte da vida cultural e musical centralizava-se nas igrejas, sobretudo naquelas de cidades do interior. As irmandades, mesmo as mais pobres, em particular também aquelas de africanos e seus descendentes, representaram esteios dessa vida cultural, com as suas próprias lideranças, práticas de ensino e execução, obras e tradições.


O combate e por fim a superação das estruturas assim desenvolvidas através dos séculos significou a extinção de coros e orquestras, a retirada da principal função de instrumentistas, a perda de sentido do aprendizado de instrumentos, a marginalização de mestres, o esquecimento de obras e a destruição de arquivos com as suas partituras já não mais de utilidade.


O espírito de reformas desencadeadas pelo Concílio Vaticano II, possibilitando uma distância relativamente ao passado recente, favoreceu o reconhecimento desses aspectos negativos do movimento de restauração litúrgico-musical e da tomada de consciência das suas dimensões, do empobrecimento que causou com a destruição de rêdes da vida musical, de práticas tradicionais, de repertórios, sem falar nas tragédias pessoais representadas pela perda de funções de mestres, cantores e músicos, criando vazios na vida cultural de inúmeras localidades, incapazes de adquirir órgãos ou cultivar obras polifônicas segundo os critérios propugnados.


Esse reconhecimento das consequências empobrecedoras da reforma litúrgico-musical de fins do século XIX e primeira metae do XX, não compensadas pelos esforços educativos de religiosos estrangeiros ou de compositores formados na Europa, nem pelos grandes centros de prática litúrgico-musical em catedrais, conventos e escolas, se favorecido pela nova situação criada pelo Concílio Vaticano II na década de 60, trouxe também à consciência que o abandono agora de expressões e formas de prática litúrgico-musical do passado recente significava uma nova onda destrutiva de estruturas, de repertórios, de arquivos, ou seja, um novo empobrecimento.


Representantes eclesiásticos e muitos intelectuais brasileiros sempre salientaram o papel desempenhado pela Igreja na formação cultural do Brasil, sendo impossível considerar a
história da educação e das artes, assim como as tradições culturais sem a consideração da ação de missionários, religiosos, conventos e escolas religiosas através dos séculos. Grande parte do patrimônio musical, arquitetônico e artístico em geral do Brasil é religioso.


Em visão histórica panorâmica dos anos sessenta e setenta, porém, a Igreja surgia como causa e motor de demolições daquilo que ela própria construira em dois processos empobrecedores: um de grandes dimensões, destruidor de estruturas e rêdes supra-regionais e locais, de tradições e arquivos, de um edifício abrangedor de grande parte da nação e que integrava mestres e músicos de camadas mais simples da população, levantado através de séculos, e outro, que destruia a estrutura desde então criada, os seus centros, repertórios e arquivos, levando à extinção de coros e ao abandono dos órgão adquiridos com tanto sacrifício pelas comunidades.


Essas duas ondas destruidoras nas suas consequências deixavam um deserto que não era vivificado à altura pela nova produção pós-conciliar, bem intencionada mas extraordinariamente pobre do ponto de vista técnico-musical e de linguagem, desconectado do desenvolvimento estético e histórico-musical do país.


A segunda finalidade do simpósio realizado em São Paulo originou-se de fatos e tendências constatadas no decorrer do programa de interações desenvolvido na Europa. As preocupações relativas à destruição de bens culturais, de perda de função de coros, organistas, centros de ensino, compositores e suas obras no Brasil também podiam ser constatadas em círculos de artistas, músicos, intelectuais e teólogos na Europa.


Essas preocupações eram marcadas aqui sobretudo pelo receio da perda do patrimônio cultural europeu ocidental, do qual o "tesouro da música sacra" constituia parte fundamental. O abandono e mesmo impedimento do cultivo de obras em latim nas suas funções de parte integrante da liturgia passavam a ser vistos como indícios de um iconoclasmo de imensas dimensões, de destruição não só de bens materiais, mas também imateriais. Teciam-se comparações com outras fases destruidoras de bens do passado, aquela de plásticas da época da Reforma ou da extinção de conventos no período da secularização.


Um tom de incompreensão quanto ao que ocorria, de amargura e mesmo desespêro podia ser percebido em encontros de especialistas em artes e música, de executantes, regentes, compositores, pesquisadores e estudantes, que de repente não mais viam sentido daquilo que tinham aprendido, dominavam e empreendiam. A esperança que nutriam era a de que todo esse desenvolvimento depredador representasse apenas uma fase temporária, como muitas outras da história, voltando a dar lugar a  uma situação de equilíbrio.


O grande problema dessa consciência de perda de patrimônio constatado em círculos europeus voltados á cultura era a de que, na sua visão, restringia-se à Europa e a seus bens culturais. Sem querer ousar - com exceção de poucos de convicções reacionárias - colocar em questão o próprio Concílio, procurava-se deslocar a atenção quanto às tendências renovadoras ao mundo extra-europeu e á missão sobretudo assim compreendida.


Constatava-se, assim, uma situação paradoxal à primeira vista, uma preocupação pela preservação e promoção do Canto Gregoriano, da polifonia vocal, da música de órgão desenvolvida através dos séculos, ou seja, de configurações litúrgico-musicais na sua prática e concepções existentes à época anterior ao Concílio com um interesse renovado por questões relativas a culturas extra-européias e à sua cristianização.


Ao mesmo tempo que se procurava defender o patrimônio cultural europeu, criticava-se a europeização por que teria passado o mundo extra-europeu através de missionários do século XIX e XX, procurando-se novos caminhos para a evangelização de culturas tradicionais das diferentes nações.


Uma das expressões mais evidentes dessa situação aparentemente paradoxa de interesses e atenções foi o simpósio etnomusicológico realizado pela organização pontifícia de música sacra em Roma, em 1976, que, trazendo o título de Música Indígena, foi dedicado em grande parte a questões do patrimônio litúrgico-musical latino, ao Canto Gregoriano e à Polifonia, marcando um desenvolvimento que se prolongaria nos anos seguintes e que teve a sua expressão na criação do Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos de Colonia/Maria Laach, em publicações, simpósios e congressos.


Essa dicotomia de atenções, que procurava coadunar desenvolvimentos anteriores ao Concílio com as prescrições e orientações pós-conciliares era justificada por teólogos de liderança que haviam participado no conclave como peritos em música sacra como resultados de interpretação errônia dos textos, até mesmo como desrespeito da vontade de representantes do clero que nele participara.


Segundo essas interpretações, os padres conciliares jamais teriam desejado o abandono do patrimônio cultural latino, pelo contrário, teriam afirmado o seu significado e a necessidade de sua preservação e de seu fomento. Nessa argumentação, o Brasil desempenhava um papel de importância, lembrando-se aqui sobretudo das palavras de D. Jaime Cardeal de Barros Câmara (1894-1971), Arcebispo do Rio de Janeiro, participante do Concílio Vaticano Segundo.


Evidenciava-se, assim, na dicotomia existente entre a preocupação pelo patrimônio cultural europeu e os intentos renovadores extra-europeus, a existência de um campo de tensões interno na Igreja: de um lado aqueles preocupados com a conservação e a promoção do alcançado, de bens e desenvolvimentos, de outro por aqueles marcados pela confiança a desenvolvimentos vindouros, ainda não bem definíveis, guiados estes por um espírito, não por uma leitura "ao pé da letra" de textos do Concílio.


O grave problema que se reconhecia a partir da perspectiva brasileira residia no fato de que aqueles primordialmente preocupados pela conservação do patrimônio cultural não estavam conscientes dos efeitos não só positivos resultantes também para a Europa do movimento de reforma litúrgico-musical do século XIX e XX, cuja maior expressão era o Motu Proprio de Pio X (1903).


Estudos relativos a desenvolvimentos ocorridos em regiões do Sul da Alemanha, da Áustria e do Tirol revelaram que também na Europa houve uma destruição da estruturas da prática musical de igrejas criada através de séculos, de silenciamento de nomes e obras, de desqualificação de todo um passado de tanto significado sobretudo para pequenos povoados, combatida que foi a tradição coro-orquestral como sendo decadente e teatral. Esta verdadeira guerra cultural teve como um de seus principais centros a cidade de Regensburg (Ratisbona), irradiadora do Cecilianismo. Centros em outros países também contribuiram à difusão dos ideais restaurativos, salientando-se, sob a perspectiva brasileira, aqueles da Itália.


Os eventos e as publicações dos círculos tão preocupados pelo patrimônio cultural evidenciavam esse problema de visão histórica, uma vez que dirigiam a atenção ao Canto Gregoriano, à polifonia e á música para órgão - ao lado do interesse pela música em contextos extra-europeus de missão. Não incluiam, porém, as grandes obras sacro-musicais com acompanhamento orquestral de um Mozart ou Haydn (!).


Revelavam, assim, que a preocupação patrimonial não era fundamentada numa ampla visão histórica, mas sim estreitamente vinculada a uma situação anterior ao Concílio, decorrente do Historismo do século XIX, criadora de uma construção histórica artificial ou pelo menos unilateral na consideração de uma linha de desenvolvimento através dos séculos baseada em intentos restauradores de sacralidade segundo normas do Concílio tridentino.


Os músicos, pesquisadores e teólogos europeus preocupados com o patrimônio cultural revelavam-se nesse sentido como conservadores desse movimento de reforma/restauração historista do século XIX, sem reconhecer que êle próprio era resultado de desenvolvimentos históricos, que se inseria em complexos processos que necessitavam ser analisados na sua ampla complexidade e em abertura auto-crítica, apta a relativações.


Esse não reconhecimento de processos culturais nos quais se inseria a criação sacro-musical de todas as épocas, evidenciado na visão de desenvolvimentos segundo as esferas do europeu e do extra-europeu, tinha necessariamente graves consequências para países como o Brasil.


Ignorando que regiões do mundo missionado - em particular da América Latina - inseriam-se há séculos em processos desencadeados pelos europeus e que com êles permaneceram estreitamente vinculados em múltiplas interações, e procurando estudar fundamentos científicos para o desenvolvimento de uma nova cultura evangelizada como se esta partisse do zero, contribuiam com o peso do prestígio e da potência da intelectualidade européia ao aniquilamento de bens e ao empobrecimento cultural do Brasil.


Tratava-se, assim, de confrontar esses representantes do conservativismo europeu com a situação no Brasil na diversidade de suas expressões através dos séculos, demonstrando que também aqui, como na Europa, havia um problema de destruição patrimonial e de empobrecimento cultural. Tratava-se ao mesmo tempo de trazer à consciência a historicidade das concepções e visões do movimento restaurador do passado e as suas consequências negativas, que também valiam para a Europa, em particular para regiões que haviam passado por ações missionárias recatolizadoras em contextos da Contra-Reforma.


Esse complexo de problemas, há muito tratado e discutido no âmbito do programa de interações preparado no Brasil e desenvolvido na Europa a partir de 1974, e que teve a sua expressão na dissertação de doutoramento do editor, evidenciou-se com toda a sua força e gravidade aos

participantes brasileiros do Congresso Internacional de Música Sacra em Bonn e Colonia, em 1980. (Veja)


Das discussões surgiu assim o plano de realização do Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira", incluindo esta o intento primordial de esclarecimento dos próprios especialistas e teólogos europeus, o que, em parte, foi obscurecido posteriormente.


A Catedral de São Paulo sob a perspectiva de problemas sociais e culturais



A Catedral de São Paulo oferecia o espaço arquitetônico e simbólico ideal para a percepção dessa complexo de problemas relacionados com a permanência de ideais restauradores daqueles preocupados com o patrimônio e a renovação no espírito do concílio voltada à participação ativa do povo.


Como monumento do neo-Gótico no Brasil, esse edifício traz à consciência o corpo estranho que representa edificações segundo uma estética inspirada em estilo e época anterior ao próprio Descobrimento do Brasil no panorama histórico da arquitetura brasileira.


Essa catedral traz à lembrança que para a sua construção tornou-se necessário a demolição da antiga Sé e o seu deslocamento espacial, ou seja, a implantação desse monumento restaurativo exigiu mudanças radicais no que havia sido por séculos o coração da cidade, centro de sua rêde urbana.


Na cúpula renascentista que marca o edifício, a Catedral de São Paulo evidencia - muito mais do que muitos monumentos do neo-Gótico europeu, como por exemplo a Catedral de Colonia - que aqui se trata não apenas de um ecletismo historicista sem sentidos mais profundos resultante de correntes do século XIX, mas sim de uma declaração em pedra de elos com o Concílio de Trento nas suas funções corretivas e restauradoras.


Na sua monumentalidade, na solidez de sua construção, na severidade reduzida de suas ornamentações e nos elos com modêlos europeus traz à consciência a força e mesmo a violência com que o movimento restaurador se impôs no Brasil e o papel nele desempenhado por europeus e personalidades da Igreja, da cultura e da música formados na Europa.


A sua presença como marco predominante do centro da cidade através das décadas do século XX em meio a um edificações marcadas pelas mais diversas referências estilísticas demonstra o intento de integração essa diversidade em todo orientado segundo a unidade por ela representada.


Por uma ironia da história, agora que a construção da catedral de São Paulo chegara a seu término após décadas, o templo perdia na sua linguagem visual e simbólica esse seu significado central na configuração da metrópole.


As transformações urbanas, com a abertura da praça e demolição de edifícios que a emolduravam, haviam tirado a Catedral do foco principal do espaço, colocado-a em posição lateral, acentuando ainda mais o fato de ser não o centro, objetivo e ponto de partida de todas as perspectivas, mas sim uma das muitas referências culturais expressas na profusão arquitetônica de linguagens estilísticas e testemunhos de recepção cultural da fisionomia urbana.


O dilema das relações entre a expressão arquitetônica e a música


A questão que se levantou foi a da adequada configuração musical da celebração que devia marcar o início do Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira" em São Paulo.


Duas possibilidades ocorreram numa primeira aproximação. Havia a possibilidade - desejada por alguns pesquisadores de São Paulo - de que o evento fosse aberto com uma obra histórica do primeiro mestre de capela da Sé paulista, André da Silva Gomes (1752-1844). Esse ato teria não apenas um interesse histórico, trazendo à consciência o passado colonial da cidade e da sua matriz, mas podia também mostrar o contraste - e mesmo a incompatibilidade estética e cultural - da música sacra com acompanhamento instrumental do século XVIII e início do XIX no espaço neo-gótico da Catedral. Já por questões da acústica da catedral, porém, esse intento tornava-se de questionável realização.


Além do mais, representaria uma nova expressão de Historismo, aquele que singularmente marca o entusiasmo de pesquisadores brasileiros pelas expressões artísticas e musicais da época colonial e do "barroco". (Veja)


Uma outra possibilidade para a configuração musical da liturgia era a da realização de obras do seu último mestre de capela, Furio Franceschini (1880-1976). Tendo sido responsável como organista e compositor pela música na Catedral, pela própria vida musical da Diocese e pela formação musical de sacerdotes durante décadas, imbuído da forma mais profunda pelo movimento de reforma ou restauração musical segundo as normas expressas no Motu Proprio, as suas obras e a lembrança do seu nome corresponderiam de forma modelar à arquitetura da Catedral e ao espírito que nela se manifesta.


Essa possibilidade tinha a vantagem de demonstrar a coerência de formas de expressões visuais, espaciais e sonoras segundo o espírito que a elas levou. Representaria o todo como uma obra de arte íntegra, demonstrando as interações entre culto e cultura segundo os critérios vistos como modelares sob a perspectiva do movimento litúrgico-musical do passado. Ao mesmo tempo, porém, revivificaria o espírito que se manteve em parte devido a essas formas através das décadas, tornando-se uma demonstração de conservadorismo restaurador de situação anteriores ao Concílio em época não apenas marcada por preocupações de proteção ao patrimônio cultural, mas também por desejos de renovação de formas de culto e expressão religiosa. Seria uma manifestação política eclesial, de vinculação com um passado recente. Não viria de encontro às intenções do Simpósio, que incluiam o esclarecimento dos especialistas europeus relativamente a processos culturais, sendo até mesmo contraprodutiva, pois demonstraria, na similaridade de expressões conhecidas da Europa, a criticada transplantação de modêlos para contextos extra-europeus.


O canto comunitário pós-conciliar em espaço neo-gótico


Essa situação de impasse na escolha do repertório para a celebração de abertura do Simpósio, tratado em intensa troca de correspondência com o Movimento Coral da Secretaria de Estado da Cultura, foi solucionado pelo próprio Arcebispo de São Paulo, D. Carlos Evaristo Cardeal Arns.


Segundo suas determinações, somente o canto pastoral que possibilitava a participação ativa da comunidade - como de uso e praticado na realidade - podia ser aceito nessa celebração inaugural, apesar de toda a solenidade que lhe cabia.


Com a experiência que se tinha dessa realidade, temia-se, porém, que as limitações próprias dessa prática da música pastoral no espaço acústico supra-dimensionado e inadequado da Catedral neo-Gótica colocaria em péssima luz os intuitos bem intencionados de desenvolvimento de cantos comunitários em português no espírito da renovação conciliar.


A solução encontrada foi a de reunir o maior número possível de corais de igrejas paroquiais para que, cantando o mesmo repertório, pudessem fortalecer acusticamente o canto da assembléia.


Assim, a celebração inaugural, se demonstradora da profunda incongruência de formas de expressão, evidenciada na inadequação até mesmo acústica dos cantos comunitários no espaço marcado pela verticalidade gótica e pela cúpula renascentista, adquiriu alto significado simbólico, pois não foi emoldurada somente por coros profissionais, mas reuniu grupos de paróquias de diferentes bairros da Diocese.


Esses esforços tornaram-se possível graças aos elos entre o Movimento Coral do Estado e a prática coral das paróquias, sendo os grupos dirigidos em muitos casos por membros do Movimento.


Ao mestre de capela da Catedral, Pe. Antonio Fusari, coube a coordenação do todo e a regência do seu próprio coral da igreja Nossa Senhora de Casaluce. Estiveram representados os corais da igreja Santo Antonio do Bairro do Limão, regido por Maria Fávero Guerra, da igreja matriz de São Benedito, regido por Luiz Maria Unzueta, da igreja Bom Jesus dos Passos, regido por Balthazar dos Reis Balduino, da igreja de Santa Marina, regido por Oscar Höhne, da igreja de Nossa Senhora da Conceição, regido por José Vitor Ferreira e da igreja Sagrado Coração de Maria, regido por Auri Brunetti.


Mesmo com a reunião de tantos coros paroquiais para a execução de cantos tão simples, temia-se que o resultado sonoro seria insuficiente no espaço catedralício, sendo nele absorvido, dando margens a impressões negativas, uma vez que soariam como miados ou chiados. Para que se evitassem esses efeitos que seriam negativos à apreciação dos esforços composicionais de cantos pastorais, coros de maior potência foram encarregados de apoiar os grupos paroquiais, a saber o Coral Ars Livre, regido por Antonio Fraga, o Coral dos Contabilistas de São Paulo, regido por Waldir Giusti e o Coral Fundacentro, regido por Abdel Fernandes Passos.


Criou-se a situação singular, assim, que grupos corais que se preocupavam com a escolha criteriosa de seu repertório fossem levados por um Movimento de Secretaria de Estado a se ocuparem com a singela produção de cantos comunitários.



Recepção pelo Arcebispo de São Paulo D. Evaristo Cardeal Arns


Em recepção do Cardeal Arcebispo de São Paulo na sacristia da Catedral, os principais objetivos do Congresso foram expostos, sobretudo a sua orientação fundamentalmente científica e manifestadora de preocupações de cunho político-cultural.


Apesar da presença de representantes exponentes do conservadorismo europeu, preocupados com o patrimônio cultural que viam em risco, sendo até mesmo a organização pontifícia de música sacra envolvida por possibilitar financeiramente a vida de seus especialistas, o evento tinha como objetivo, sob o lema "unidade na diversidade", salientar a diversidade das expressões musicais na sua adequada contextualização e, sobretudo, na sua inserção em processos histórico-culturais e sociais.


De forma alguma pretendia ser o evento uma demonstração ilustrativa da música nas diversas épocas da história do Brasil, nem muito menos de retorno a situações anteriores ao Concílio. Êle tinha o escopo de contribuir ao reconhecimento do imenso patrimônio cultural na sua diversidade e a transformações por que passou não apenas as expressões artísticas, mas também as próprias formas de culto, uma relativação causada pela temporalidade que deveria ser reconhecida também para os presentes desenvolvimentos da música comunitária.


Nessa recepção, e posteriormente de forma acentuada na sua alocução durante a missa, D. Evaristo Arns salientou a prioridade absoluta a ser dada aos pobres, àqueles dos bairros desprivilegiados da Arquidiocese, aos migrantes de outras regiões do país e aos muitos desfavorecidos que em grande número se encontravam aos pés da Catedral, deitados e abandonados na praça, desempregados, enfraquecidos, doentes, excluidos da sociedade e sem perspectivas.


Em vista a essa realidade, a celebração devia deixar claro que a ação pastoral devia ser marcada por esse intuito de integração, e para isso servia o canto comunitário, simples melodicamente, acessivel na sua configuração rítmica e no emprêgo de instrumentos populares, compreensível pelo uso do vernáculo, proporcionador da inclusão.



Atualidade dos paradoxos entre o construído no passado e a prioridade aos pobres


Os paradoxais problemas da década de 70 relativos à prioridade inquestionável que deve ser dada aos pobres nas condições sociais críticas e lamentáveis do Brasil e ao empobrecimento cultural causado ou fomentado justamente pela ação eclesiástica nas suas mudanças de orientação e que levam ao desmontar do edificado, mantém a sua atualidade no presente.


São duas faces de um complexo que não podem ser desconsideradas quanto às suas interações e reciprocidade em posicionamentos unilaterais. Nem aqueles preocupados pelo patrimônio cultural e pelo seu desenvolvimento, pelo estudo da história cultural e pela valorização de expressões culturais do Brasil podem fechar os olhos para a realidade social e humana da miséria, nem os representantes da Igreja deveriam apenas ver essas preocupações como expressões de elitismo ou intentos de musealização do culto. Neste sentido, a responsabilidade cabe às duas partes, ainda que em diferentes sentidos.


A situação da atualidade, se apresenta paralelos com aquela da década de 70, deve ser considerada, porém, nas suas diferenças.


Os Pontificados de João Paulo II e sobretudo de Bento XVI deixaram perceber mudanças sensíveis de orientação relativamente àquele de Paulo VI. Esse desenvolvimento alcançou um de seus pontos máximos com a permissão da celebração da missa na forma extraordinária do rito tridentino com Summorum Pontificum de 2007. Correspondentemente, não há também mais um dos maiores obstáculos ao cultivo do Canto Gregoriano e de obras do repertório em latim de todas as épocas em atos de culto, caindo uma das principais causas das preocupações quanto ao patrimônio cultural, mas também um dos argumentos do conservativismo.


O atual Pontificado acentua orientações que sugerem uma retomada do entusiasmo pelas reformas e inovações no espírito do Concílio anterior a essa época. Ao mesmo tempo, porém, a presença de ambos os papas na cerimônia de santificação de João Paulo II e João XXIII e esse próprio ato oferecem uma imagem de um possível equilíbrio em campo de forças, de uma "unidade na diversidade", expressão que já foi o lema condutor do Simpósio Internacional de 1981.


Essa unidade na diversidade e diversidade na unidade não pode ser porém aquela do canto comunitário no espaço neo-gótico da Catedral de São Paulo. E isso também no sentido mais amplo, metafórico da expressão. Reformas mas fundamentais se tornam necessárias.


Matéria elaborada por membros do ISMPS, revista e traduzida em versão modificada por

Antonio Alexandre Bispo






Todos os direitos reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (ed.). "Prioridade aos pobres e empobrecimento. Dilemas e incongruências no pensamento e nas ações entre justiça social e patrimônio cultural Vigência de problemática tematizada em 1981 na Catedral de São Paulo em celebração de Dom Paulo Evaristo Cardeal Arns O.F.M. (1981)".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 149/3 (2014:3). http://revista.brasil-europa.eu/149/Pobres-e-empobrecimento.html