Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Título: Três teólogos-músicos brasileiros como celebrantes. Coluna: D. João Evangelista Enout OSB,
Pe. Jaime Alves Diniz  
Mons. G. Schubert.
Fotos e gravação: organizadores brasileiros do Simpósio.







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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 149/9 (2014:3)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3106




"Música sacra no presente" no passado do Pontificado de João Paulo II
e a complexa situação de teólogos-músicos e compositores no Brasil

Pe. Jaime Cavalcanti Diniz, Mons. Guilherme Schubert, D. João Evangelista Enout OSB
Camargo Guarnieri e Ernst Mahle

 

As colocações e os caminhos indicados pelo atual Papa levam a uma recapitulação atualizada de questões culturais que marcam o debate cultural em países de formação católica como o Brasil desde o término do Concílio Vaticano II. (Veja)


Assim como no passado, essas questões levantam-se sobretudo no âmbito da música sacra, criam dilemas sob diferentes aspectos quanto a posicionamentos perante desenvolvimentos, visões e interpretações histórico-culturais e prioridades na pesquisa e na prática. A procura de critérios adequados pode ser aqui auxiliada considerando o passado das reflexões das últimas décadas.


De forma sumária, pode-se apontar como uma das principais causas de inseguranças e ambivalências a discordância entre concepções e práticas concernentes à função da música nas celebrações litúrgicas e a pesquisa e a prática musical que se orienta segundo o patrimônio músico-cultural a ser conservado e promovido.


Esse dilema resulta do fato de que grande parte das obras musicais do passado brasileiro ter sido criada para uso nas igrejas, não encontrando sob as condições decorrentes da reforma litúrgica de anos pós-conciliares possibilidades maiores de execução segundo a função para a qual surgiram e foram cultivadas.


A colocação de novos critérios do papel a ser desempenhado pela música na participação ativa dos fiéis tornam esse repertório obsoleto. As novas concepções têm também consequências para a apreciação e a análise de desenvolvimentos e da produção do passado, que se tornam sem a sua função no culto expressões meramente históricas ou museais.


Muitas dessas obras do passado, porém, escritas para uso na vida religiosa em diferentes contextos, não correspondem aos critérios qualitativos e de interesse artístico que justifiquem a sua vida no repertório de concertos.


Diferentemente da arquitetura de igrejas e de artes plásticas, que não são destruidas apesar das transformações de concepções e práticas de culto, a música, fazendo parte integrante da liturgia, vive não em partituras, mas sobretudo na sua existência como realidade sonora.


É compreensível, assim, que sobretudo músicos, regentes, pesquisadores de música e políticos culturais voltados a questões da vida musical encontrassem no período pós-conciliar desde cedo maiores dificuldades em tomar posições entre intuitos e desenvolvimentos que sentem como conflitantes ou contraditórios. Se por um lado podiam reconhecer a necessidade de reformas litúrgico-musicais à época que se seguiu ao Concílio, com o fomento da participação ativa, se reconhecem hoje a prioridade a ser dada aos desfavorecidos e a crítica sócial e sócio-cultural que se depreendem dos ensinamentos eclesiais, têm consciência por outro da necessidade de estudo, cultivo e valorização de obras do passado como constituintes do patrimônio cultural.


É compreensível, também, que sobretudo sacerdotes e religiosos dedicados à música e à pesquisa musical sintam com maior intensidade esse dilema. Nos anos que se seguiram ao Concílio, muitos deles tinham estudado ou estudavam em instituições especializadas em Canto Gregoriano, Polifonia Vocal e Composição Sacra segundo os preceitos da legislação litúrgica e da tradição, encontrando-se de repente sem campo para as suas atividades e mesmo em situação na qual se questionava o sentido da formação que haviam recebido ou recebiam.


Alguns passaram definitivamente à pesquisa musicológica, abandonando a composição e a prática musical, como o açoriano Pe. Dr. Armindo Borges (Veja). Outros, ainda que tenham escrito trabalhos e mesmo realizado doutoramento sobre compositores representativos da polifonia do passado no Istituto Pontificio di Musica Sacra, instituição marcada pela continuidade e tradição conservadora de décadas de música sacra, como o Pe. Dr. José Geraldo de Souza (Veja), passaram a dedicar-se quase que exclusivamente à pesquisa folclórica no intuito de encontrar fundamentos mais sólidos para o novo desenvolvimento preconizado da criação litúrgico-musical. Não poucos foram aqueles que, apesar de formação obtida em outros grandes centros da Europa, esqueceram por assim dizer o aprendido, passando à empenhar-se em produzir cantos segundo critérios outros daqueles que os haviam guiado numa espécie de "vida anterior".


Na segunda metade da década de 70, com o início do Pontificado de João Paulo II, revitalizaram-se expectativas de alcance de um equilíbrio entre a reforma decorrente do Concílio e a conservação e promoção do patrimônio de séculos. Essa situação acentuava a necessidade por muitos sentidas de compreensão de desenvolvimentos, de procura de coerência quanto ao pensamento e a iniciativas, de harmonização de tendências discordantes. Essa situação marcou em grande parte relações entre téologos, músicos e musicológos europeus através de intensa correspondência internacional e encontros, salientando-se aqui o VII Congresso Internacional de Música Sacra realizado em Bonn e Colonia em 1980. (Veja)


Entre os sacerdotes dedicados à música e à pesquisa musical brasileiros que participaram da troca de idéias internacional destacaram-se o Pe. Jaime Alves Diniz (Veja), D. João Evangelista Enout OSB e o Mons. Guilherme Schubert. Eram três personalidades totalmente distintas entre si quanto à formação, concepções, atividades criadoras e de pesquisa, assim como quanto a características de personalidade.


Com base nesse trabalho que precedeu ao Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira", surgiu como oportuno convidá-los para celebrarem a missa de encerramento do evento no dia 3 de outubro de 1981.




Três teólogos-músicos do Brasil como celebrantes da missa de encerramento


O celebrante principal, Prior do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, teólogo e músico, especialista em Canto Gregoriano, representava nesse ato a situação daqueles gregorianistas e teólogos empenhados no estudo e no cultivo do canto por excelência do culto católico. Fora aberto e entusiasta em fins dos anos sessenta e início dos setenta à reforma litúrgica segundo os caminhos abertos pelo Concílio, tinha atuado êle próprio como compositor de cantos em vernáculo para a juventude. Os contatos com o editor datavam dos Festivais de Música do Paraná e Cursos Internacionais de Curitiba, assim como na participação em projetos musicais do Congresso Eucarístico Nacional em Brasília, em 1970, tendo-se acentuado em encontros no Rio de Janeiro. Com o desenvolvimento da prática litúrgico-musical, D. João Evangelista Enout passara a tornar-se de forma crescente crítico com relação às tendências que se justificavam pelo Concílio, ao mesmo tempo que acentuava posições mais conservadoras em estudos teológicos. (Veja) Contribuira com um estudo para a coletânea que servia de ponto de partida para os trabalhos do Simpósio ("História e prática atual do Canto Gregoriano nos mosteiros da Ordem Beneditina no Brasil", Collectanea Musicae Sacrae Brasiliensis, org. A.A.Bispo, Roma: Urbaniana 1981, 135-142).


O Pe. Jaime Cavalcanti Diniz, também em contatos com o editor desde os Festivais de Música do Paraná e dos Cursos Internacionais de Curitiba dos anos 60, representava na missa de encerramento a pesquisa histórico-musical nos seus estreitos vínculos com a música sacra. Fora o revelador do passado musical de Pernambuco e seu divulgador através de edições de Luís Alvares Pinto. Destacava-se como autor de estudos diversificados sobre história da música e cultura musical em geral da Bahia e do Nordeste. Representava Pernambuco na última celebração litúrgica do Simpósio e trazia à lembrança dos participantes o significado do Nordeste na história da música e da música sacra no Brasil.





O Mons Guilherme Schubert, compositor de várias obras de música sacra e de estudos relativos à música no século XIX no Brasil, era personalidade sob muitos aspectos de decisivo significado para pesquisadores musicais devido à sua posição no acervo da Arquidiocese do Rio de Janeiro.


Contribuira com um texto sobre José Maurício Nunes Garcia ((1767-1830) para a Collectanea Musicae Sacrae Brasiliensis orientada segundo o conceito de Recepção Cultural, e que serviu, juntamente com estudo sobre o compositor de Cleofe Person de Mattos (1913-2002) , como ponto de partida para as discussões do Simpósio. ("José Maurício Nunes Garcia: Ein dunkelhäutiger Mozart im Brasilien der Kolonialzeit", op.cit. 43-46)


Nas suas posições teológicas conservadoras possuia proximidades com o movimento restaurador pré-conciliar, devido porém à sua origem e formação austríaca mostrava um sentido mais aberto relativamente às tradições da música com acompanhamento orquestral dos séculos XVIII e XIX. 


Como compositor, escrevera muitas obras sacro-musicais, tanto anteriores, como posteriores ao Concílio. Era particularmente vinculado a círculos teológicos voltados à música sacra do mundo de língua alemã, como demonstra o fato de ter composto uma Deutsche Konzilsmesse. No conjunto de sua obra destacavam-se composições para acontecimentos de significado para a história eclesial e cultural do Brasil, como a missa para a inauguração da nova catedral do Rio de Janeiro. Os seus elos com a antiga capital do Brasil manifestavam-se no fato de ter composto o Oratório Cristo Redentor.


Os três celebrantes tinham participado dos encontros preparadores à fundação da Sociedade Brasileira de Musicologia ocorrida durante o Simpósio, estando informados a respeito dos seus antecedentes e objetivos, sobretudo os seus intentos preparatórios de instituição da disciplina em estruturas universitárias adequadas da área de Filosofia, Ciências e Letras no Brasil.


Expectativas quanto a música sacra no Brasil segundo Mons. G. Schubert


A alocução dessa cerimônia litúrgica de encerramento do Simpósio foi centralizada no conceito de "esperança" relativamente à música sacra e dos músicos que a ela se dedicam.


"Todos nós aqui reunidos que trabalhamos, ou trabalhávamos pela música sacra, compondo, cantando, tocando, regendo, ensaiando e ensinando, partimos de apreensões, problemas, dificuldades, incompreensões e decepções para esta cidade de São Paulo a fim de participar do Simpósio.


Mas encontramos um movimento animado, alegre, comunicativo; trocamos experiências artístico-musicais com colegas de ofício, assistimos a inúmeras apresentações musicais, preparadas com muito carinho e realizadas com entusiasmo. Enfim: foi um encontro útil, sério. Mas também foi uma festa agradável, fraternal.


Assim, não vejo dificuldade em falar de esperança. O que é que justifica esta esperança?

Primeiro - O milagre sempre presente na Igreja, na religião, graças à ajuda de Deus.

Quem estuda a História da Igreja, às vezes sente um calafrio ao se informar sobre períodos de crises de todas as espécies, externas e internas, causadas pelo fator humano na Igreja e no mundo em que ela vive e atuza; dificuldades vencidas pelo fator sobrenatural, divino, que se serve da Igreja para atuar no meio dos homens, em favor dos homens.


O historiador sempre pode tranquiamente dizer: Já houve coisas piores. Passaram como passará o presente que nos preocupa. E de fato vislumbramos já uma claridade no horizonte, que promete aumentar pouco a pouco, substituindo a escuridão da noite e as sombras da madrugada por um dia ensolarado, cheio de luz e de calor.


Segundo - Justifica a esperança a religiosidade do povo brasileiro. Um praticará mais, outro menos; um terá vida mais tranquila, outro mais agitada, complexa. Mas em geral, têm todos o coração aberto às idéias sobre Deus, Nossa Senhora, sobre nossos irmãos-modelos que são os Santos.


Isso tem por consequência interesse pelo culto, pelas cerimônias religiosas, pela Missa, casamentos, festas e procissões, e expressões artísticas de inspiração religiosa, mesmo fora do templo, como oratórios e outras músicas sinfônicas e corais em variadas formas.


A última reforma litúrgica já se firmou no Brasil, talvez com maior facilidade do que em alguns outros países. Sem dúvida há maior participação dos presentes, maior integração da música e arte sacra na estrutura das cerimônias, fator este que há de suscitar a busca de um caminho certo, e que será encontrado mesmo se no momento ainda julgamos insuficiente o resultado até agora obtido.


Terceiro. Outro fator, importantíssimo em nosso caso, é a indubitável musicalidade do povo brasileiro. Simples ou culto, dominando as técnicas musicais ou agindo apenas espontaneamente, tem bom ouvido, excelente memória e, por issso, espantosa facilidade de aprendizado. Basta alguém ouvir um disco na porta de uma loja, para continuar seu caminho, já cantarolando uma música nova.


Não é o caso aqui de entrar mais a fundo neste capítulo e examinar consequências positivas e negativas quanto a certos detalhes. O fato em si, de grande ajuda para qualquer movimento musical, é reconhecido por todos.


Que o Brasil criou belas obras em todas as épocas. foi-nos mostrado sobejamente em missas, concertos e audições programados para o Simpósio.


Quarto. Quanto à avalanche destruidora, exageradamente inovadora e criadora de alguns monstros musicais que nos deixou atônitos e deprimidos durante estes últimos anos, temos todos a impressão de que o  pior já passou, já foi vencido por esta preciosidade que é o bom senso.

Muitos absurdos, que não desejo mencionar um por um para não diminuir o bem estar de nós todos no final deste Simpósio, ou não existem mais, foram deixados de lado; ou diminuiram consideravelmente. E, por outro lado, houve um despertar, lembrando valores artístico-musicais de ante, lembrando que para o artista e seus ouvintes continua válida a regra antiga: Para Deus o melhor.


Claro que precisará, como sempre foi preciso, de uma orientação das competentes autoridades, para distinguir entre popular e vulgar, entre religioso e sentimental, entre apropriado e apenas agradável.


Quinto. Por isso é motivo de esperança uma iniciativa como este Simpósio, patrocinado pela autoridade civil e religiosa, que ofereceu oportunidade a centenas de cantores e músicos, professores e compositores de conhecer colegas, obras musicais, ouvir peritos especializados. Assim, puderam todos discutir problemas e ouvir propostas de remédios necessários.

Todos aqui reunidos nos alegramos em ver que as autoridades concordam em apoiar as iniciativas, estudo e ensino da música sacra. E esperamos receber também o apoio dos Senhores Bispos, padres e dirigentes, a colaboração de editores e fabricantes de órgãos, de produtores de programas de rádio e televisão para divulgar a Música Sacra digna, valiosa, bela.

Sexto. Mas a maior esperança sois vós, caros amigos, vós, centenas de participantes do Simpósio. E é motivo de esperança, um detalhe observado com extrema satisfação pelos mais velhos: O entusiasmo com que atuou a juventude em tudo: corais, orquestras, regentes, preparadores. Foi uma maravilha! Se esta juventude continuar cultivando a música e a música sacra, ela vencerá.


E para que isso aconteça, e firmemente progrida, peçamos a benção de Deus, de São Gregório, de Santa Cecília, de São Francisco Soler, nosso violinista sul-americano, e de todo o côro de anjos celestes.



Música sacra de Ernst Mahle - significado nas suas amplas dimensões


A música dessa última celebração litúrgica ficou a cargo do Coral Camargo Guarnieri de Poços de Caldas, preparado por Valderez Medina, e do Coral e Orquestra da Escola de Música de Piracicaba, regidos por Ernst Mahle. Obras do próprio regente marcaram a configuração musical da missa, alternando-se com as partes do Ordinarium - Kyrie, Gloria, Sanctus e Agnus Dei de M. Camargo Guarnieri. De Mahle foram executadas obras de diferentes épocas de sua vida como criador, tanto do período anterior ao Concílio (Aleluia, Meditação) como dos anos mais recentes: Salmo 150, Aclamação ao Evangelho, Alegrai-vos no Senhor).


A escolha dos dois compositores e a inclusão de obras criadas anteriormente ao Concílio ao lado daquelas dos anos que a êle se seguiram teve como objetivo demonstrar a situação similar na prática composicional àquela das concepções nas suas dimensões teológicas representadas pelos teólogos-músicos celebrantes. Tratava-se de considerar em exemplos sonoros questões de similaridades e diferenças de preocupações relativas à cultura musical tradicional ou folclórica, trazendo à consciência a necessidade de distinções mais sensíveis de repertórios qualificados como nacionalistas, e de continuidades e transformações dessas relações com o folclore.


A presença de Ernst Mahle no Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira" assumia significado fundamental para os iniciadores do evento e para os especialistas alemães que nele participaram. Tendo recebido de Mahle formação em estudos de composição nos Cursos Internacionais de Curitiba na segunda metade da década de 60 e particularmente em Piracicaba, o editor era a êle devedor de orientações e impulsos que marcaram as suas atuações no Brasil e na Europa.


Entre elas salientou-se o interesse por estudos de modalidade, o que teve a sua expressão na atenção dada a modos em cursos por êle dirigidos de Estruturação Musical e Estética na Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo na primeira metade da década de 70. A atenção dada a modos sob a perspectiva teórico-composicional de Ernst Mahle correspondia ao significado do estudo de modos na esfera do Canto Gregoriano, manifestado em São Paulo no estudo de textos de Henri Potiron (1882-1972) voltados à questão da análise modal e da origem de modos.


A aproximação antes sistemática de Ernst Mahle vinha de encontro sob alguns aspectos à tentativa de Jacques Chailley (1910-1999) de tratar o desenvolvimento de formações escalares em considerações intervalares sob perspectiva comparativo-musical, uma teoria apresentada em texto utilizado na Sorbonne e que serviu também de base de estudos em São Paulo (1910-1999).


A atenção dirigida a processos, porém, principal preocupação no âmbito das preocupações pela renovação dos estudos culturais e que levou à fundação da Sociedade Nova Difusão (1968), trazia à consciência não só a historicidade de formações escalares e da configuração de determinados modos, perspectivando aproximações sistemáticas, como também a própria inserção do singular interesse por modos na pesquisa musical e na prática composicional no Brasil em contextos globais estreitamente relacionados com desenvolvimentos no âmbito da música sacra desde a segunda metade do século XIX e com a pesquisa musical do Catolicismo em geral.


Havia, assim, uma coerência entre o interesse pelo estudo modal - e também rítmico - no âmbito do Gregoriano e aquele de pesquisadores e compositores brasileiros relativos a modos em geral e a modos em expressões musicais de tradições brasileiras, uma vez que ambas se inseriam em processos culturais mais abrangentes. Poder-se-ia assim constatar diferenças e interações entre tentativas musicais de compositores que procuraram desenvolver uma linguagem musical nacional através do uso de temas, formas e outros elementos do folclore - ou mesmo de qualidades expressivas e extra-musicais - e aquelas de pesquisadores e criadores inseridos em esfera musical marcada pelo Catolicismo.


Ao mesmo tempo, porém, o reconhecimento da historicidade nos estudos modais e no próprio interesse por esses estudos levava a uma relativação do significado da modalidade na criação e na pesquisa musical do Brasil, uma vez que esta revelava-se como expressão de determinada época e correntes, e não como solução definitiva para os problemas que se levantavam quanto ao desenvolvimento de uma linguagem musical adequada culturalmente.


Essas preocupações tiveram o seu prosseguimento na Europa a partir de 1974, quando, em contatos com estudiosos e compositores de diferentes países tratou-se de questões relacionadas com a modalidade no campo de tensões criado pelas reformas desencadeadas pelo Concílio, em particular sob Paulo VI. Iniciando-se novo período de iniciativas e expectativas sob o Pontificado de João Paulo II, intensificaram-se interações com musicólogos e compositores católicos, entre êles Jacques Chailley e Olivier Messiaen (1908-1992).


Nos trabalhos desenvolvidos na Alemanha, constatou-se a situação de dilema em que se encontravam compositores e teóricos que, no passado, tinham-se empenhado em fomentar uma criação sacro-musical segundo critérios qualitativos mais altos em comparação àquela do antigo Cecilianismo, procurando, entre outros aspectos, fundamentos em uso atualizado de princípios modais e da polimodalidade em mais complexas relações com a tradição harmônica e mesmo com tendências atonais. Esse empenho levara nos anos 30 à fundação da Sociedade Internacional de Música Sacra (IGK) e tinha a sua continuidade em determinados círculos da Associação Geral de Santa Cecília da Alemanha. Tendo sido renovadores à sua época no âmbito de contextos católicos, esses compositores surgiam como conservadores e mesmo representantes de um passado encerrado sob as novas condições pós-conciliares.


A complexa problemática dessa herança músico-cultural de um passado que se inscrevia em contextos político-culturais dos anos 30 e 40, marcados na Alemanha pelo nacionalsocialismo, e a necessidade dela decorrente de diferenciações evidenciou-se em contatos com Werner Egk (1901-1983).


A dificuldade de distinções quanto a conotações políticas na obra criadora de compositores que se dedicaram à música sacra e se empenharam pela elevação de seu nível qualitativo - se manifestações de convicções ou simplesmente resultados das circunstâncias e oportunismo - revelou-se na consideração de várias personalidades. Entre elas encontrava-se o austríaco Johann Nepomuk David (1895-1977), formado na tradição dos meninos cantores de Sankt Florian e do mosteiro beneditino de Kremsmünster antes da primeira Guerra, tendo estudado posteriormente em Viena, desempenhara intensas atividades no ensino nos seus diferentes graus, por fim docente no Conservatório/Escola Superior de Música de Leipzig. Apesar de tudo indicar que se mantivera afastado da política, uma composição em memória de professores e estudantes dessa Escola Superior de Música caídos na Guerra levava a inquietações relativamente a seus posicionamentos, uma situação comum a muitas outras personalidades da vida musical e musicológica alemã que chegaram a ocupar cargos de importância à época nacionalsocialista. J. N. David surgia como importante representante de intuitos valorizadores da polifonia do período anterior ao Concílio, tendo exercido influência nos muitos compositores que com êle se formaram quando diretor comissariado do Mozarteum de Salzburg e professor da Escola Superior de Música e Arte Dramática de Stuttgart.


O conhecimento mais aprofundado dos problemas relacionados com essa esfera da criação sacro-musical alemã anterior ao Concílio através dos contatos e interações com compositores ainda vivos e atuantes, entre outros com Hermann Schroeder (1904-1984) e Max Baumann (1917-1999) levou ao reconhecimento do extraordinário significado da obra de Ernst Mahle sob a perspectiva do estudo de processos culturais em contextos internacionais.


Evidenciando-se mais de imediato as suas inserções em esferas mais abrangentes sobretudo nas suas obras sacro-musicais, Ernst Mahle passou a ser considerado com especial atenção em encontros e estudos voltados à criação sacro-musical contemporânea e às relações musicais entre a Alemanha e o Brasil.


Nascido em Stuttgartt, havia estudado composição com Johann Nepomuk David na Escola Superior de Música e Arte Dramática daquela cidade, mudando-se para o Brasil em 1951, onde prosseguiu os seus estudos na Escola Livre de Música Pró-Arte e no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, além de participar de cursos internacionais no Exterior e no Brasil. Realizou estudos não só com Olivier Messiaen como também com outros compositores de renome representativos de diferentes correntes da criação musical e de concepções estéticas, de modo que a consideração de sua posição em contextos internacionais e nacionais surge como de alto significado para análises de desenvolvimentos nas relações internacionais das últimas décadas.


Ernst Mahle não poderia assim deixar de ser convidado a participar do projeto voltado à recepção musical no Brasil desenvolvido na segunda metade da década de 70 e que teve uma de suas expressões a preparação da coletânea que serviu como ponto de partida para os trabalhos do Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira de 1981. Circunstâncias relacionadas com os trabalhos de impressão desse volume em Roma, porém, obrigaram a que o seu texto, pela sua fundamental importância para a discussão da situação do presente, fosse deixada para um segundo volume, no qual deveriam ser considerados os resultados do evento, e que, infelizmente, nunca chegou a ser publicado.


Foi da convicção geral dos organizadores e participantes do Brasil e do Exterior que composições de Ernst Mahle deveriam ser consideradas em posição de destaque no dia dedicado à música sacra do presente no âmbito do Simpósio. O seu interesse pela temática religiosa em tradições em geral manifestava-se nas suas Nove canções tradicionais de Natal para vozes iguais e cordas, de 1961, uma atenção dada às tradições natalinas que parecia revelar a vigência da cultura alemã. O seu Magnificat para vozes iguais e orquestra, com redução para órgão, sendo de 1964, datava dos anos do Concílio, e de 1965, o Te Deum e o Salmo 127 para vozes mixtas, orquestra de cordas e órgão, ou seja, dos primeiros anos que se seguiram ao conclave, sendo este arranjado para canto e piano/órgão em 1972.  Na missa de encerramento do Simpósio, como acima mencionado, foram incluidas tanto obras mais antigas, ainda escritas na Alemanha, como Meditação e Aleluia, como aquelas dos anos pós-conciliares, como o Salmo 150 (1966) e Alegrai-vos no Senhor (1979).



Matéria elaborada por membros do ISMPS, revista e traduzida em versão modificada por

Antonio Alexandre Bispo





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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (ed.). ""Música sacra no presente" no passado do Pontificado de João Paulo II e a complexa situação de teólogos-músicos e compositores no Brasil".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 149/9 (2014:3). http://revista.brasil-europa.eu/149/Teologos-musicos.html