Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Varzea do Carmo


Varzea do Carmo


Bom Jesus dos Matosinhos do Brás


Brás


Brás

Fotos antigas da Várzea do Carmo e do Brás:
M.E.A. Marques,
Apontamentos... op.cit..

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 150/4 (2014:4)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3116



Bairro do Pari - São Paulo (SP)
O Convento de Santo Antonio em meio operário italiano e português
da várzea entre o Tamanduateí e o Tietê:
anti-secularização acompanhando a industrialização
A arquitetura do Ir. Felicianus Schlag OFM (1857-1923)


 

O recrudescimento religioso que se observa sob diversas formas e em diferentes contextos nas últimas décadas, cujos trágicas consequências se evidenciam sobretudo na esfera islâmica, e o fomento de uma re-evangelização na Europa, assim como o do ressurgimento do espírito missionário em países como o Brasil exigem uma particular atenção nos estudos de processos culturais em dimensões globais. (Veja)


Esse significado atual torna-se mais evidente quando se registra as preocupações daqueles que vêem nesse desenvolvimento - que representa um combate explícito ou implícito a um processo secularizador - um movimento questionável para o desenvolvimento da humanidade nos seus esforços de conhecimentos esclarecedores, e assim para as ciências, para a cultura e para conquistas sociais, de liberdade e tolerância alcançadas com tantas dificuldades pelo homem.


Tem-se utilizado para a caracterização dessa situação de conflitos entre religião e ciência, missão e esclarecimento o termo „luta cultural“. Esse termo traz em si associações e comparações com a „luta cultural“ na Alemanha na segunda metade do século XIX, marcada pelo confronto entre dois partidos que se acusavam mutuamente. Os católicos eram vistos como ultramontanos, no sentido em que se submetiam à autoridade de Roma, - para além dos montes na perspectiva geográfica alemã - e assim vistos como representantes de um anti-modernismo em sequência ao Concílio Vaticano I. Estes viam aqueles como perseguidores, herdeiros do iluminismo e agentes da secularização, tendo a intenção de apropriar-se de bens eclesiásticos como haviam feito com conventos de ordens no passado. Este termo traz assim associações com uma luta contra a secularização e o iluminista entre o anti-modernismo e a modernidade, ou seja, diz respeto a campos de tensão: obscurantismo/esclarecimento, anti-modernidade/modernidade, reação/avanço.


O atual uso do termo indica que se percebe uma similaridade de desenvolvimentos, de interações de processos contrários entre o presente e o passado da segunda metade do século XIX. Os estudos relacionados com o Brasil devem considerar com atenção essa comparação, uma vez que o país foi alvo de transposição da situação alemã marcada pela luta cultural com a vinda de missionários alemães para a reconstrução da vida conventual possibilitada pela proclamação da República. Explicitamente esses missionários procuraram no Brasil combater a secularização e a tradição do Esclarecimento que viam representadas sobretudo pelo banido D. Pedro II, o símbolo de um Estado que colocava na sua pessoa o desenvolvimento dos conhecimentos, do saber, da ciência e da cultura como ideal condutor.


A consideração diferenciada dessa luta cultural transferida para o Brasil surge como pressuposto para a compreensão de desenvolvimentos brasileiros nas suas dimensões globais e para a análise da situação atual que, dependendo das convicções ou da posição do observador, não só entusiasmos mas também grandes preocupações desperta.


O recrudescimento do ímpeto missionário na atualidade, decantado como uma espécie de ressurreição e nova primavera, poderia ser visto como uma ressurreição da ressurreição, pois também os missionários do século XIX falavam de uma ressurreição, de uma nova primavera ou nóva Páscoa. Os religiosos do passado tiveram sucesso no seu intento de combater a secularização e a herança da época cognominada das luzes, pois a receptividade atual às ações missionárias não seria compreensível em sociedade realmente secularizada. Conseguiram, de fato, realizar as suas intenções em colocar um processo em ação revertedor daquele que criticavam e combatiam.


Analisar os caminhos perseguidos e os meios empregados pelos missionários não é porém fácil, pois a militância no combate que conduziram não foi caracterizada por meios explícitos ou evidenciadores de luta numa primeira aproximação, mas por armas suaves, quase que imateriais, o que se manifesta sobretudo na ação dos Franciscanos com as suas virtudes de modéstia, simplicidade, pelo amor e alegria seráfica. A grande simpatia e admiração que despertam essas virtudes e formas de comportamento e ação se manifestam na atualidade da popularidade do Franciscanismo sob o pontificado de um papa que, embora jesuita, traz o nome de Francisco.


Cumpre, assim, nas análises de processos culturais que se impõem, dar especial atenção à ação dos Franciscanos alemães no Brasil. Essa atenção deve ser considerada nos diferentes contextos em que se fixaram e atuaram, exigindo ser assim analisada sob diferentes perspectivas. A sua vinda deu-se em época marcada por expansão em várias regiões do Brasil: expansão na abertura de novas áreas para a colonização com imigrantes nos Estados do sul, expansão da agricultura, em particular do café, em São Paulo, também com o trabalho de imigrantes, expansão urbana de cidades, em especial do Rio de Janeiro e São Paulo, aqui também com o decisivo trabalho de imigrantes.


Restauração Franciscana e a expansão urbana de São Paulo com a industrialização


As grandes transformações que acompanharam a expansão da cidade de São Paulo com o desenvolvimento econômico em época de florescimento do cultivo do café no interior do Estado e sobretudo da industrialização foram abrangentes. Elas não podem ser apenas consideradas nas suas evidências visíveis na arquitetura, na configuração urbana de seu centro e no crescimento o surgimento de bairros. Houve transformações e sobreposições de imagens e compreensões da cidade, de identificações com os seus espaços e com a paisagem que tinham determinado as origens e o passado do homem nas suas relações com a natureza. Essas dimensões mais amplas, menos evidentes quanto às complexas interações de diferentes imagens de espaços de vida da população manifestam-se de forma particularmente significativa na história da vinda e da atuação de Franciscanos alemães.


Tendo sido chamados primordialmente para a revitalização dos antigos conventos do Brasil, a sua atuação foi por exigências culturais e pelas circunstâncias dirigiu-os primordialmente a novas fundações em áreas de expansão. A isso levou não apenas o estado arruinado de edifícios, os seus espaços sentidos como inadequados e antiquados, as igrejas com linguagem visual de épocas passadas do Franciscanismo da época colonial portuguesa, e as dificuldades de recuperação de uso de instalações ocupadas para outros fins, como o de São Paulo, ocupado pela Faculdade de Direito.


Esses antigos edifícios encontravam-se em muitos casos em centros velhos de cidades, que haviam sido distantes dos seus núcleos em remoto passado, mas que agora se encontravam em meio de grande movimentação, da agitação de cidades em pleno desenvolvimento, de vida marcada pela corrida ao ganho, por interesses materiais e por barulho. É compreensível, assim, que os Franciscanos tenham procurado nas diferentes regiões locais mais adequados para o estabelecimento de centros de vida conventual que exigia silêncio para a oração e que deveria tornar-se focos de germinação de um processo reformador espiritual, de reconstrução da vida religiosa da população, reacostumando-a a frequentar as missas, a confessar-se, aos demais atos sacramentais e devocionais, assim como de reforma da moral e dos costumes vistos como decadentes.


Explica-se, assim, a procura de locais mais distantes dos movimentados, ruidosos e mundanos centros, à periferia, à situações mais próximas à natureza, favoráveis à paz de espírito e ao viver a alegria seráfica.


Essa procura não deve ser entendida no sentido de um desejo de fruição do prazer proporcionado por paisagens idílicas em lazer, mas como uma das expressões do ideal de modéstia e simplicidade, do viver junto a populações que levavam uma vida que contrastava com aquela marcada pela falta de modéstia e por luxo da sociedade que então frequentava os centros.


Só que, como o exemplo de São Paulo bem evidencia - e também o do Rio de Janeiro de outra forma  - essas regiões então mais afastadas, ainda marcadas pela proximidade à natureza e pela vida modesta dos seus habitantes, eram inseridas em processos transformatórios causados pelo crescimento das cidades e, no caso de São Paulo, sobretudo pelo surgimento de fábricas e pela fixação de operários, em grande parte imigrantes, que modificaram de forma acelerada as características que regiões e bairros.


A escolha de locais para novas fundações já considerava desenvolvimentos que então se previam. Não se procurava assentamentos em locais distantes como se houvesse o desejo de criar ermidas, mas sim situações liminares, marcadas ainda pela vida mais proxima à natureza de populações modestas mas que já deixavam antever amplos desenvolvimentos, de modo que a reforma religiosa, da moral e de costumes podia acompanhar e impregnar o crescimento dos bairros, fazendo com que os focos da ação dos Franciscanos - o convento, a igreja, a escola - se tornassem agora centros e marcos da comunidade que assim se desenvolvia


Transformação de paisagens urbanas e análise de processos a partir da atualidade


Torna-se difícil reconstruir as situações iniciais desse desenvolvimento em época ainda de maior proximidade à natureza e à vida simples de seus habitantes e que se modificava gradualmente com a chegada de imigrantes e a construção de depósitos e fábricas, assim como de residências de famílias em ascensão.


A aparência de bairros que assim surgiram pouco ou nada evidencia das condições paisagísticas do passado e da vida das populações modestas que ali viviam. Torna-se necessário, assim, reconstruir imagens, inserir-se empaticamente em situações remotas para compreender-se o desenvolvimento e a analisar a situação atual de um processo que foi visto como de combate á secularização e à herança do esclarecimento, de reforma da moral e dos costumes da sociedade, ainda que conduzido das margens e de baixo, de zonas mais distantes, periféricas e suburbanas e de população simples de trabalhadores e operários.


O contexto assim esboçado resulta do estudo da história franciscana na cidade de São Paulo e pode auxiliar análises de processos culturais no âmbito das preocupações atuais da nova „luta cultural“.


É significativo que os Franciscanos, confrontados com as grandes dificuldades que enfrentaram com o convento do Largo de São Francisco (Veja), tenham levantado um de seus principais centros no bairro do Pari.


Fisionomias perdidas da Várzea do Carmo e do Brás: pescadores e São Bom Jesus


Essa localização do convento dos Franciscanos no Pari dirige a atenção à grande baixada atravessada pelos rios Tamanduateí e Tietê, marcada pelas águas, de várzeas e de enchentes, que podia ser descortinada em magnífico panorama da colina onde se implantara a cidade.


A vida marcada pelas águas e pela profusão de peixes de seus rios límpidos determinou as atividades e a fixação humana em épocas mais remotas. A própria designação do bairro indica que ali indígenas já instalavam armações de paus e cipó com fins de pesca - „pari“ -, cujo grande número teria marcado a imagem da região como a de pescadores. Essas atividades tiveram continuidade em população constituida por indígenas cristianizados, modestos portugueses e grupos resultantes de mestiçagem, cujas atividades de pesca eram importantes para a alimentação da urbe. Esse passado do Pari revela uma imagem marcada nos seus fundamentos pela vida simples de pescadores, trabalhando em contato com a natureza, sem maiores ambições, assim como pela lembrança do passado missionário de São Paulo, o que seria lembrado posteriormente na denominação da escola paroquial do Pari segundo José de Anchieta.


Paralelamente, torna-se necessário considerar os elos do Brás com a tradição religiosa portuguesa e que contribui para elucidar os remotos fundamentos da lusitanidade que marcou posteriormente esse bairro.


Tem-se notícia que pelo menos já no século XVIII ali existia uma capela dedicada ao Bom Jesus de Matosinhos, levantada por um devoto - José Braz - cuja nome foi não apenas emprestado à capela - Bom Jesus de Matosinhos do Braz - como também a todo o bairro. Essa capela, reedificada entre 1800 e 1830, indica o significado da veneração do Bom Jesus de Matosinhos entre portugueses que da região de Matosinhos transferiram-se para o Brasil.


O significado da pesca e dos pescadores de Matosinhos tornam compreensível a veneração em região marcada pela pesca em São Paulo. Essa veneração, de remotas origens, centrada na imagem do Bom Jesus de Bouças, mosteiro que se encontra nas origens de Matosinhos, alcançou extraordinária intensidade no século XVI, como demonstra a grandiosa igreja levantada no século XVI sob o padroado da Universidade de Coimbra. No Brasil, a sua maior expressão é a do Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas, fundação também devida a um português, que orientou-se porém segundo Bom Jesus do Monte ou Bom Jesus de Braga de sua cidade, fato que poderia ser explicado tratar-se ali não de uma região marcada pela pesca, mas sim de montanhas. Também esse centro de veneração alcançou particular intensidade no século XVIII, o que se manifesta na sua arquitetura, tanto em Portugal como no Brasil.


As práticas devocionais e penitenciais transmitidas pela tradição indicam os elos entre o culto a Bom Jesus e a crítica à decadência pecaminosa vista na vida marcada pelo mundanismo de sociedade ávida de ganhos e materialista. Essa tradição portuguesa da região do Brás indica que já muito anteriormente à chegada dos Franciscanos alemães essa parte de São Paulo era identificada e marcada na cultura de seus moradores por virtudes como modéstia, simplicidade, recato e vida marcada segundo normas da moral consuetudinária. A veneração do Bom Jesus manter-se-ia no século XX, manifestando-se na denominação do Colégio Bom Jesus.


No decorrer do século XIX, o Brás e circunvizinhanças passaram a ser marcado por chácaras, mudando gradualmente as suas características, adquirindo feição mais cultivada, ainda que mantendo a simplicidade e modéstia no seu bucolismo suburbano ou semi-rural. Para atingi-las precisava-se atravessar a várzea do Carmo, ou seja a baixada situada abaixo de um dos lados da igreja de Nossa Senhora do Carmo cortada pelo Tamanduateí e sujeita a inundações.


Com trabalhos de retificação do rio e drenagem criou-se a ilha dos Amores, que com os seus jardins e balneário, tornou-se na segunda metade do século XIX uma obra paisagística que mereceria maior atenção, uma vez que manifestou o intuito de valorizar essa imensa região que se descortinava em toda a sua beleza dos altos da cidade, em particular do ádrio da igreja do Carmo.


Esse tratamento paisagístico ao mesmo tempo saneador e valorizador da várzea pode ser visto como resultado de uma visão da cidade em expansão e que tinha a oportunidade de se ver cercada por áreas verdes acompanhando os rios que a haviam delimitado. Por algumas décadas parecia não haver disparidade entre essa vocação paisagística da baixada e a ferrovia que a cortou, com os seus pátios de manobras e depósitos.


Segundo essa análise, ter-se-ia aqui um desenvolvimento similar àquele ocorrido em várias cidades européias, onde houve até de forma explícita a convicção que não deveria haver separação entre regiões de trabalho e residência, de operários e de proprietários e funcionários dirigentes, de parques e matos naturais; o desenvolvimento, porém, levou em muitos casos à perda de equilíbrio, levando ao absoluto predomínio de construções fabrís e depósitos, ao lado de casas operárias.


Enchentes na tradição bíblica do dilúvio em humanidade materialista


Nas primeiras décadas da presença dos religiosos alemães, essa região baixa era objeto de grandes projetos que procuraram aterrar as várzeas com o intuito de impedir enchentes. Os Franciscanos já tinham experiência de enchentes no sul, calamidades estas sempre aptas a ser interpretadas segundo a imagem bíblica da destruição da terra dos homens voltados à materia da geração de Caim pelo dilúvio.


A época foi marcada pelos trabalhos de aterragem de várzea e projetos urbanos e paisagísticos que davam expressão ao desenvolvimento extraordinário da cidade, em particular a criação de um grande parque segundo projeto de autor francês, cuja inauguração deu-se no ano do centenário da Independência do Brasil, 1922. 


Interpretando-se esse desenvolvimento segundo os critérios dos Franciscanos alemães, o parque surge como expressão de uma sociedade que, voltada ao crescimento material, enriquecida, atentava agora à exteriorização, uma imagem da combatida secularização e tradição do esclarecimento, lembrada essa na sua designação com o nome de Dom Pedro II, o imperador tão criticado pelos religiosos. Ela contrastava assim com aquela simples, modesta do bairro operário do Pari e Brás. Esse desenvolvimento dos Franciscanos na metrópole em expansão tornou-se conhecido na Alemanha através de obra do franciscano P. Cletus Spey O.F.M. ( Festschrift zum Silberjubiläum der Wiederrichtung der Provinz von der Unbefleckten Empfängnis im Süden Brasiliens 1901-1926, Werl i. Westf.: Franziskus-Druckerei 1929, 6-7)


De contextos imigratórios da colonização de terras àqueles do operariado urbano


Se no sul do Brasil os religiosos alemães iniciaram as suas atividades na esfera colonial de imigrantes alemães, tendo logo tido contatos com colonos católicos de outras proveniências, sobretudo italianos, em São Paulo entraram em contato com outro contexto da colonização e imigração no Brasil, a de operários industriais.


Também no Brás, a maior porcentagem dos imigrantes católicos era a dos trabalhadores italianos. Os portugueses do bairro, também numerosos, foram por algum tempo assistidos por Franciscanos banidos de Portugal á época da proclamação da República portuguesa. Na festa de Nossa Senhora da Luz, a 2 de fevereiro de 1914, criou-se a paróquia de Santo Antonio do Pari, tendo como pároco Frei José Rolim, que se empenhou à obtenção de doações, recebendo de um proprietário de terrenos - Arthur Vautier - área para a construção da igreja.


Assim que a situação em Portugal tornou-se mais favorável, os Franciscanos portugueses retornaram, permanecendo a paróquia sem assistência. Por esse motivo, o Arcebispo de São Paulo dirigiu-se ao Provincial dos Franciscanos alemães solicitando que a Ordem assumisse a paróquia e que fundasse uma representação no bairro.


Em 1916, chegaram os primeiros religiosos no Pari, onde precisaram erguer a igreja, o convento e uma escola, tendo como superior o P. Philipp Niggemeyer. Este foi seguido pelo P. Bonaventura Klemmer em 1917, P. Cyriacus Hielscher em 1918 e P. Oliverius Krämer, de 1918 a 1923.


O Ir. Felicianus Schlag OFM (1857-1923) na história da arquitetura de igrejas no Brasil


Werl. Fotos A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E.
Assim como em outras regiões, a atuação dos Franciscanos no Pari foi de início sobretudo marcada por construções, sendo que para as grandes obras havia a necessidade de levantamento de fundos através de esmolas da população, embora fosse esta de poucos recursos.


Para o início de sua atuação religiosa durante a construção dos edifícios, usaram de uma igreja paroquial provisória e de um pequeno convento sob a direção do arquiteto Irmão Felicianus Schlag, responsável por igrejas  e conventos em outras localidades do Brasil. A sua experiência levou a que fosse convidado por Vidal J. de O. Ramos Jr. (1866-1954) - mais tarde presidente do Estado de Santa Catarina - a dirigir a construção do prédio da Assembléia Municipal de Lages. O seu último trabalho foi a nova igreja paroquial de Quissamã no Estado do Rio de Janeiro. Felicianus Schlag foi respeitado não só pelos seus conhecimentos e experiência como mestre-de-obras, mas também pelo fato de, em modéstia franciscana, êle próprio trabalhar nas construções. (P. Cletus Espey OFM, op.cit. 168-169)


Um dos cuidados de Felicianus Schlag foi o de criar espaços interiores que oferecessem condições favoráveis para uma vida conventual segundo os ideais Franciscanos de silêncio e oração, com salas e corredores amplos e altos, arejados e bem iluminados, na sua simplicidade adequados à modéstia de vida como ideal. O convento do Pari, com as arcadas no seu claustro, de cujo primeiro pavimento podia-se contemplar um jardim interno com palmeiras, transplantava para essa área de São Paulo a atmosfera conhecida dos conventos alemães e sugeria elos com a Itália, talvez com Assisi de São Francisco ou com Pádua de Santo Antonio.


Poucos elementos decorativos quebravam a simplicidade da construção, entre êles losangos com cruz ou estrela estilizada entre os arcos. Indício de que as arcadas do Pari foram altamente consideradass nos meios Franciscanos como particularmente ideais para a vida religiosa é o fato de terem escolhido uma fotografia com alguns de seus residentes para publicação na Alemanha. As arcadas do Pari surgiam, assim, como uma espécie de substituto das arcadas do Largo São Francisco, essas ocupadas pela Faculdade de Direito. Embora as arcadas entrassem na tradição acadêmica, até mesmo identificando-se com a faculdade e seus estudantes, as arcadas franciscanas foram transferidas para a nova fundação no Pari.


Os pressupostos culturais de formação do Ir. Felicianus Schlag foi alvo de estudos à época da preparação do Simpósio Internacional „Música Sacra e Cultura Brasileira“ em São Paulo, em 1981 (Veja). Esses trabalhos foram desenvolvidos na região do seu nascimento e em centros de estudos de ordens missionárias na Alemanha e nos Países Baixos.


Procurou-se, aqui, reconhecer elos entre igrejas construídas na época na Alemanha e aquelas dos Franciscanos edificadas no Brasil. Felicianus Schlag nascera no povoado de Ailertchen, Diocese de Limburg, tendo entrado para a Ordem Franciscanas em Harreveld, em 1888, para onde os religiosos tinham-se retirado à época da „luta cultural“ e da qual voltavam nesse ano para os antigos centros alemães, tendo vindo para o Brasil em 1895.


A experiência de vida de Felicianus Schlag foi assim marcada pela memória da vivência dos Franciscanos sob as medidas prussianas, ou seja, por ressentimentos contra o que percebiam como perseguição secularizadora, marcando-o assim com profundos anelos de reconstrução religiosa que se manifesta na sua arquitetura. Ao mesmo tempo, vivenciou o reflorescimento franciscano na Alemanha, caracterizado que foi por um entusiasmo construtivo sem precedentes.


Essa intensificação na construção de igrejas, conventos, escolas e outros edifícios correspondia assim ao entusiasmo pelo retorno dos Franciscanos, ao crescimento de comunidades que colocavam novas exigências de espaço e com o intento de criação de igrejas e outros edifícios mais condizentes com um espírito de simplicidade e modéstia franciscanas. Correspondendo ao espírito do Historismo da época, a atenção voltou-se aqui sobretudo ao passado sentido como italiano ou romano antigo, da época de São Francisco, dando origem a várias construções em estilo neo-românico.


Na Vestfália, as diferentes formas de expressão desse anelo ao passado manifestaram-se sobretudo na obra do mestre-de-construção da catedral de Münster Wilhelm Sunder-Plaßmann. Um de seus principais projetos foi a nova igreja de Werl, construída entre 1904 e 1906 e consagrada em 1911. Construiu-se essa igreja pelo fato da antiga igreja de peregrinações já não mais comportar o grande número de devotos. A polêmica relacionada com projetos de demolição da antiga igreja barroca fêz com que a igreja de Werl se tornasse particularmente presente em toda a comunidade franciscana.


Referenciações estilísticas na arquitetura e Santo Antonio na imigração luso e italiana


Como em outras localidades, os Franciscanos empenharam-se desde o início ao ensino na convicção da necessidade de formação de novas gerações imbuídas de espírito religioso. No Pari, o P. Oliverius Krämer distinguiu-se nessas atividades educativas, dedicando-se ao ensino de meninos e jovens por décadas, entrando na história do bairro pelo seu altruísmo em ensinar crianças pobres. Também à festa de Nossa Senhora da Luz de 1919, a 3 de fevereiro, cinco anos após a inauguração da igreja de Santo Antonio, abriu-se a escola paroquial José de Anchieta.


A grande escola, quando pronta, logo contou com ca. de 800 alunos e 10 professores. Após ter-se completado esse edifício, o pároco - P. Oliverius Krämer - deu início a um empreendimento ainda de maiores dimensões, o do levantamento de uma igreja dedicada a Santo Antonio e que tinha o objetivo de ser uma das mais maiores e mais belas da capital. Apesar da pobreza dos operários do Brás e do Pari, o padre conseguiu levantar esmolas que possibilitaram a construção rápida da grande obra. A construção omeçou em agosto de 1922 e foi  inaugurada no dia da festa de Santo Antonio dois anos depois, em 13 de junho de 1924.


Essa foi projetada na tradição das antigas basílicas romanas, atentando-se porém segundo os princípios franciscanos a uma grande simplicidade. Nesse sentido, a igreja, que hoje surge como sem maior significado arquitetônico, tem, na sua discreção e simplicidade, uma singular modernidade conservadora, vindo de encontro à tradição do pensamento historicista do século XIX mas este interpretado segundo as concepções de modéstia e simplicidade franciscanas.


O fato da igreja ter-se orientado segundo uma tradição compreendida como romana tem sob dois aspectos particular significado: ela documentava a obediência e a lealdade a Roma, à autoridade pontifícia, e correspondia, ao mesmo tempo, à constituição populacional do bairro, com a sua grande porcentagem de imigrantes italianos.


Uma particular atenção foi concedida pelos Franciscanos aos altares laterais. O projeto previu 13 capelas laterais e, para as imagens, de acordo com a tradição mendicante de levantamento de fundos através de doações, conseguiu-se que as imagens e outros elementos de suas respectivas decorações fossem oferecidos por famílias do bairro, reunidades na forma de confrarias, o que exigiu o empenho do P. Oliverius Krämer em procurar famílias em melhores condições econômicas, motivar os habitantes e organizar a compra e instalação de imagens.


Esse empenho de famílias do Pari, do Canindé, do Brás e Móoca na construção da igreja apenas pode ser explicado pela intensidade da devoção aos santos franciscanos, em particular a Santo Antonio. Estes não podiam deixar de entusiasmar-se pelo intento do Pe. Krämer de levantar uma igreja que devia ser uma das maiores e mais belas da capital do Estado. Esse desejo de grandeza e beleza da construção correspondia ao desenvolvimento do bairro na época e ao espírito de uma população que, embora de condições modestas, encontrava-se em ascensão e estava imbuída de confiança no progresso do bairro. A igreja do Pari tornou-se, assim, um símbolo desses anos de formação de uma identificação com o bairro e de fundamental fase de sua história.


Em contextos  onde o Franciscanismo de antiga proveniência havia sobrevivido sobretudo em grupos populacionais de ascendência africana os Franciscanos alemães puderam contar sobretudo com o apoio de devotos de São Benedito, como no contexto de regiões marcadas por plantagens de café como Amparo, ou mesmo - ainda que com tensões - na igreja da Ordem Terceira do Seráfico Pai São Francisco de São Paulo. Em esferas da população brasileira de ascendência portuguesa, ainda que remota, ou de imigração mais recente portuguesa e italiana foram os devotos de Santo Antonio aqueles que maior proximidade tinham aos ideais, modos de vida e mentalidade dos missionários.


Também no culto a Santo Antonio pode-se proceder a diferenciações relativamente aos pressupostos culturais dos devotos. Na população brasileira, essa veneração remontava a épocas mais remotas do Franciscanismo do período colonial, mantendo formas de expressão portuguesas do passado.


Esse culto remontante à época colonial era aquele da sociedade „luso-brasileira“ como os alemães a definiam, termo este que não significa apenas a parcela de tez branca da população, uma vez que nela também se integravam fiéis de tez mais escura. Tratava-se antes de uma caracterização de natureza cultural ou religioso-cultural referente à população já assente no Brasil há mais tempo, em parte de séculos e que passara pela experiência de relativo abandono na assistência religiosa em décadas de enfraquecimento e extinção gradativa da vida conventual no Império. Este era o caso do Convento de Santos e do Rio de Janeiro, entre outros, fundações antigas, de antiga história e que se encontravam em grande parte vazios e em estado arruinado.


Entre os imigrantes portugueses, como aqueles representados em grande número no bairro do Canindé e em chácaras das circunvizinhanças, presentes em muitas ruas, entre outras em feiras no Largo do Pari e em quitandas e mercearias, entre elas na rua Santa Rosa, a vida de Santo Antonio era referenciada segundo a sua origem portuguesa e o centro de sua devoção em Lisboa: o venerado era Santo Antonio de Lisboa. Na população italiana, predominante no bairro, a devoção era a Santo Antonio de Pádua, ou seja, havia outras conotações culturais e referenciações históricas na mesma imagem de exemplaridade humana.


A igreja do Pari na Revolução de 1924 considerada na Alemanha e Santo Antonio militar


Um dos momentos em que a igreja do Pari desempenhou um papel que ultrapassou o seu significado no bairro e circunvizinhanças deu-se à época da Revolução de 1924. Como em 1926 celebrou-se a passagem dos 25 anos da reinstalação da Província da Imaculada Conceição no sul do Brasil, essa revolução era ainda recente e estava ainda marcada na memória dos Franciscanos, não apenas do Pari. Compreende-se, assim, ter sido considerada com mais atenção na publicação comemorativa o P. Cletus Espey O.F.M. (op.cit. 131).


Uma época difícil da paróquia foi aquela da Revolução de 1924, quando a igreja foi usada como ponto de observação dos revoltosos que atiraram nas tropas legalistas do telhado da igreja. O fato da igreja e do convento terem permanecido incólumes foi considerado pelos Franciscanos como verdadeiro milagre, atribuído à proteção de Santo Antonio. Essa menção revela a vigência de concepções de natureza militar de Santo Antonio, o santo que no passado foi nomeado a capitão de fortalezas e exércitos.(Veja)  Santo Antonio surge no exemplo da igreja do Pari nessa antiga tradição do grande protetor, do capitão ou soldado que, com os meios suaves Franciscanos da modéstia, simplicidade e amor divino combate os ameaçantes revolucionários por meio a proteção.


Os alemães também tomavam conhecimento da intensa vida religiosa do bairro a partir de registros dos Franciscanos de Pari da época; impressionante nesses dados surgia sobretudo o alto número de confissões, prova do grande trabalho dos religiosos e testemunho mais evidente do sucesso dos missionários no seu intento de fomento da santificação dos fiéis e da pureza pessoal; a vida religiosa nas famílias manifestava-se altíssimo número de comunhões e primeiras comunhões. (op.cit. 131-132)


„Apesar da grande pobreza dos seus próprios filhos paroquiais, êle (Pe. Krämer) soube por em execução a grandiosa obra em tempo incrívelmente curto. Executada em magnífico estilo de basílica, a igreja tem 60 metros de comprimento, 28 de largura e 24 de altura. Ainda faltam as duas massiças torres, que devem atingir 52 metros de altura, elas serão porém completadas em pouco tempo. (...) Visivelmente a proteção de Santo Antonio esteve sobre o seu santuário nos dias sangrentos da Revolução de 1924. Ainda que a igreja que havia sido consagrada há pouco tenha sido usada pelos revoltosos como ponto de observação, que atiravam nas tropas legalistas do telhado, de modo que nós temíamos a cada momento que essa bateria fosse rebatida pelo fogo das tropas, a igreja e o convento permaneceram protegidos de granadas.


Relativamente aos trabalhos de cura d‘almas, temos apenas à disposição um registro do ano de 1925. Segundo êle, celebraram--se 1302 batizados, 225 casamentos, 34600 confissões. O número de comunhões foi de 48300, de primeiras comunhões 520, proferiram-se 386 pregações e 2248 catequeses. O número de assistência a moribundos foi de 253.“ (op.cit. 132)


De ciclos de estudos da A.B.E. sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo



Todos os direitos reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências: Bispo, A.A. (Ed.). „Bairro do Pari - São Paulo (SP):
O Convento de Santo Antonio em meio operário italiano e português da várzea entre o Tamanduateí e o Tietê: anti-secularização acompanhando a industrialização. A arquitetura do Ir. Felicianus Schlag OFM (1857-1923)“
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 150/4 (2014:4). http://revista.brasil-europa.eu/150/Pari-Convento_de_Santo_Antonio.html