Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Fotos - do convento: P. Cletus Espey OFM, op.cit.;
de São José:
Gedenkbuch zur Jahrhundertfeier Deutscher Einwanderung (...), op.cit.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 150/11 (2014:4)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N°3123





São José (SC)

Transformações urbanas em via a regiões de expansão colonial
Da cultura retórica da argumentação à simplicidade de expressão franciscana
Sentidos de doenças mentais: a invocação angelical do hospício da Praia Comprida

 

Quem visita hoje São José, na área metropolitana do Grande Florianópolis, com a sua fisionomia marcada por indústrias, altos edifícios, intenso tráfego e consequentemente com os seus problemas de poluição de ar, água do mar e barulho, dificilmente pode deslocar-se mentalmente a situações passadas que permita analisar desenvolvimentos culturais da região nos seus condicionamentos naturais e nas suas inserções em dimensões mais abrangentes.


Avistando-se porém a paisagem a partir do monte Pedra Branca, de onde se descortina o Atlântico, as praias e a natureza envolvente, encontra-se caminhos para a compreensão empática da história do povoamento local e do processo cultural desencadeado por imigrações e pela ação de religiosos alemães vindos ao Brasil com o intuito de revitalização da vida conventual e da restauração religiosa da sociedade.


Os seus intentos anti-secularizadores e anti-modernistas surgem, na situação atual de São José como distantes da realidade e sem maiores consequências. Ocorridos porém à época e sob as condições criadas pela proclamação da República no Brasil, abrem perspectivas para análises culturais e para a percepção de correntes que, de forma não refletida e consciente podem continuar vigentes.


Embora a transformação urbana de cidades em expansão em muitos casos levaram a que fundações franciscanas que anteriormente se situavam às margens de núcleos urbanos, em meio a populações mais simples e próximas à natureza, passassem a se situar em meio ao movimento e agitação de antigos centros e bairros, como em Ipanema no Rio de Janeiro ou no Pari, em São Paulo, São José oferece um caso particularmente favorável para estudos de processos de expansão urbana em cidades que passaram a ser de periferia dentro de uma abrangente aglomeração nas suas relações com processos culturais.


A rodovia que a corta acentua o seu interesse para estudos urbanológicos de esferas periféricas de grandes centros marcadas ou reorientadas segundo vias de comunição com outras cidades e mesmo longínquas regiões.


Correspondentemente, São José foi considerada em estudos realizados no contexto de viagem ao sul do Brasil sob o signo dos estudos voltados a processos culturais relacionados com vias de comunição desenvolvidos em São Paulo a partir de meados dos anos 60 e que levaram à fundação da Sociedade Nova Difusão em 1968. Nesse projeto, que contou com o apoio da Associação Brasileira de Folclore, participaram arquitetos formados pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, além músicos e pesquisadores culturais. São José havia sido visitada durante estadia do show Blow up na capital de Santa Catarina dois anos antes, quando as atenções eram voltadas à criação de imagens na cultura popular e sua influência em zonas que passaram a ser de periferia.


São José em publicações alemãs do século XIX e início do XX


O fato de São José estar situado em via de comunicação entre a capital de Santa Catarina e as regiões de colonização alemã era conhecido em publicações alemães do século XIX. Como exemplo pode ser lembrada a menção da cidade no Manual de Geografia e História referente ao Brasil de 1871 (J.C. Wappäus , Handbuch der Geographie und Statistik. Brasilien, Leipzig: J. C. Hinrichs‘sche Buchandlung, 1871, 1814):


„São José, ca. de uma légua a oeste de Desterro no continente, na enseada de mesmo nome, um povoado já antigo, é agora cidade com juriscrição municipal, que se estende amavelmente numa colina e que possui algumas bem bonitas casas. A parte baixa da cidadezinha, em geral sem significado, a assim-chamada Praia Comprida, tem tráfego bastante intenso, pois aqui começa a estrada para o interior. Essa parte é habitada sobretudo por alemães, antigos colonos, e aqui se encontram algumas bem bonitas casas, uma igreja cuja construção está iniciada mas que foi interrompida.“ (op.cit. 1814)


Um caminho para a percepção de desenvolvimentos passados na situação complexa oferecida por São José foi possibilitada pelo estudo das crônicas da história franciscana incluidas em obra comemorativa dos 25 de restabelecimento da Província da Imaculada Conceição no sul do Brasil em 1926, e na qual é dedicado um capítulo a São José. (Festschrift zum Silberjubiläum der Wiedeererrichtung der Provinz von der Unbefleckten Empfängnis im Süden Brasiliens 1901-1926, Werl i. West.: Franziskus 1929, 126)


Esse estudo serviu de preparação ao Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira e ao colóquio que se seguiu no centro franciscano de Petrópolis em 1981.


Desse texto, depreende-se que os Franciscanos estabeleceram-se em São José justamente pela sua posição próxima à capital, pelo fato de situar-se em meio à população simples do litoral e pelas condições naturais que oferecia a uma vida religiosa segundo valores Franciscanos.


O descobrimento nesse sentido das praias de São José foi devido ao P. Zeno Wallbröhl OFM(1866-1925) que então auxiliava ao pároco catarinense P. Manfredo Leite na paróquia de São José.


O P. Wallbröhl, já então marcado pela doença e por cura vista como obtida graças à intercessão de Maria, acalentando o projeto de cumprimento de promessa de ereção de uma gruta a Nossa Senhora de Lourdes que por fim instalaria em Angelina (Veja), não podia deixar de fascinar-se com uma região banhada pelo mar e pela cultura litorânea de sua população.


A cura de doentes mentais pela intercessão do anjo São Rafael


Em 1903, para estabelecer-se em Santa Catarina, a Província adquiriu um terreno nas proximidades da capital do Estado, no continente, possibilitando assim alojamento para os seus membros nas suas frequentes idas às autoridades civis e eclesiásticas locais.


Fundou-se, na Praia Comprida da paróquia de São José um hospício dedicado a São Rafael e que passou a ser administrado pelo P. Zeno Wallbröhl. Este servia como auxiliar ao pároco catarinense Manfredo Leite, que logo pediu que a Ordem assumisse a paróquia, transferindo-se para São Paulo.


A dedicação da instituição ao arcanjo Rafael assume particular significado considerando ser este invocado na tradição religiosa em situações de cura espiritual, mental ou de alma - e a partir dela de corpo - o que já se expressa na sua própria denominação (Deus cura) e no texto do Velho Testamento no qual surge como aquele que curou o pai de Tobias. Os seus elos com a cultura marítima na tradição cristã manifesta-se na imagem dos órgãos internos do peixe que apontou a Tobias (Tob 6, 8, 10-13). Essa veneração do anjo Rafael indica que os Franciscanos viram o local como adequado à cura de almas a partir do espírito ou da mente.


„Como a Província nos primeiros anos ainda não possuia estabelecimento na capital do Estado de Santa Catarina, adquiriu em 1903 um terreno nas suas proximidades no continente para possibilitar um abrigo a seus membros nos tratos frequentemente necessários com as instâncias diocesanas e seculares. Com esse objetivo, fundou-se um hospício na pequena localidade costeira de Praia Comprida na paróquia de São José, sendo encarregado o P. Zeno Wallbröhl da sua administração. O pároco Pe. Manfredo Leite, catarinense de nascença, alegrou-se muito com esse auxílio, pois queria aceitar um convite de São Paulo.No ano seguinte, vindo de encontro a esse desejo, fundou-se a residência de S. Rafael em São José.“ (op.cit. 126)


A casa residencial, modesta, situava-se em posição privilegiada, com magnífica vista de mar, um local que surgia como adequado para o desenvolvimento de uma vida religiosa que exigia concentração, serenidade, proximidade à natureza e sobretudo ao povo simples que vivia de trabalho junto à terra e ao mar.


Do brilho da retórica sacra à simplicidade da pregação e à simpatia pela amabilidade


Diferentemente das regiões coloniais, a presença dos religiosos alemães em comunidade já antiga, em meio à população brasileira, não podia ter deixado de ser acompanhada por problemas causados pelo pouco domínio do português. Não se tratava aqui apenas de uma questão do idioma, mas de uma cultura religiosa com outras características daquela dos Franciscanos da época da restauração litúrgico-musical.


A comunidade estava acostumada com a retórica brilhante do pároco brasileiro, considerado grande orador sacro, não podendo ser neste sentido substituido pelos alemães, não apenas pelo pouco domínio do idioma, mas por outras concepções quanto ao estilo de pregação, atentos a um modo de falar simples, apto a ser compreendido pelos fiéis mais modestos.


Os Franciscanos, por sua vez, achavam que a vida religiosa luso-brasileira se resumia às grandes festas tradicionais, necessitando ser reformada  - ou restaurada - a partir do seu âmago ou vida interior, em particular do fomento da assistência às missas e aos sacramentos. A retórica na pregação surgia como um sinal não apenas de vaidade intelectual, mas sim de intentos de transmitir convicções a partir de técnicas argumentativas, demonstrando assim um predomínio da razão e da procura de conhecimentos.


„Não foi certamente fácil substituir o pároco (P.Manfredo Leite) junto ao povo, pois este, como conterrâneo, dele se achava muito mais próximo, sendo, além do mais famoso como brilhante orador sacro. A escolha do P. Nicodemus Grundhoff para primeiro superior em São José demonstrou-se porém como sendo muito feliz, pois ele soube, com grande jeito, tato e extraordinária amabilidade, ganhar a simpatias de todos, mesmo daqueles de outras confissões.“ (loc.cit.)


Vida religiosa marcada por festas e esforços de reforma em reação anti-secularizadora


„A situação religiosa, que êle (P. Nicodemus Grundhoff) encontrou, eram as mais tristes que se poderia imaginar. A igreja era apenas visitada nas festas tradicionais. Assim, não era de se admirar que também o recebimento dos sacramentos era deficiente. Grande ignorância e desinteresse em questões religiosas muito dificultou o trabalho que os padres iniciaram. O segundo sucessor do P. Nicodemus, o P. Dominicus Schmitz, até então coadjutor, conseguiu por fim após incansável atividade de anos um florescimento gratificante da vida religiosa. Para primeiramente conquistar a juventude, fundou uma boa escola elementar, que foi dirigida pelas irmãs da Providência Divina. Para os jovens e homens criou uma Liga que cuidava de divertimentos moralmente sadios e conversações, trazendo a vida religiosa em amplas camadas da população. A esse último objetivo serviram também as associações religiosas florescentes do Apostolado da Oração, da Ordem Terceira, da sociedade vicentina e da congregação de jovens e moças virgens. Os padres também alcançaram méritos sob certos aspectos à promoção do desenvolvimento material, o que foi reconhecido tanto pelo povo como por instituições oficiais.“ (op.cit. 127)


Atividades construtivas e casa paroquial à beira-mar


Como em outras localidades, particularmente intensa foi a atividade voltada à construção de igreja representativa do novo espírito. A antiga igreja paroquial, em estado deplorável, foi renovada no seu exterior e no interior, e muitas capelas foram reconstruidas.


„Na torre e no telhado cresciam grama e arbustos. Depois de ter sido renovada a fundo por fora e por dentro, reconstruiram-se numerosas capelas ou foram estas substituidas por novas.A construção de um convento próprio, porém, não foi conseguida pelos Franciscanos de São José após 22 anos de atividades. Sempre continua a servir como moradia um casa particular bastante modesta, de um só andar. O que, porém, essa pobre casa tem à frente de muitos conventos é a sua situação encantadora na magnífica baía de mar. Segundo os testemunhos de sacerdotes seculares que conheciam São José do passado, os sucessos dos Franciscanos na paróquia foram acompanhados da benção extraordinária de Deus. Isso documenta o fato de que desde os primeiros anos de 1904 os padres passaram a registrar 500 comunhões; depois de 10 anos, já eram acima de 12000. O prestígio que gozam no povo manifestou-se quando da transferência do pároco Dominicus Schmitz que ali atuara por tantos anos. Ca. de 700 pessoas, tendo a administração municipal à frente, a êle apresentaram os seus mais efusivos agradecimentos. A sua viagem de saída foi a de um cortejo triunfal. 13 carros o acompanharam até os limites da paróquia. Mais tarde, a sua imagem, que os habitantes mandaram fazer às próprias custas, foi colocada no local da associação e uma outra na sacristia para a sua permanente memória.“ (op.cit. 128)


Confronto com oponentes às atividades de Franciscanos alemães durante a Guerra


Com a declaração de Guerra do Brasil à Alemanha, intensificou-se a reserva que os Franciscanos sentiram desde o início por parte de determinados círculos da população que viam preocupados o recrudescimento da religiosidade em São José. A residência foi atacada e a Província decidiu suspender a sua presença em São José. A retirada dos frades alemães da cidade apenas pôde ser impedida a partir de um abaixo-assinado.


„Esse Hosana (ao Pe. Schmitz) seguiu-se bem logo a cruz nos primeiros dias da declaração de Guerra do Brasil à Alemanha. Quando, nessa ocasião, uma multidão popular atiçada atacou a moradia dos padres e a destruiu em parte, a direção da Província tomou a decisão de extinguir a residência em São José. Mas tanto o digníssimo bispo diocesano como também o povo resistiram com todos os meios à retirada dos Franciscanos. Um requerimento com mais de 180 assinaturas foi entregue ao P. Provincial, que assim cedeu. Dessa forma, os Franciscanos continuam a trabalhar com diligência e sucesso, ainda que também mais tarde não faltaram dificuldades e sacríficios que só são conhecidos por Deus. Como superiores e párocos atuaram em São José: P. Nicodemus Grundhoff 1904; P. Herculanus Limpinsel 1905-1907; P. Dominicus Schmitz 1907-1914; P. Bruno Linden de 1914-1918; P. Paulus Luig de 1918-1920; P. Norbert Tambosi de 1920-1921; P. Fidelis Kamp desde 1921. No momento atuam ao lado do vigário os pares Menander Kamps e Sylvester Düsterhaus.“ (op.cit. 128)


De ciclos de estudos da A.B.E. sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo






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Indicação bibliográfica para citações e referências: Bispo, A.A. (Ed.). „ São José (SC). Transformações urbanas em vias a regiões de expansão colonial. Da cultura retórica da argumentação à simplicidade de expressão franciscana. Sentidos de doenças mentais: a invocação angelical do hospício da Praia Comprida. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 150/11 (2014:4). http://revista.brasil-europa.eu/150/Sao_Jose_SC.html