Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Fotos atuais: A.A.Bispo 2010 ©Arquivo A.B.E.
Fotos antigas: M.E.A.Marques, „Apontamentos...“ op.cit.; Valsa Acadêmica de P. A. Gomes Cardim, Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 150/2 (2014:4)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3114



São Paulo (SP)
Academia X Convento
Secularização e anti-secularização em referenciações alemãs:
a
Bucha e a restauração franciscana no caminho da urbe à metrópole
Lembrando Frei Basilius Röwer OFM (1877-1958)

Pelos 80 anos da Universidade de São Paulo

 
Faculdade de Direito SP. Foto A.A.Bispo ©
A atenção e a simpatia que o Franciscanismo desperta no presente devido ao atual Pontífice - apesar de ser este jesuita - torna oportuno considerar a história franciscana no Brasil sob a perspectiva dos estudos de processos culturais. (Veja)


Essa história é marcada por duas fases distintas: uma primeira remontante aos primeiros momentos do Descobrimento e uma segunda determinada pela revitalização ou mesmo reinício e implantação da presença franciscana à época da proclamação da República no Brasil.


Essa ressurreição inseriu-se em contextos políticos nacionais, político-culturais europeus e de renovação de cunho restaurativo da Igreja no século XIX e início do XX. Para além de inscrever-se em processos político-culturais em dimensões abrangentes, nacionais e internacionais, que transportaram ao Brasil complexas situações de países europeus quanto a relações entre a Igreja e o Estado, entre desenvolvimentos seculares na tradição do esclarecimento e intentos retroativos do Catolicismo conservador e ultramontano da época da „luta cultural“ na Alemanha, o renascimento do Franciscanismo no Brasil merece ser considerado nos estudos culturais também pelo fato de fazer parte de uma história da imigração e das relações Alemanha/Brasil.


Faculdade de Direito SP. Foto A.A.Bispo ©
Os missionários, provenientes da Província Franciscana da Saxônia, contam-se entre os mais eficazes agentes de difusão da cultura alemã no Brasil e mediadores culturais entre o Brasil e a Alemanha: daquela Alemanha católica da segunda metade do século XIX e primeira metade do XX.


Os conventos Franciscanos criados ou repovoados constituiram importantes centros religioso-culturais no país, onde se falava o alemão e se liam publicações nesse idioma, mas também onde se processava a acomodação cultural dos religiosos, onde estes aprendiam o português e passavam a traduzir e produzir obras edificantes e moralizadoras, a preparar noviços, a promover o ensino de brasileiros segundo critérios que traziam de sua própria formação e a desenvolver ampla atividade de propaganda através da palavra oral e publicada em imprensa própria.


Restauração do Franciscanismo em contextos imigratórios e em antigas urbes


Ainda que a sua vinda tenha sido resultado de empenho de Franciscanos brasileiros da Bahia, os missionários alemães foram dirigidos de início ao sul, onde se ofereciam melhores condições para o começo de sua vida e atividades na nova terra devido à língua, à aclimatação e onde colonos alemães podiam oferecer apoio nessa fase inicial. Compreende-se, assim, que os primeiros passos do renascimento do Franciscanismo no Brasil tenham-se dado sobretudo em regiões onde não havia existido ou tinha sido apenas pontual no passado, surgindo residências, conventos e colégios em territórios recém abertos à colonização e que agora passavam a ser orientados segundo o espírito anti-modernista do Catolicismo preconizado pelo Concílio Vaticano I e legislações que o seguiram.


Basilius Röwer OFM
A partir desses primeiros momentos marcados por novas fundações é que se processou o repovoamento dos antigos conventos. Tem-se aqui, assim, um significativo campo de estudos para a pesquisa de processos imigratórios, uma vez que desenvolvimentos vinculados à imigração alemã em dois sentidos - o dos agentes e o do meio receptor - levaram à revitalização de centros remontantes à primeira fase da ação dos Franciscanos no Brasil, em vários casos conventos de antiga tradição e que haviam caído em decadência, sem noviços, encontrando-se à beira da extinção, arruinados ou abrigando outras instituições. A ação dos Franciscanos foi aqui a de restauração em duplo sentido, uma vez que antigos conventos passavam a ser restaurados na sua existência, e essa restauração processava-se segundo o espírito restaurador do Catolicismo do século XIX.


Nos estudos culturais voltados ao processo anti-secularizador e reformador da vida religiosa e da moral em combate a desenvolvimentos que os Franciscanos viam como remontantes à época do Iluminismo, as dimensões politico-culturais desse processo devem ser consideradas tanto no contexto alemão da „luta cultural“ como no brasileiro, uma vez que o clero e os religiosos viam no Império sob D. Pedro II a continuidade da época do Esclarecimento e na República a tão esperada liberdade para dar início à sua ação de combate à secularização e reconstrução dos elos da população com a igreja e de sua moralização segundo normas eclesiásticas.


Na consideração dessas consequências paradoxais da separação da Igreja e do Estado sob a República é necessário considerar caminhos e rêdes no desenvolvimento histórico das fundações e reconstruções, sendo oportuno distinguir a presença e ação franciscana nos diferentes contextos, em regiões da imigração e colonização alemã e nos centros mais antigos, assim como as suas interações.


Ainda que procurando por razões de idiomas, culturais e de relações pessoais as regiões colonizadas por compatriotas no sul e a seguir em Petrópolis, não se pode esquecer que o contexto colonial era em muitos casos marcado pelo grande número de alemães evangélicos, o que favoreceu a atuação dos religiosos alemães junto a colonos italianos. Sob alguns aspectos, pode-se constatar um singular caminho na integração e atuação dos Franciscanos alemães: de meios de imigração italiana à sociedade brasileira.


Observar esse caminho parece ser importante na análise da revitalização franciscana em São Paulo, uma vez que - apesar de serem os religiosos alemães, falarem o idioma e estarem estreitamente vinculados com situações religioso-culturais alemãs - a sua atuação deu-se não tanto no âmbito da colonia alemã de São Paulo, mas sim sobretudo em contextos da imigração italiana e portuguesa em regiões de desenvolvimento econômico na metrópole e no Estado.


Essa preocupação diferenciadora nos estudos de processos culturais, em particular também daqueles que se relacionam com São Paulo não pode deixar de considerar o desenvolvimento das reflexões das últimas décadas.


Desenvolvimento de estudos culturais relacionados com os Franciscanos em São Paulo


Uma nova fase dos estudos culturais relacionados com os Franciscanos em São Paulo teve início na segunda metade dos anos 60 no âmbito dos intentos de renovação de perspectivas através de um direcionamento da atenção a processos e que levou à fundação da sociedade Nova Difusão em 1968. (Veja)


A preocupação fundamental era a de superar perspectivas reconhecidas como estreitas e solucionar problemas metodológicos e de alcance de conhecimentos em disciplinas particularmente voltadas à música que se definiam segundo categorizações de esferas culturais - do erudito, do popular e do folclore. A atenção passou a ser dirigida a transpasses de fronteiras entre essas supostas esferas culturais, a movimentações e osmoses.


O direcionamento da atenção a processos e processualidades não significou aqui apenas a consideração de desenvolvimentos econômicos, urbanos e da vida social no sentido mais convencional do termo e que já eram tratadas na história, na sociologia e em outras áreas, e o que levaria, no caso da música, apenas a uma atenção maior a contextos ou à história cultural, com o risco de recuos quanto à profundidade de estudos específicos.


Reconheceu-se que a atenção devia ser dirigida a processos menos evidentes, velados, „imateriais“ ou espirituais, no campo das idéias e imagens, de referenciações culturais, intelectuais, religiosas, emocionais e outras, pois somente a consideração dessas dimensões não imediatamente lidas em leituras literais de textos e da fisionomia de regiões e cidades poderia explicar incongruências e paradoxos, transformações de funções, de sentidos e de atmosferas em paisagens e edifícios que nas suas aparências tinham permanecido os mesmos através das décadas.


Essa necessidade manifestava-se com particular evidência na música, uma vez que a prática musical em igrejas não correspondia em muitos casos àquela manifestada na arquitetura e na decoração interna das mesmas. Numa primeira aproximação, perguntava-se qual a música que havia soado nessas igrejas em passado que correspondesse à linguagem visual de sua arquitetura e à configuração de seus espaços internos, vindo assim de encontro a anelos do conservacionismo patrimonial de bens e monumentos construidos; havia aqui o intuito nem sempre consciente de recriação de uma integralidade perdida.


Logo percebeu-se, porém, que esse intento não era suficiente e que as relações entre essa vida interior de edifícios e a sua fisionomia exterior era muito mais complexa, já que aquela havia passado por transformações que nem sempre refletiram nas suas aparências. Uma reconstrução a partir de aparências exteriores poderia até mesmo representar uma retomada historicista de situações, turvando a sensibilidade para uma dinâmica interna de processos imateriais na esfera do pensamento e mesmo das emoções.


Esses processos poderiam ter continuidade no presente, influenciando o pesquisador, de modo que a reconstrução no sentido historista ou de recuperação e reconstrução patrimonial do imaterial poderia não só turvar a percepção para as transformações através do tempo como também a do presente, prejudicando a refletividade do observador e o seu posicionamento consciente perante as exigências do seu tempo.


Esse intento poderia levar a visões e emoções apenas guiadas pela nostalgia, favorecendo posições passadistas e tradicionalistas, a um conservativismo nos estudos culturais que não considerava suficientemente a complexidade das interações de tendências dirigidas ao passado e ao futuro em tempos mais remotos e no presente.


Constatava-se que músicos e pesquisadores, dedicando-se ao estudo do patrimônio músico-cultural do Brasil, constituido no passado sobretudo de música para as igrejas, ainda que provenientes de formação e ambiente social secular, reaproximavam-se à religião, procurando caminhos e meios de recuperação da própria catolicidade. De um intento inicialmente exclusivamente voltado à pesquisa, à análise, ao esclarecimento de questões e contextos, resultava assim para o pesquisador um obscurecimento quanto à sua própria capacidade de tomada consciente de reflexões no presente: meios de expressão utilizados para a propagação religiosa em tempos remotos voltavam a atuar através de valores emocionais e afetivos.


Esse problema parecia ser particularmente grave entre músicos-pesquisadores voltados sobretudo à prática musical e que, à procura de obras, execução e interpretação, deixavam-se arrebatar por meios de conquista espiritual do passado vigentes através de suas expressões musicais.


Também essa situação e esses riscos assim reconhecidos de de-esclarecimento e de favorecimento de posições passadistas e mesmo reacionárias revelaram-se porém como sendo mais complexos do que inicialmente suposto.


O primeiro passo para o reconhecimento dessa complexidade foi dado quando se tomou consciência da grande luta que marcou a história da música no Brasil - a do combate à tradição coro-orquestral do século XIX e inicio do XX pelos propagadores e cultivadores da reforma litúrgico-musical - em confronto com as qualidades que se passavam a reconhecer em muitas das obras marginalizadas e da situação questionável que essa cisão criava para a historiografia no Brasil (Veja).


A constatação de que esse passado havia sido combatido como expressão da secularização e mesmo de resquícios da época do Iluminismo pelos reformadores colocava esse repertório e as correspondentes estruturas musicais combatidas e desqualificadas em inesperada luz. De marginalizada, quase que totalmente extinta, vivendo apenas em poucos círculos de irmandades e cidades particularmente cientes de suas tradições, essa esfera da prática musical deixava de ser vista como expressão de extremo conservadorismo e tradicionalismo, mas pelo contrário, surgiam como bastiões de um desenvolvimento avançado no passado, acusado de esclarecido pelos agentes da reforma!


Procurar redescobrir esse repertório perdido, os nomes de seus mestres e as rêdes em que se inseriam já não era mais apenas uma exigência da pesquisa e da reflexão historiográfica, mas significava nolens volens ver desenvolvimentos a partir dos combatidos e tomar assim posição que tinha sido acusada como expressão da secularização e herança da época das luzes.


A valorização do patrimônio cultural submerso, marginalizado e desqualificado, conservado por círculos vistos como particularmente tradicionais surge, assim, como expressão e posicionamento de direcionamentos a avanços e ao esclarecimento.


O reconhecimento dessa situação sob muitos aspectos paradoxal foi possibilitada pelo fato das reflexões terem ocorrido nos anos marcados pelo Concílio Vaticano II, quando o desenvolvimento litúrgico-musical das decadas anteriores passou a tornar-se passado a ser superado, surgindo os reformadores que haviam combatido a prática musical nas igrejas como representantes de um conservadorismo restauracionista a ser suplantado, defendido em círculos tradicionalistas e mesmo reacionários.


Movimento de renovação da pesquisa e da pratica e a Faculdade de Direito de São Paulo


A participação de vários acadêmicos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco no movimento voltado ao estudo de processos iniciado em São Paulo contribuiu de forma significante à percepção desse complexo de problemas culturais e ao desenvolvimento das reflexões. A nova sociedade para a renovação dos estudos e da prática então criada (Nova Difusão), foi significativamente inaugurada pelo Madrigal das Arcadas, que era constituido em grande parte por estudantes e formados naquela faculdade.


Já a lembrança das arcadas no nome do conjunto trazia à consciência do significado de referenciações segundo o antigo convento franciscano na memória, imagem e identificação de uma faculdade de ciências jurídicas e sociais que ainda se encontrava no mesmo local e instalada em edifício que o reconstruia de forma modificada e historicizante.




Se as relações entre a Faculdade de Direito e a história da música de São Paulo já havia sido alvo de estudos e de substancial publicação da época do Quarto Centenário da cidade em 1954 (Carlos Penteado de Rezende, Tradições Musicais da Faculdade de Direito de São Paulo, São Paulo: Saraiva,1954), veio agora à consciência que as perspectivas para a consideração de processos músico-culturais de São Paulo e de suas consequências para o Brasil deviam ser mais amplas, inseridas nas abrangentes dimensões do Franciscanismo do passado colonial, da secularização no século XIX e do ressurgimento da Ordem após a República.


Sob esse aspecto, o fato da faculdade de ciências jurídicas e sociais ainda estar instalada no prédio do antigo convento, - ainda que hoje sob fisionomia transformada neo-barroca ou neo-colonial do século XX -, vizinha à igreja conventual e à da Ordem Terceira, surgia como o mais significativo testemunho da secularização no Brasil independente e da transformação dos espaços conventuais que, no caso, passaram a ser ocupados pela mais relevante instituição de estudos superiores do país do século XIX.


Como um monumento vivo, a tradição acadêmica das arcadas fala de uma transformação fundamental na história cultural do país, de uma reorientação da vida conventual em direção às ciências e às artes em processo remontante ao esclarecimento e que, estando ainda dominando o Largo de São Francisco, documenta não ter ali totalmente vingado a restauração que foi vivenciada por outros antigos conventos brasileiros através da ação de missionários alemães após a proclamação República.


Essa visão trouxe assim à consciência uma situação paradoxal na imagem da Faculdade do Largo São Francisco: considerada conservadora pela manutenção de tradições acadêmicas em época do desenvolvimento do campus da Universidade de São Paulo na Cidade Universitária, ela surgia como documento de um desenvolvimento histórico imbuído de concepções dirigidas ao saber e aos conhecimentos do século das luzes, nos seus elos com movimentos do liberalismo esclarecido na Europa.



A „Bucha“ dos acadêmicos de São Paulo e as Burschenschaften: Julius Frank (1808-1841)


Essa tradição tinha o seu mais evidente monumento no túmulo de Johann Julius Gottfried Ludwig Frank em pátio interno da Faculdade, que ali jaz não só pelo fato de como protestante não poder ser enterrado em cemitério católico como também pelo grande significado que adquiriu e a influência que exerceu no meio estudantil de São Paulo no século XIX.


Nascido em Gotha, tendo estudado em Göttingen e participado em movimentos politicos na Alemanha, fugiu para o Brasil, tendo chegado ao Rio de Janeiro em 1828. Após trabalhos ocasionais em Ipanema (Sã Paulo) e Sorocaba, foi contratado em São Paulo para ensinar História e Geografia no Curso Anexo à Faculdade de Direito; escreveu para os estudantes um resumo da História Universal e destacou-se na difusão do pensamento de filósofos alemães no Brasil, assim como de ideais de reforma política de cunho democrático e nacional-liberal. (Veja e.o. Antonio Barreto do Amaral, Dicionário de História de São Paulo, São Paulo 1980, 204)


O significado de Julius Frank reside no fato de ter sido o fundador da „Bucha“ em São Paulo, um termo que representa uma versão ao português, abreviada, do termo „Burschenschaft“, ou seja, união ou liga de rapazes estudantes. Esse conceito indica a recepção, no Brasil, da idéia de uma união de estudantes acima dos agrupamentos orientados segundo regiões de origem e que, na Alemanha, desempenharam importante papel nos ideais da unidade da nação acima dos pequenos estados e daqueles do Esclarecimento em época marcada pela Restauração.


Também em São Paulo esse termo indica nessa tradição um princípio de organização estudantil superadora da tendência de formação de grupos segundo províncias, com as rivalidades nascidas de mentalidades regionalistas ou bairristas e que se exprimiam em práticas de desafios mútuos e de trotes em calouros. Como extensão de um movimento sobretudo intenso na Prússia, a „Bucha“ em São Paulo não poderia ter sido simpática a um fortalecimento do Catolicismo. O movimento da Burschenschaft alemã possuia à época direcionamento nacional-liberal, patriótico mas democrático, visto como produto do Esclarecimento, tendêncîas que alcançaram um ponto alto na proclamação do Império Alemão, em 1871.


Apesar de todas as diferenças, a „Bucha“ em São Paulo não poderia ter tido orientação contrária. A interpretação segundo a qual teria desempenhado papel preparatório à proclamação da República deve ser revista, pois a participação política de alguns de seus antigos membros não significa que a própria organização assim fosse impregnada. A superação das diferenças regionais e regionalismos de tendências separatistas encontrava a sua expressão na unidade da nação, e essa foi possibilitada pelo Império.


A oposição estudantil às tendências de reintensificação da vida religiosa através de ordens estrangeiras manifestou-se muito cedo na segunda metade do século XIX. A cidade de Itú - significativamente aquela que foi sede da primeira assembléia republicana no Brasil, em 1873, -era também vista pelos estudantes como principal centro de um movimento de reintensificação religiosa de características retrógradas, anti-esclarecedor, movido pelos Jesuítas e que preparavam novas gerações no Colégio São Luís.


Já em 1867 o periódico O Cabrião criticava o jesuitismo, em particular aquele dos religiosos estrangeiros estabelecidos em Itú:


„O Jezuitismo vai mais e mais alçando a cabeça. Venenoza parazita plantada no paiz (...) que assim traiçoeiramente quer atrophiar a grande arvore da autonomia nacional, vai alastrando galhos a olhos vistos. N‘esta relação é mui digno de nota o que ha de ouzadia e desfaçamento no modo por que dezemnvolve-se a ninhada dos padres extrangeiros estabelecidos em Itu. (...) Roma, capital da christandade, é também capital do ultramontanismo e jezuitismo. É a fonte de onde dimanam todos os crimes, todas as ridicularias, todas as practicas de fetichismo (...)“ (O Cabrião Anno I N. 42, 18 de agosto de 1867, 354)


Em textos e ilustrações, criticava-se sobretudo uma hipocrisia que se escondia por detrás da defesa da moral e do fomento de vida de ascese por parte de religiosos de ordens.



Um monumento arquitetônico de tensões: Religião/Ciência, Secular/Anti-Secular


A Faculdade de Direito do Largo de São Francisco despertou assim já há muito a atenção a tensões entre dois processos de transformação cultural: um voltado ao esclarecimento através do saber, dos conhecimentos, da ciência e das artes e à tolerância de costumes que tanto marcou a vida estudantil, e outro marcado pela restauração reintensificadora da vida religiosa, da influência do clero, da presença da Igreja na vida da cidade e da reforma da moral segundo normas eclesiásticas.


Se em outras situações os antigos edifícios de conventos haviam tido as suas instalações ocupadas para diferentes fins, entre outros militares como no do Rio de Janeiro, o de São Paulo, tendo passado a ser usado para fins de ciências jurídicas e sociais ficou mais próximo às suas antigas finalidades, que tambem haviam sido formativas, manifestando assim de forma mais evidente a sensível transformação ocorrida.


A localização relativamente afastada, escolhida pelos Franciscanos como adequada ao silêncio e a uma vida conventual marcada pela simplicidade e alegria seráfica, com o intento de influenciar a sociedade, intensificando a sua religiosidade, passou a ser aquele do retiro adequado aos estudos acadêmicos e a uma vida estudantil também marcada pela alegria, com o intento de irradiar impulsos esclarecedores à sociedade.


Enquanto que em outras localidades, como no Rio de Janeiro, os conventos foram reocupados pelos religiosos após a República, o de São Paulo, mantendo-se nele a faculdade, favorece ainda no presente a percepção e o estudo de uma situação que foi combatida pelos Franciscanos alemães como herança do Esclarecimento representado  por Dom Pedro II.


Nesse sentido, a faculdade no local do antigo convento surge como um sinal da resistência contra um movimento do clero que louvava a República por ter essa possibilitado a supressão de restrições à atuação de ordens religiosas,  abrindo assim o caminho ao progresso do anti-modernismo preconizado por Roma após o Concílio Vaticano I.


Essa singularidade do convento ainda secularizado de São Paulo levantou questões dos contextos em que se processou a ação de revitalização da vida conventual franciscana na capital e no Estado.


Os estudos culturais relacionaram-se aqui com aqueles da história urbana desenvolvidos no âmbito da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Esses estudos levaram ao reconhecimento de que a atuação dos missionários alemães processou-se sobretudo em bairros da cidade e em regiões do Estado que passaram por grande desenvolvimento agrícola à época do café e da industrialização. Mais uma vez, assim, os Franciscanos surgem em contextos de expansão e desenvolvimento econômico, de imigração e de formação de colonias por trabalhadores europeus: no sul, nos territórios que eram abertos nas florestas, em São Paulo nas zonas nas quais as matas haviam dado lugar às plantações de café e nos bairros ainda semi-rurais do Leste da capital que passavam a ser ocupados pelas fábricas com operariado de imigrantes.


O reconhecimento dessas relações trouxe à consciência uma situação paradoxal na imagem convencional da historia paulista e da paulistana em direção a metropole: o progresso material e a expansão urbana, vistos em geral como sinais de progresso, foram acompanhados e transpassados por um processo retroativo de refortalecimento religioso, anti-modernista, de defesa da moral e de costumes, transformando cidades e bairros em principais centros de reação cultural e de reforma retroativa de desenvolvimentos segundo correntes e modos de expressão do Catolicismo europeu, em época do ultramontanismo e da „luta cultural“. Imigrantes, que traziam formas consuetudinárias de vida religiosa, passaram a tê-las reformadas no sentido restaurador e moralista no Brasil através da ação de missionários, em particular alemães.


Exigência de revisões em época de transformações pós-conciliares


As transformações desencadeadas pelo Concílio Vaticano II na segunda metade dos anos 60 acentuava a necessidade sentida de clarificações na compreensão e na interpretação de processos culturais reconhecidos como contraditórios.


A visão crítica do combate que a Igreja havia conduzido no passado contra formas de expressão que considerava como de influência profana, de decadência religiosa da época da restauração - cujo marco maior foi o Motu Proprio de Pio X de 1903 - parecia vir de encontro ao redirecionamento pós-conciliar, que superava ou relativava formas de configuração litúrgica, em particular sacro-musical anteriores ao Concílio.


Para o pesquisador, se as medidas anteriores de reforma da vida religiosa haviam levado a graves problemas de desqualificação do século XIX, de destruição de arquivos, de supressão de orquestras, de silenciamento de compositores e obras, com consequências mais graves para as cidades e regiões históricas de mais longo passado, as novas tendências, desvalorizando coros, órgãos e repertório que as haviam substituídos, levavam a uma nova onda destruidora de bens e estruturas da vida cultural, musical e do ensino centralizados nas igrejas. (Veja)


A expectativa que aqui se corrigiam desenvolvimentos negativos do passado, modificando-se fundamentalmente orientações historistas e retroativas, conservadoras e mesmo reacionárias que a êle tinham levado, foi porém logo desapontada; mantinha-se a mesma aversão quanto a formas de expressão do passado mais remoto que haviam sido consideradas como herança do Esclarecimento e da secularização, substituindo-se porém aquelas mais recentes do movimento restaurador por produções e atuações que surgiam como mais profanas do aquelas acusadas de teatrais do século XIX. As formas de expressão e os métodos modificavam-se, mas os intuitos permaneciam os mesmos: o da renovação da vida religiosa em sociedade vista como inserida em processo secularizador.


Um marco na discussão dessa problemática, marcada por situações paradoxais e desenvolvimentos contraditórios e obscuros foi o Simpósio Internacional „Música Sacra e Cultura Brasileira“ levado a efeito em São Paulo, em 1981. Nele não se procurou apenas trazer à consciência a diversidade do patrimônio cultural - em especial musical - do Brasil de todas as épocas, mas sim também historicidade de concepções de reforma religiosa no passado e no presente. Procurou-se demonstrar as inserções e as consequências político-culturais desses ações eclesiásticas. (Veja)


Não foi por acaso que se escolheu a „Primeira missa no Brasil“ para a ilustração do programa do simpósio. Ela devia trazer à lembrança que foram Franciscanos os celebrantes do primeiro ato de culto no Brasil, os primeiros que se confrontaram com os indígenas e realizaram os primeiros intentos missionários. A própria denominação de Terra de Santa Cruz expressa a influência da espiritualidade franciscana.


A missa de abertura do evento foi celebrada por um franciscano, o Cardeal Arcebispo D. Paulo Evaristo Arns O.F.M. de São Paulo (Veja). Essa celebração na catedral neo-gótica de São Paulo, mas marcada pelos ideais pós-conciliares de participação ativa através da música, trouxe à luz as múltiplas paradoxias dos desenvolvimentos. Em princípio, a linguagem visual da catedral e o espírito que a imbui, denotadores do Historismo do passado, surgiam como inadequada e mesmo incompatível à prática da música pastoral comunitária preconizada. O edifício parecia surgir como monumento de um passado superado, que agora devia ter uma outra vida. (Veja)


Essa interpretação, porém, logo deu margens a visões mais abrangentes, trazendo à consciência que não havia na verdade discordância fundamental entre os intuitos dos quais a catedral fala com aqueles tão marcados por um Franciscanismo de concepções e posições do ato celebrado. Lembrou-se que foram os Franciscanos principais agentes e motores do processo restaurativo de reforma da vida religiosa, da liturgia e da música. Muitas de suas concepções e formas de expressão mudaram-se, mantinha-se, porém uma continuidade mais profunda e que devia ser objeto de análises.


Se o simpósio de São Paulo foi aberto por missa marcada pelo Franciscanismo de seu celebrante, o seu encerramento deu-se significativamente na igreja da Ordem Terceira no Largo de São Francisco com uma hora dedicada à meditação sobre o passado sacro-musical brasileiro. (Veja)


Procurou-se trazer aqui à consciência que não apenas foram Franciscanos os celebrantes da primeira missa no Brasil, aqueles que marcaram sob muitos aspectos desenvolvimentos do passado e que os encerraram em reforma compreendida como restauração em fins do século XIX. O Franciscanismo era apresentado sob novas formas no presente - como manifestado na homília do Cardeal-Arcebispo de São Paulo na abertura do evento - , de modo que também um simpósio dedicado a relações entre a música sacra e a cultura no país necessariamente devia partir e terminar com questões concernentes à ação dos Franciscanos no Brasil.


As reflexões foram assim encerradas em São Paulo com uma problemática cultural na qual o convento de São Francisco assume uma função de central significado e mesmo emblemática. Consequentemente, as atenções dos estudos preparados para a discussão e considerados no evento, com a cooperação, entre outros de Frei José Luís Prim O.F.M. (1935-2013), retomaram pesquisas realizadas desde fins da década de 60 na capital e no Estado, vistas agora sob prismas mais amplos abertos pelo simpósio internacional. Os preparativos para o tratamento de questões relacionadas com o Franciscanismo nesse simpósio foram realizados em cooperação com especialistas e estudiosos europeus, em institutos e centros de ordens, em particular no franciscano em Harreveld e em Werl.


Em estudo publicado em coletânea que devia oferecer subsídios às discussões, considerou-se, entre outros aspectos, que as mudanças pós-conciliares haviam atingido em especial a produção sacro-musical dos Franciscanos, surgindo desde então como ultrapassadas obras e autores que haviam marcado mais de meio século da música sacra no Brasil. (S. Steden, „Zur brasilianischen Kirchenmuik in der ersten Hälfte des 20. Jahrhunderts“, Collectanea Musicae Sacrae Brasiliensis, Roma: Urbaniana 1981, 117-126). A complexidade do tema exigia, porém, um tratamento mais especializado no próprio meio franciscano, sendo este deixado para um encontro a ser realizado após o evento em Petrópolis, principal centro do Franciscanismo sacro-musical no Brasil.


Revendo a história e problemas da restauração do Convento de São Francisco


Relembrou-se no simpósio, o papel relevante que o convento de São Paulo, fundado em 1640, desempenhara durante quase duzentos anos não só na cidade como na província franciscana, um panorama histórico que merece ser aqui recordado em linhas gerais. Na época, foram baseados na literatura histórica paulista, em particular na de Manuel Eufrásio de Azevedo Marques (Apontamentos Históricos, Geográficos, Biográficos, Estatísticos e Noticiosos da Província de São Paulo I, São Paulo: Martins 1953, 203-204). Relativamente à história da restauração franciscana, os trabalhos se basearam sobretudo em publicação comemorativa pelos 25 anos da reinstalação da Província da Imaculada Conceição do sul do Brasil, editada na Alemanha em 1929 (P. Cletus Espey OFM, Festschrift zum Silberjubiläum der Wiedeererrichtung der Provinz von der Unbefleckten Empfängnis im Süden Brasiliens 1901-1926, Werl i. West.: Franziskus 1929).


Tendo a sua fundação autorizada em 1624, a sua construção iniciou-se em 1639. Após considerar condições locais, o custódio Fr. Manuel de Santa Maria reuniu Capítulo nesse ano, na Bahia, decidindo-se a fundação do convento. O seu fundador, Fr. Francisco dos Santos, aportou em Santos em 1640 com outros sacerdotes e irmãos leigos. Residiram de início na ermida de Santo Antonio, situada provavelmente no local da atual igreja de mesma dedicação, passando para casa adjunta à ermida construida com o auxílio de moradores, adquirindo o nome de Santo Antonio do Brasil. Essa denominação indica o extraordinário significado da devoção a Santo Antonio na tradição portuguesa e brasileira e, vice-versa, da cultura portuguesa no Franciscanismo.


Em 1643, sendo o local considerado inconveniente, o convento foi transferido para o largo de São Francisco e São Domingos. Tudo indica, nessa transferência, que os Franciscanos constataram que o antigo local, primeiramente nos limites do núcleo da urbe - daí ter-se ali uma ermida a Santo Antonio - gradativamente passara a inserir-se no seu centro em expansão, marcado por maior movimentação e proximidade à vida de preocupações materiais, tornando-se oportuno o afastamento a local mais distante.


Esse deslocamento a posições limites em situações urbanas, sempre a seguir alcançadas por processos de expansão, pode ser analisado em diferentes contextos no Brasil. Ela parece indicar uma tendência a posições de fronteira, à simplicidade de locais semi-rurais ou de populações modestas de vida marcada por atividades consuetudinárias do trabalho junto à natureza, o que correspondia aos valores Franciscanos de modéstia e simplicidade.


A simpatia que gozaram na população e junto às autoridades de São Paulo manifesta-se na acusação que lhes foi feita de tomar partido do povo e da câmara por ocasião da expulsão dos jesuitas, em 1640. O significado da vida conventual e do Franciscanismo em São Paulo pode ser deduzido do fato do convento, na sua época de apogeu, ter sido habitado por centenas de religiosos. Em 1798, o convento chegou a possuir 12 escravos.


Na historiografia franciscana, a decadência do convento de São Paulo é explicada como sendo resultado da opressão da Ordem por parte do Estado e da política secularizadora do Iluminismo. O impedimento de aceitação de noviços levava ao envelhecimento da vida conventual e a uma gradual extinção dos conventos, e a concessão de privilégios e títulos a Franciscanos por parte do Govêrno à época do Reino Unido levara à perda da disciplina e do fascínio de uma Ordem que tinha como valores a modéstia, a simplicidade e a indiferença a honras terrenas. (P. Cletus Espey, op.cit. 129-130)


Contando com apenas poucos religiosos, o edifício foi solicitado pelo Govêrno para a instalação da Academia de Direito. O Pe. Provincial sentiu-se segundo a crônica franciscana premido, vindo de encontro a essa solicitação do Govêrno, distribuindo os seis religiosos ainda vivos por outros conventos.


Segundo a perspectiva franciscana, o Govêrno não cuidou em levantar um novo edifício para a faculdade nas décadas que se seguiram, continuando a faculdade a usar o antigo convento. Embora vindos em 1891, apenas a partir de 1898 é que os religiosos alemães deram início a uma nova fase na história do convento do Largo de São Francisco. A Província, já restabelecida, enviou três padres e um irmão para a administração da antiga igreja da Ordem. Passaram a residir em espaços limitados ao lado da sacristia.


Conflitos entre irmandade a São Benedito e os Franciscanos alemães


Esses anos iniciais de reintrodução da vida conventual pelos missionários alemães foram marcados por tensões, tanto por parte dos devotos na tradição do antigo Franciscanismo relativamente à igreja, como por parte do Estado relativamente à ocupação do edifício do convento pela academia. Durante todas as décadas de ausência de religiosos, o Franciscanismo em São Paulo tinha sido mantido sobretudo pelas irmandades, sendo que a irmandade de São Benedito até então administrara a igreja. Alegando direitos de posse por esse uso, essa chegou a  atuar judicialmente contra os religiosos estrangeiros, dando início a um processo contra os padres, sendo por esse ato suspensa pelo Arcebispo de São Paulo. Este tinha interesse no trabalho dos Franciscanos para a concretização de sua politica de reforma restaurativa segundo o direcionamento preconizado por Roma.


Essa atuação da Irmandade de São Benedito em São Paulo indica o papel desempenhado por africanos e seus descendentes na manutenção do Franciscanismo através das décadas. Também em outras regiões do Brasil com população de mais antiga formação os alemães defrontaram-se com o culto desse santo franciscano, de origem siciliana mas que, pela sua cor de pele e história de vida, tinha sido apresentado como modêlo de exemplaridade para pessoas simples, modestas e discriminadas pela cor, descendentes de escravos e que podiam ter orgulho de terem tido pais leais, submissos, mansos e alegres, apesar do jugo. (Veja)


Em 1910, o Govêrno passou também a atuar judicialmente contra os Franciscanos, e, para além do convento, passaram a exigir também a igreja e os espaços situados por detrás da mesma. Ambos os processos foram porém decididos a favor dos Franciscanos. A igreja e os espaços de moradia foram entregues aos religiosos, sem, porém, entrada pela rua, devendo estes passarem pela igreja para alcançarem os aposentos internos. O empenho dos Franciscanos de recuperar pelo menos uma parte do convento mantiveram-se vivos.


Reforma da igreja, solenização do culto, simplicidade de pregações e nova popularidade


As atuações religiosas limitaram-se de início sobretudo à igreja conventual e a da Ordem Terceira. A igreja foi reformada, passando a ser uma das mais visitadas de toda a Província franciscana. Esse grande número de fiéis explicava-se em parte pela força do Franciscanismo na própria cultura tradicional de São Paulo, remontante nos seus fundamentos à antiga atuação franciscana, em parte pela irradiação das novas formas de expressão e do culto dos Franciscanos alemães.


Com a presença dos missionários alemães, essa cultura tradicional, caracterizada sobretudo pela devoção a determinados santos, entre êles Santo Antonio e São Benedito, passou a ser reorientada. Essa reforma deu-se através da associação de Santo Antonio criada pelos Franciscanos, que modificou antigas formas de expressão desse culto. Com uma comunhão comunitária na primeira terça-feira do mês, com culto e pregação à noite, seguidos de distribuição de pão e esmolas aos pobres, tornou-se importante motor na intensificação da antiga veneração de Santo Antonio na capital.


Uma particular atenção foi dada a catequização da juventude. Esses procedimentos dos Franciscanos alemães no Largo de São Francisco corresponderam assim, nas suas linhas gerais, àqueles do sul e de outras regiões. A ponte criada com o antigo Franciscanismo a partir da devoção popular a Santo Antonio correspondeu àquela do Convento de Santo Antonio do Rio de Janeiro e à de outros conventos antigos. Também o intento de formação de uma nova geração através da atividade de ensino religioso da juventude correspondeu aos empenhos educativos dos Franciscanos em outros contextos.


O cuidado de dar maior atenção à solenidade das celebrações levou - como em outros casos - a um aumento da frequência a missas e outros atos, passando a ser a igreja visitada por pessoas vindas de bairros distantes e de outras partes do Estado. Para esse aumento da solenidade litúrgica, pela cuidado à dignidade do culto através da simplicidade de meios de expressão, a música sacra contribuiu de forma relevante.


Apesar desse desenvolvimento, manifestado na grande procura popular da igreja de São Francisco em São Paulo, fato considerado na Alemanha como indica a publicação de P. Cletus Espey (loc cit.), a igreja dos Franciscanos em São Paulo não chegou a ser centro frequentado por círculos mais privilegiados da sociedade de forma comparável a Petrópolis. A razão dessa diferença pode ser vista no fato de que o convento de São Paulo, como o de Santo Antonio do Rio de Janeiro, já possuiam comunidades de devotos e tradições remontantes ao passado de formação franciscana, constituidos por grupos populacionais mais modestos, veneradores de São Benedito ou, do português Santo Antonio. A constituição social dos frequentadores da igreja de São Francisco parece ter dificultado o surgimento de um fenômeno como da „missa das 11“ de Petrópolis, ou seja, a visita à igreja de São Francisco de São Paulo não se tornou ato social e „chic“.


P. Basilius Röwer (1877- ) como Superior em São Paulo até a Primeira Guerra


Significativo é o fato de ter atuado como Superior do convento nos anos que precederam a Primeira Guerra, de 1908 a 1914, o P. Basilius Röwer, um dos principais representantes da composição sacra segundo preceitos restauradores litúrgico-musicais no Brasil. Tendo-se empenhado nesse sentido nos diferentes centros Franciscanos, a sua obra marcou a vida musical religiosa de várias comunidades, entre elas de Petrópolis e Curitiba.


A sua consideração no simpósio de 1981 baseou-se principalmente em artigos publicados na revista Música Sacra de Petrópolis, que haviam sido aprofundados em trabalhos que precederam o evento (e. o. Beatriz Leal Guimarães, „Frei Basílio Rower“, Música Sacra XIII/7 e 8,  julho-agosto de 1953, 121-122; XVIII/5, setembro-outubro de 1958, 129-130). Esses estudos preparatórios foram conduzidos em centros de música sacra e de estudos do Cecilianismo na Alemanha, em particular em Ratisbona (Regensburg), assim como nos locais de formação de Basilius Röwer.


Proveniente de Neviges, um bairro de Velbert na circunscrição de Mettman, na atual Renânia do Norte/Vestália, foi um dos vários renanos que atuaram no Brasil. Fora profundamente marcado pela música sacra do Cecilianismo como membro do coro paroquial de Santa Cecília da sua cidade e pelo contato com o Canto Gregoriano durante os seus estudos no Seminário franciscano a partir de 1892, quando decidiu dedicar-se à composição. Os estudos nesse sentido, porém, foram realizados no Brasil, para onde veio em fins de 1894, tendo recebido o hábito na Bahia, em 1896. Não tendo a possibilidade de estudar órgão, dedicou-se ao harmonium, tendo aprendido rudimentos musicais com um outro religioso, Frei Stanislau, que na sua pátria havia sido professor escolar.


Esses estudos foram realizados sobretudo autodidaticamente, como também foi o caso de outros Franciscanos. Curiosamente, assim, a formação de grandes cecilianistas deu-se no próprio país, tendo nascido da necessidade de materiais criados no Brasil para a prática em substituição às obras de autores europeus, em particular alemães.


O „estilo monumental interiorizado“ de Peter Griesbacher (1864-1933)


Também no caso de Basilius Röwer o grande modêlo foi Peter Griesbacher (1864-1933). Tendo estudado em Passau, Griesbacher atuou como responsável pela música no Seminário S. Emmeran em Regensburg (Ratisbona), a partir de 1911 também como professor de estilística, forma e contraponto na escola de música sacra local, além de ser vigário e cônego da colegiata de S. João na mesma cidade.


Röwer, orientando-se segundo modêlos de Griesbacher e outros dos mais relevantes da restauração sacro-musical alemã, criou nos conventos em que atuou no Brasil situações similares à de Regensburg/Ratisbona, fomentando sobretudo a música sacra a cappella, tendo como ideal o estilo de Palestrina.


Já em 1903, no ano do Motu Proprio, Frei Basílio Röwer via composições suas editadas na Alemanha: uma Missa a quatro vozes a cappella e outra a duas vozes com acompanhamento de harmonium ou órgão. A recepção positiva de sua obra nos meios cecilianos levaram-no a compor outras obras, uma missa a três vozes iguais, um Te Deum e uma Ladainha do Coração de Jesus a três vozes, esta provavelmente pensada para a igreja de mesma dedicação de Petrópolis. Também essas composições foram editadas significativamente na Alemanha, enquanto que as demais, após a Guerra, já passaram a ser impressas no Brasil.


Orientando-se segundo Griesbacher, também Röwer chegou a desenvolver um „estilo monumental interiorizado“ no Brasil, adotando, como também Petrus Sinzig (1876-1952), uma orquestra, ainda que discreta. Esse foi o caso da Cantata em honra de Santa Inês para solo e coros, com quadros encenados, apresentada em Petrópolis e em Curitiba. O papel relevante desempenhado por Frei Basilio Röwer no movimento de reforma da música sacra segundo o Motu Proprio manifestou-se em vários de seus textos, em particular na obra Música Sacra, com estudos e comentários sobre o documento pontifício e que foi objeto de reconhecimento pelo próprio Pio X. 


Tendo como modêlo as obras de Griesbacher, Basílio Röwer orientou-se segundo um compositor que surgia como relativamente avançado entre os conservadores cecilianistas de sua época, inserindo-se no rol daqueles que constatavam as tendências negativas do movimento. Não era, assim, totalmente avesso aos desenvolvimentos da linguagem musical do Romantismo tardio.


De ciclos de estudos da A.B.E. sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo




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Indicação bibliográfica para citações e referências: Bispo, A.A. (Ed.), „São Paulo (SP)
Academia X Convento. Secularização e anti-secularização em referenciações alemãs:
a Bucha e a restauração franciscana no caminho da urbe à metrópole- Lembrando Frei Basilius Röwer OFM (1877-1958)-
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 150/2 (2014:4). http://revista.brasil-europa.eu/150/Sao_Paulo-AcademiaXConvento.html